NICOLAU SAIÃO
A PROPÓSITO DE “O MESTRE DE ESGRIMA”

A obra epigrafada, de Arturo Pérez Reverte, é uma parábola sobre a sabedoria.

Debrucemo-nos sobre este livro iniciático, que aliás nos fornece o exemplo de como progride um texto discretamente apresentada como um thriller histórico – e o autor fá-lo com a subtileza que lhe permite ter o necessário impacto, como se verifica a uma releitura. Este procedimento é usual e caracteriza aliás outras tragédias da literatura policial como por exemplo “Versão original” ou “Um domingo esquecido”, respectivamente de Bill Ballinger e Fred Kassak. A sequência novelesca é dada como uma lição prática de esgrima: “Do assalto”, “Ataque simulado duplo”, etc.

Depois da introdução, o autor refere como de passagem que é uma “tragédia”. Tal como sucede com outros detalhes capitais (o nome de Cazorla, tio de dois dos alunos de Jaime Astarloa, que assim sabe da existência do mestre de esgrima e das relações que este tem com o marquês dos Alumbres, o que permite perpetrar-se a armadilha que o irá aniquilar) isso é dito dissimuladamente, escapando à atenção dos leitores menos atentos.

Aparentemente, portanto, o livro é uma história de mistério ambientada num período histórico determinado.

Naquela Madrid da segunda metade do século dezanove, alheado dos embates que em volta se verificam (conspirações do general Prim que em breve iriam levar à queda de Isabel II, a mui católica rainha duma Espanha herdada de Narvaez, “o Militarão de Loja”, morto antes do começo da acção) vive um mestre de armas clássicas, discípulo do famoso esgrimista francês Lucien de Montespan e imbuído dos princípios de honra e de fidelidade que aprendera a cultivar na Paris de um quarto de século antes. Estranhos sucessos começam a desenrolar-se em sua volta depois de ser visitado por doña Adela de Otero, fascinante mulher ainda jovem que dispõe duma extraordinária capacidade como esgrimista.

Aceite pelo mestre após hesitações iniciais provindas da tradição, Adela revela-se como uma mulher que tem por trás de si um segredo (revelado posteriormente). A sua vida é pouco vulgar e em certos círculos da capital espanhola isso é comentado mais ou menos discretamente: não trabalha, não é nobre e todavia vive com evidentes meios materiais.

Em volta do maestro agitam-se personagens ora equívocas ora típicas de um ambiente em que as convulsões sociais eram determinadas pela decadência da monarquia espanhola e o ascendente republicanismo. Mas Astarloa, descentrado dum tempo que lhe não pertence uma vez que é um avatar da era precedente onde pontificavam os seres honoráveis da sua juventude, toma as coisas pelo seu valor facial: apaixona-se por Adela e, dada a profunda solidão em que vive e que enfrenta mediante o apego às recordações, passa a existir entre a angústia e a expectativa de algo que no entanto intui nunca poder alcançar.

O marquês dos Alumbres, único indivíduo que lhe demonstrava uma verdadeira estima caldeada de apreço pelas tentativas que o maestro vai efectuando para escrever o livro sublime sobre a estocada imparável, morre de forma violenta. Astarloa está agora definitivamente só, uma vez que Adela também deixou as aulas de atiradora esgrimista que eram o refrigério de Jaime, votado agora apenas a ganhar o pão quotidiano.

Depois de diversas peripécias de índole dramática (luta com assassinos a soldo, um companheiro torturado de forma bárbara por rufiões, o assassinato de uma mulher que a polícia toma pela bela manobradora, etc.) há de noite um último encontro entre uma Adela afinal viva e um Jaime que começa a entrever algo que no entanto não consegue verdadeiramente nortear: não nota que numa das cartas dum ministro consta um nome afinal seu conhecido, assim como não repara que em documentos posteriores esse nome desapareceu. Para cúmulo, a carta que dá sem equívocos a identidade do perpetrador dos crimes caíra, num momento de atrapalhação, para debaixo duma papeleira. Astarloa é pois um homem que não sabe o concreto, sabendo contudo e apenas – o que aliás lhe serve bem - que há causas pelas quais vale a pena viver e morrer: a fidelidade a um passado de decência, de respeito pelos outros e pelas recordações que lhe acalentam a honra quotidianamente assumida.

Ao dar-se conta das teias em que havia caído, sendo ocasional comparsa de manejos que o ultrapassavam (os negócios escuros do regime, a traição de correlegionários, as aparências tapando as realidades mais sórdidas…) o maestro recusa as facilidades que o seu silêncio lhe permitiria. Apesar de amar Adela não pode esquecer os crimes de que esta foi cúmplice e mesmo autora.

Num último duelo entre um homem fiel aos seus princípios e uma mulher que motivada por um drama sentimental se fizera encarnação maléfica da Espanha “moderna”, argentária e plutocrata (o canalha seu benfeitor e chefe é banqueiro e homem-de-negócios), em condições muito desfavoráveis ele consegue matar Adela atingindo ao mesmo tempo, num lampejo que a sua arte e experiência das armas possibilitou, a estocada perfeita, o seu Graal.

Por outras palavras e dado que se voga num universo simbólico: a descoberta da Pedra Filosofal possibilitada pela confrontação com um amor que morrera.

Ou seja: no acto de ser morta, Adela faz viver ainda que de forma trágica, para sempre, a memória de Astarloa como autor de um manual absoluto. É através desta morte em combate, que Jaime tragicamente recapitula frente ao espelho (imagem virtual da vida real), que tudo fica perfeito e completado.

Corpo morto enquanto demónio, Adela cadáver repousa como uma coisa reconfigurada e devolvida às origens e que nem mesmo é já necessário olhar. É um invólucro apenas, presença para além de todo o bem e todo o mal. Como que vive agora noutra dimensão, naquilo que Jaime atingiu depois de tantos anos de busca inglória.

A despeito de si mesma, afinal forneceu a Astarloa a “ars aurea” dos triunfadores. Se ela não tivesse existido, mesmo que do lado negro e infernal, Jaime teria morrido possivelmente num asilo ou num quarto modesto absolutamente só e desapossado do achamento.

Nesta perspectiva, sendo uma novela iniciática, de busca da sabedoria, é também uma novela de esperança e de amor íntegro que nos diz, como na “Opus Magna”, que as trevas não prevalecerão contra os filhos da Luz.

NS

 
NICOLAU SAIÃO
Nascido em 1946 em Monforte do Alentejo (Portalegre). Poeta, pintor, publicista e actor/declamador. Colunista de O Liberal, jornal de Cabo Verde, tem colaboração diversa em revistas e publicações como "águas furtadas", "DiVersos", "Bíblia", "Bicicleta", "A cidade", "Abril em Maio", "Saudade", "Callipole", "Os arquivos de Renato Suttana", "Tempo Dual", "Quartzo, Feldspato & Mica", "Tribuna do Douro"... Autor de "Os objectos inquietantes", "Flauta de Pan", "Os olhares perdidos" (poesia),"Passagem de nível"(teatro), "Os labirintos do real - relance sobre a literatura policial" . Até se aposentar recentemente, foi o responsável pelo "Centro de Estudos José Régio"(CMP). Vive em Portalegre.