Um Natal às cores |
Em geral estava frio. Um friolímpido e seco com um tom de azul cobalto muito escuro no horizonte, quando surgiam no céu os primeiros luzeiros de Orion ou da Ursa Maior. Para os lados de Ocidente, a seguir à noitinha, um clarão débil propagava-se sobre o bosque de castanheiros: e eram as luzes da cidade acocorada no princípio da aba da Serra, estendida no pequeno vale para lá das colinas e dos pinhais.
Às vezes chegava alguém até ao muro da azinhaga - primeiro sinal de casas e de gente; e eram vizinhos das quintas em volta, alguns bufarinheiros com a sua mala de corre-mundos, um que outro mendigo mais afeito aos campos e à sua generosidade em que as Estações se sucediam com figos, castanhas, laranjas ardentes de sumo e de cor, o bom pão dormido e coberto de toucinho rechinante ou rescendente de frescura com o queijo duro e a manteiga entre duas capas de presunto. Porque à gente de boa paz nunca se negava, por vontade do Pai e da Mãe, o aconchego do estômago e uma que outra placa desviada ao serviço de domésticas, económicas utilizações. E havia o tio Noitinhas que, contava-se, fôra rico e decaíra; o tio Chico do Mel (esse levava sempre, porque tinha o meu nome, um pedaço de chouriço ou de paio, de reforço); a ti' Ana Grila, que corria Ceca e Meca desbastando por dentro a saudade de um filho e de um marido que lhe haviam morrido de desastre lá para as lisboas da construção civil; e o tio Martinho, sempre com um canito à ilharga: figura e retrato escarrapachado do homem-do-saco que tantas vezes me faria comer o prato sem tardança, ele que era manso e sereno como um irmão de Heliópolis e cuja voz, tirante as barbaças de monge, era suave posto que rouca e mais afeita a dialogar com o rafeiro que a assustar fôsse quem fôsse. Mas as crianças, já se sabe, vêem o tempo com olhos maravilhados e sobre a sua imaginação corre uma brisa deslumbrante e divina que lhes permite ver um emissário de mistérios e segredos num pobre pedinte alentejano.
E depois, quase de repente, era Natal. Com todas as suas maravilhas incógnitas: o grão cozido e pisado para o recheio das azevias largas como uma palma de mão ou diminutas como um ninho de andorinha-do-mar; o bacalhau que o Pai trouxera da cidade de juntura com misteriosos embrulhos encaminhados à socapa para as secretas geografias das gavetas da cómoda grande; a Tia cortando o pão para a sopa de cação apaladado de alho e demais ervas próprias, a Mãe estendendo o manto das filhós depois fritas com cuidados e saberes de alquimista, a Mana que ajudava neste e naquele trabalho para depois saber quando crescesse com filhos e responsabilidades por dentro e nas mãos operosas. E, pela noite, vinham então a vizinha Mari'José, o vizinho Manuel Planeta, as filhas Jacinta e Júlia e, às vezes, a minha Avó das histórias com seu saquinho de malhas, lá de longe das Arronches, e no meio duma conversa, dum riso, duma garfada, dling dlong e era já meia-noite? Já, a missa do galo sentida por cima dos pinheiros, chegada da capela de S. Cristóvão do Atalaião? Sinal de fraternidade na noite subitamente silenciosa.
Um Natal às cores. Com as cores do passado. Fotografado pela memória da infância e da
recordação agradecida.
NS |