NICOLAU SAIÃO

CRÓNICAS EVENTUAIS

Os salteadores da arca perdida

  Este título, verdadeira incursão no senso de humor mais desanimado, está aqui apenas para sublinhar uma evidência: como a dada altura o herói de Spielberg, Indiana Jones de seu nome, conclui com certa ironia, “afinal o Xis marca o lugar”.

  Ou seja: na nossa triste circunstancia nacional, que umas vezes é mais triste e outras menos triste, a realidade – ultrapassando a ficção – vê-se por vezes de novo ultrapassada pela ficção. E vice-versa, num jogo cruel, ou divertido, de luz e de sombra conceptualmente e societariamente falando.

   Vejamos, por exemplo, o caso alegadamente impagável mas a meu ver compreensível de futuros magistrados que, numa atitude que diz bem como as coisas por cá vão (e continuarão a ir, pese à maquilhagem que os senhores próceres do ramo irão fazer cair sobre esse infelicíssimo sector) se entregaram a uma presumivelmente gratificante sessão de copianço, que alguns cavalheiros têm classificado como “lamentável”. Repare-se que nenhum deles – et pour cause - falou em criminal ou obscenamente vergonhoso. Ou seja: a delicadeza, que não confundo com descaramento ou elegancia discretamente cúmplice, segue sendo a tónica desses esteios sociais.

   Eu não gostaria de me estar a citar, pois posso ficar parecido com aquele conhecido geniaço televisivo que…Mas não ponhamos mais na carta: desta vez tenho mesmo de me auto-citar e recordar que em 2002 escrevi e publiquei um texto – que tive o gosto de enviar a muitas gentes, uns confrades e amigos (reagiram bem) outros só conhecidos (alguns desses ou nem me responderam ou deixaram de me falar – por medo de se comprometerem? por sentirem as barbas de molho? – um punhadinho tentou mesmo que os donos, na altura, do país me fizessem a folha – texto esse de seu título “O crime e a sociedade”, onde as características do Sistema Judicial luso eram no contexto analisadas.

   Referi então que as actuações dos digníssimos magistrados e demais parafernália, que em geral provocam a desconfiança ou a indignação, senão mesmo pior em casos mais destacados de alegada pouca-vergonha expressa detectada por observadores sérios, é lógica e natural e não decorre de esses senhores serem maus ou burlões, ou conscientemente criminosos. Não! Os actos prejudiciais para a Nação e os cidadãos são um cerne. Fazem parte da estrutura. Do estatuto. Por outras palavras: numa “sociedade criminal” é tão lógico um magistrado ser o que alguns diriam caviloso ou prepotente como o é um tigre comer um veado ou outro animal objecto de predação.

   Para essa estruturação social a pessoa humana é singelamente supranumerária, é apenas um número. Não objecto de vingança ou maldade, pois esses operadores, sem dolo algum, não têm consciência de que procedem mal, se olhados de fora. É-lhes intrínseco enquanto seres sociais.

  Assim, já se compreende que a senhora directora do CEJ, de maneira honrada possa vir pedir uma reunião urgente à novel ministra da Justiça para lhe comunicar, conforme os mídias se fizeram eco, que “a torrente de notícias sobre o CEJ que continuam a ser veiculadas põe em grave risco a imagem e credibilidade da instituição”.

   É escusado tentar-se que essas senhoras directoras e tudo à volta entendam, percebam, que o que fere a imagem desse CEJ é a sua dele própria existência num estado criminal. Tal como é dispiciendo gente vir com fúria exigir que a senhora seja posta na rua. Como disse Mark Twain, “Se Moisés não tivesse existido, teria existido outro indivíduo…com o mesmo nome”

    Por outras palavras: numa sociedade estruturada desta maneira (sociedade criminal) é inevitável que estas coisas existam, mas o mais grave não é isso. O realmente grave é o facto de que, com potencial certeza, os nossos Tribunais estão repletos de pessoas que, a exemplo daqueles, são criação e função de organismos que existem dessa forma própria, que visam serem não agentes de um Estado de Direito mas sim emanações de um Estado de privilégio, sedimentado e cimentado pelos seus laboratórios específicos.

   É isso que explica, por exemplo, que membros duma entidade que é órgão de soberania tenham Sindicato.

    Se o novo Governo quer de facto que o Estado de Direito exista (ou venha concretamente num futuro a existir, pois de facto não existe actualmente), crie leis que extingam o mais rapidamente possível esses sindicatos. E averigue se, durante o tempo em que existiram, eventualmente ainda que sem maldade agiram de forma diferente para o que os sindicatos em rigor existem - dar sustentáculo e ajuda às reivindicações salariais/profissionais dos seus membros.

    De contrário, a sua acção presuntiva de quererem criar uma Justiça justa é/será apenas teatro ingénuo ou ardiloso.

    Tenho o actual primeiro-ministro e os membros do seu governo como pessoas sérias, interessadas no bem da Pátria (e também gente lúcida, que sabe que se falhar ficará sem cabeça simbolicamente falando…).

    O que se lhes pede, e nem digo exige, é que não sejam ingénuos, nem vão na onda de uma sociedade criminal que tenta continuar a sê-lo pelos muitos anos em fora.

 

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Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.