1. A grande caçada
Hão-de os homens passar para lá de Plutão, penetrando no grande vazio tão estelarmente cheio e levarão talvez na bolsa, a amenizar-lhes a jornada, um trecho de Vivaldi. Ou de Schubert, de Bach, de Pierre Henry...
Numa das gavetas, numa das sacolas da nave, para os momentos de grande nostalgia ou de fome de encantamento, livros a granel. Resmas de livros...
Acredito nisto. Se não acreditasse mais me valia arrumar já as botas. Esses nossos descendentes deverão ser gente sensível - à guisa do tal que, quando esteve lá em cima, ao contemplar o azul da Terra sentiu um nó na garganta e as lágrimas à beira do olhar.
Aposto que neste ou naquele vaivém sideral não faltará um exemplar de "Pietr, o letão" ou de "O falcão de Malta".
Faz agora precisamente 76 anos que Hammet o concebeu. Ano de farta colheita, aliás: Agatha Christie publicava o primeiro relato de miss Marple - 10 anos antes surgira o primeira investigação de Poirot - e Simenon dava à estampa o primeiro Maigret. Frederick Irving Anderson editava o canónico "O livro do assassinato" e David Frome, por seu turno, publicava "Os assassinatos de Hammersmith", o primeiro livro do sr. Pinkerton. Por sua vez, o grande Francis Beeding... Mas fiquemo-nos por aqui, não valerá a pena pôr mais na carta.
O que, claro, eu quero dizer é que estes livros se lêem como se tivessem sido cozinhados mesmo agora. Por terem ponta de génio? Está de ver, mas principalmente porque a Literatura Policial (LP, "polar", "giallo", chame-se-lhe como se quiser) é um dos sinais específicos do nosso tempo - e o meio-século que foi da década de 20 (anos em que surgiram também H.C.Bailey, Dorothy L.Sayers, Freeman Wills Croft, Earl Derr Biggers, S.S.Van Dine e Anthony Berkeley) até aos anos 70, foram o território de caça dum certo imaginário que reflecte uma maneira de viver, de ser, de circular pelas veredas da existência.
Logo nos anos a seguir o caso mudaria de figura: não só a science-fiction se convertia em vedeta inquestionável como viriam à luz relatos em que o ambiente político-social seria equacionado, culminando com o aparecimento do "social-thriller", ficando expressas em cada narrativa a corrupção e a decadência de esteios do Estado (tribunais, polícias, entidades da representatividade democrática) doravante sujeitos a um franzir de olhos desconfiado.
No entanto, apesar da inocência perdida, poderemos continuar a sonhar um pouco, a ter um pouco de esperança - enquanto Sam Spade olhar o espectáculo dos bonzos do poder com um sorriso críptico nos lábios e Marlowe for andando sob a chuva, seguido pelo som nostálgico e difuso de um saxofone...
2. Ao vivo é mais bonito
Mal me sentara na “Cervejaria da Praça” depois de ter mandado vir um Ice Tea de pêssego, eis que o vi assomar do lado da “Rua da Cadeia”, onde os espanhóis vão comprar os “amarelos” que é como quem diz os objectos de cobre com que se fazem no matrimónio com as carmencitas.
“Lemmy! – chamei eu com um gesto o senhor Lemmy Caution, que com o seu metro e oitenta e quatro e o ar façanhudo à Eddie Constantine fazia um vistão no centro da cidade de Elvas naquele princípio de tarde caliente, fronteiriça, enquanto as senhoras na esplanada falavam das suas idas ao Lidl e ao Pagapouco e cortavam com afecto na casaca das ausentes, no linguajar cantante que lhes é próprio.
O grande detective chegou e sentou-se, esparramando os noventa e sete quilos na cadeira subitamente frágil, lusitanamente dolorida. Ergueu o dedo displicentemente e o criado acorreu com um copázio já repleto de “bourbon”, que ele arrebatou com a sua apreciada falta de cortesia. “O Philip já está lá dentro, informei-o. Está a tomar um “calvados” à Maigret com o Poirot...”. O Lemmy sorriu, fazendo com que o coração duma jovem que passava se pusesse a palpitar: “O Marlowe está a levar p’rá má vida o pobre do belga..., disse com o seu sotaque duro e arrastado de novaiorquino. Sabes se a miss Marple vai demorar?”. Não lhe respondi, tanto mais que naquele momento, dos lados da Igreja da Nossa Senhora da Assunção, bem equilibradinha nos saltos altos e bamboleando-se como uma leoa, vinha chegando a Effie Thompson, a mais que competente secretária do Slim Callaghan e grande ciumeira do Mike Hammer, que como sempre iria chegar atrasado e com um cheiro a pólvora. Levantei-me cavalheirescamente e a Effie fez um muchocho na direcção do Lemmy, que apenas a considerou de alto a baixo com o olhar número seis. Mas ela pareceu gostar. “Sai uma Sagres!”, clamei para o empregado magrito e de óculos escuros, vocês sabem, aquele que se abanica um tanto. E quando a Effie se sentou, cruzando meu deus as gâmbias envoltas em seda de primeira, chegaram o Marlowe e o Poirot vindos da sala do bar. O belga desbastando ainda uns restos de tremoços ou de amendoins.
E foi então que reparei que o Marlowe tinha um ricto na face. Olhava para o lado da praça, o cigarro pendente do lábio taciturno e o peito arquejando ao de leve com alguma preocupação.
Era um carro da Polícia que vinha a chegar. E que parou em frente da esplanada. Apeou-se um par de chuis: um deles, de quase pequena estatura, usava o cabelo airosamente penteado e um bigodinho como uma linha preta retinta. Sapatinho de tacão alto, o uniforme justo ao cabedal. Parecia a caricatura de um galã das fitas do Totó.
Energicamente, repuxou os lábios donairosos e disse para o Lemmy, mas olhando para todos: “Vamos a circular... Desabelhem já daqui. Dentro de um minuto quero vê-los na alheta. Vá, ponham-se a andar!”. A Effie ainda tentou uma frase qualquer. Os outros tal como eu, nem isso. O Poirot, via-se, engolia em seco. O Lemmy perdera a rijeza. O Marlowe deixou cair o cigarro do lábio.
Pusemo-nos no andor. Que remédio! Evidentemente - é o que acontece quando estamos a contas com um polícia a sério.
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