Um Natal às cores
NICOLAU SAIÃO

 

Em geral estava frio. Um frio

límpido e seco com um tom de azul cobalto

muito escuro no horizonte, quando

surgiam no céu os primeiros

luzeiros de Orion ou da Ursa Maior. Para os lados

de Ocidente, a seguir à noitinha, um clarão

débil propagava-se sobre o bosque

de castanheiros: e eram as luzes da cidade acocorada

no princípio da aba da Serra, estendida no pequeno vale

para lá das colinas e dos pinhais.

 

Às vezes chegava alguém

até ao muro da azinhaga - primeiro sinal de casas

e de gente; e eram vizinhos das quintas em volta,

alguns bufarinheiros com a sua mala

de corre-mundos, um que outro mendigo mais afeito

aos campos e à sua generosidade em que as Estações

se sucediam com figos, castanhas, laranjas ardentes

de sumo e de cor, o bom pão dormido e coberto

de toucinho rechinante ou rescendente de frescura

com o queijo duro e a manteiga entre duas capas

de presunto. Porque à gente de boa paz nunca se negava,

por vontade do Pai e da Mãe, o aconchego

do estômago e uma que outra placa

desviada ao serviço de domésticas,

económicas utilizações. E havia

o tio Noitinhas que, contava-se, fôra rico e decaíra; o tio

Chico do Mel (esse levava sempre, porque tinha o meu nome,

um pedaço de chouriço ou de paio,

de reforço); a ti' Ana

Grila, que corria Ceca e Meca desbastando por dentro

a saudade de um filho e de um marido que lhe haviam

morrido de desastre lá para as lisboas

da construção civil; e o tio Martinho, sempre com um canito

à ilharga: figura e retrato escarrapachado do homem-do-saco

que tantas vezes me faria comer o prato sem tardança, ele que era

manso e sereno como um irmão de Heliópolis e cuja voz,

tirante as barbaças de monge, era suave posto que rouca e mais

afeita a dialogar com o rafeiro que a assustar

fôsse quem fôsse. Mas as crianças, já se sabe,

vêem o tempo com olhos maravilhados e sobre a sua

imaginação corre uma brisa deslumbrante e divina

que lhes permite ver um emissário de mistérios e segredos

num pobre pedinte alentejano.

 

E depois, quase de repente, era Natal. Com todas as suas

maravilhas incógnitas: o grão cozido e pisado para o recheio

das azevias largas como uma palma de mão ou

diminutas como um ninho de andorinha-do-mar;

o bacalhau que o Pai trouxera da cidade de juntura

com misteriosos embrulhos encaminhados à socapa

para as secretas geografias das gavetas da cómoda

grande; a Tia cortando o pão para a sopa de cação

apaladado de alho e demais ervas próprias, a Mãe

estendendo o manto das filhós depois fritas

com cuidados e saberes de alquimista, a Mana

que ajudava neste e naquele trabalho para depois saber

quando crescesse com filhos e responsabilidades

por dentro e nas mãos operosas. E, pela noite, vinham

então a vizinha Mari'José, o vizinho Manuel Planeta, as

filhas Jacinta e Júlia e, às vezes, a minha Avó das histórias

com seu saquinho de malhas, lá de longe das Arronches,

e no meio duma conversa, dum riso, duma garfada,

dling dlong e era já meia-noite? Já, a missa do galo

sentida por cima dos pinheiros, chegada da capela

de S. Cristóvão do Atalaião? Sinal de fraternidade na noite

subitamente silenciosa.

 

Um Natal às cores. Com as cores do passado. Fotografado

pela memória da infância e da

 

recordação agradecida.

 

NS

 
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