Não é soturna mas misteriosa. Um antigo lagar. Todos os dias a vejo, aquela casa casarão agora abandonada. Só frequentada, agora, por pombos. Segundo andar e sótão a toda a largura do edifício. E janelas, janelas de arcada, janelas em ogiva, janelas largas em sacada por onde se faziam subir as saquiladas de azeitona nos tempos da minha infância e adolescência. Todos os dias a vejo – que fica mesmo em frente do Museu aonde estacionava profissionalmente e onde todos os dias passo. Que todos os dias recordo.
Todos os dias? Todas as horas, que da janela do meu gabinete o via e hoje catrapisco na memória sem ser sequer preciso virar os olhos dentro da cabeça.
Casarão à maneira do Lovecraft, que se ele o pisgasse logo o meteria em estória de espantações. Agora, deserto de presenças humanas, já com algumas vidraças partidas, é a guarida dos pombos, dos pombos que como dantes lhe andam sempre em volta )são dum columbófilo encartado, desses que fazem largadas de Oviedo, Sevilha, Vila Nova de Poiares, o mundo…) sem ousarem entrar. Netos - bisnetos, quero eu dizer - dos que por aqui esvoaçavam quando eu era tão-só um puto.
Lançavam-se papagaios: feitos de papel de seda – azul, vermelha, amarela, duravam pouco mais que um dia mas prolongavam-se pelo tempo. E passavam as mulheres da queijaria, a soldadesca e os pedreiros, gente de cara seca e braços encordoados e alguns ficavam a olhar por um momento antes de irem abancar na taberna do sr. Abreu, taberna assim a modos que fina onde os manejadores do maço e das pachadas de cimento entravam com unção de quem entra já não digo num templo mas pelo menos numa sacristia. Os odores das iscas cozinhadas à maneira, o belo carapau de escabeche que nunca mais senti como presença de sedutoras iguarias, o moço de lábio leporino que levava as travessas carregadas de copos e de terrinas substanciais… E o senhor primeiro-sargento Cabanas (o que mais tarde me ensinou a esgrimir) que depois do toque à ordem ia buscar o jantar p’ra ele e sua senhora, acompanhado pelo impedido pacholas, soldadinho raso das bandas de Montargil que lhe transportava os comeres.
E o fiscal de isqueiros, funcionário da repartição de Finanças a quem se atribuíam também suspeitosos outros mesteres e que afinal, depois da bernarda abrilina, se revelou velho militante do partidão e distribuidor, pela calada da noite, de corajosas papeladas subversivas. E a dona Virgínia, cordial vizinha e esposa do senhor Casaca, que fazia brinquedos de madeira – camionetas coloridas, rocas e piões a granel e palhaços que davam cambalhotas suspensos numa barra de arame grosso. E os altares de S. João donde escorria e onde cantava a água numa ribeirinha de cenário, e a menina Maria que foi mestra de gaiatos toda a vida, e o polícia senhor Laranjo que era da terra da minha mãe e por isso eu não temia porque me dava ervilhanas e, já quase na reforma, um dia teve de me ir deter com um colega também das minhas relações, por mando do governador civil porque eu agia demais no velho Clube de Futebol do Alentejo e estava dado como perigoso oposicionista.
Os pombos. Dizia eu – os pombos. Parentes dos que todas as manhãs me acordam, pois vivem no rebordo da marquise por cima da janela do meu quarto, abandonados que foram por um cidadão columbófilo com demasiado apego a Baco e que por isso, flechado na figadeira, lá foi ter com o comandante dos olimpos romanos antes de tempo.
Pombos, pombinhos? Dum suave arrulhar para quem é um dorminhoco convicto. E lá no velho lagar, que eu bem a vi quando uma vez não me contive e espreitei pelo arrombado duma porta, há uma poeira muito fina no ar de outrora iluminada brevemente por raios de sol que lhe cruzam a penumbra mais consistente e onde o silencio para quase todas as horas se condensa e vai perdendo no tempo vivo.
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