Neste domingo - e lembro com gosto e alguma saudade o poeta alentejano
Manuel da Fonseca (já partido) que numa aprazível tarde em Portalegre
me contou, com o senso de humor de grande conversador que era seu
apanágio, as circunstâncias em que fez o seu poema "Neste
domingo vou fazer as coisas mais belas/ que um homem pode fazer na
vida"(...) - quero enviar-vos algo de pessoal.
Na
ocorrência, para os proverbiais dois/três minutos de eventual leitura,
o poema com que vou participar (dado que me foi endereçado pelos
organizadores um cordial convite) na antologia "Mulheres
pela Paz", que será editada e distribuída em Augsburgo (Alemanha)
primeiramente, durante a celebração do Dia da Mulher e, depois, estará
patente na exposição que acompanhará o Festival Nacional do Livro, de
Minas Gerais, seguindo depois para várias cidades brasileiras.
O conteúdo é dado em alemão, português e castelhano.
Aqui fica ele, remetendo-vos desde já o meu cordial e domingueiro
abraço de estima.
n.
|
As mulheres do
vento parado como um planeta extinto
as mulheres doentes
as mulheres que cantam com surpresa
o seu vestido
estranho como uma renda como uma absurda mancha
as mulheres do meu
dia como um peso de cores distintas
entre mim e o céu
Entram pela minha
boca e censuram-me docemente
Aqui, diz uma,
puseste o horror de um velho instante
ali, diz outra, não
deixaste repousar os devaneios
Há uma que paira,
como se me fitasse a direito, com as mãos
junto da testa, perto
dos olhos, os lábios palpitando
estremecendo como uma
pétala sobre a água
Mulheres de negro,
afagando pastas de couro em lojas improváveis
escrevendo em papéis
antigos fórmulas de gentileza
Mulheres que a
diabetes assolou como praga medieval
mulheres de pernas
como lírios rosados
andando ao longo duma
estrada francesa
as árvores coloridas
formando uma cortina imprecisa
Job de rosto erguido
amargo senhor das angústias
a sua face trémula
tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos
a sua mulher por
detrás, arrepanhando as vestes
Dizei-me mulheres
onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou
na madeira queimada
das velhas casas onde medrava a guerra
Vós sois o sustento
dos pontos cardeais
Lembro-me de ti,
Marion, o rosto rodando como um guindaste
e o fumo que soltavas
com um meneio elegante da mão esquerda
o fumo espalhado no
parque abandonado
os olhos tranquilos
frios
A rua solitariamente
sob a noite de Junho
e o cão o velho cão
dos bosques que trotava muito devagar
A vossa figura
palpitante, mulheres, irisada obscura
à luz frouxa da
manhã e o frio subindo até às portas como um animal a morrer.
ns
|
Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia,
Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto
individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto,
Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha,
etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia
ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia
geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan”
(1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do
tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica
(“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed.
Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O
armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos
de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o
mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos”
(2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade
em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas
sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado
em espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios,
“Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”,
“La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”,
“Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos),
“Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou os
livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas”
de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo
Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e
“Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado
mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março
de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”
(1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio
Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e
pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones
lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da
sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001,
a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e
cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.
Blog : Ablogando, em:
http://ab-logando.blogspot.pt/ |