Nova Série

 
 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO

Relembrando um programa com José Manuel Anes

“Os grandes transparentes” no  MAPA  DE  VIAGENS

Apresentação (após o indicativo musical)

   Professor universitário (doutorado em Antropologia), antigo operador especialista no laboratório da polícia científica (PJ), membro destacado da maçonaria regular e, principalmente - no caso a que nos reportamos - grande conhecedor dos mundos esotéricos e hermetistas, José Manuel Anes proferiu conferências no país e no estrangeiro e participou em espaços televisivos e radiofónicos debruçando-se sobre a sabedoria tradicional e diferenciados ramos da mística.

    Publicou também diversos textos e livros sobre o tema alquímico, as casas iniciáticas e o mundo de pensamento interior de Fernando Pessoa.

     É pois com muito gosto que dou as boas-vindas ao nosso convidado desta noite. (música)

  

José Manuel Anes

Introdução

   A expressão “os grandes transparentes” usa-se para aludir, em geral, aos enigmas do Universo. Foi cunhada pelo poeta André Breton, que durante toda a vida foi um exemplo de que ao amar a existência em todas as direcções e não apenas nas consentidas pelos detentores da “sabedoria de Estado” (ou seja, o discurso académico do Poder) o homem comum afixava o sinal mais alto da verdadeira inteligência prática (a que ultrapassa o existir convencional e limitado). Ou, se o quiserem, da verdadeira santidade civil – que é a dos que sabem reconhecer a sua figura no espelho dos anos, sem sombras enevoadas repelentes ou falsas – fideístas ou profanas – acocoradas a um canto da alma do Homem e forjadas pela superstição, o atraso relacional as tretas difundidas pelos mass-media sensacionalistas.

  Num mundo pretensamente religioso mas, afinal e segundo estimativas seguras, onde 82% das gentes ledoras consultam os horóscopos publicados nos jornais, importa interrogarmo-nos aqui e agora sobre o verdadeiro rosto do mistério. Ou da face escondida do quotidiano, digamo-lo desta forma, uma vez que hoje por hoje, como bem o demonstrou Jacques Bergier, as linguagens específicas e especializadas dos astrofísicos ou dos cirurgiões de ponta, por exemplo, constituem autenticos dialectos reservados, segregados do dia-a-dia por razões compreensíveis e nada censuráveis. (música)

   Mas o nosso mundo sente de novo, neste quarto de século, uma fascinação pelo oculto que não tenta camuflar. As próprias religiões reveladas funcionam frequentemente mais como lugares de ritual sem o qual os fiéis, na sua grande maioria, se escapariam a sete pés da sua re-ligação primordial. Ou seja, castrado durante muitos lustros pelo racionalismo estreito que interessava ao poder mercantilista, político e hierárquico incrementar e manter,esvaziado interiormente pelas pseudo-metafísicas de choque, o ser humano tenta voltar-se para outro tipo de realidades ou de crenças com maior apelo e que aparentem maior brilho ao seu imaginário.

   Umas não são mais que mistificações grosseiras, ainda que envoltas numa retórica que tenta mostrar-se plausível, como a astrologia de divulgação de massas. Outras, tendo uma tradição e um passado nobre e positivo, como a hipnose científica, vêem-se sem querer misturadas com a enxurrada espúria da espectacularidade de feira e sofrem com isso a incompreensão da turba. Nada mais natural, se atentarmos no velho rifão que nos diz que é frequente pagar o justo pelo pecador.

  Hoje em dia, mercê do desenvolvimento cultural e da difusão informativa, já se percebe melhor qual a verdadeira figura que o enigma assume. Já não há tantas sombras no espelho dos mitos. A própria psicanálise e a psiquiatria, durante largo tempo objectos de trabalho posto nos píncaros por certos ramos da medicina, passaram em razoável parte a estar ao serviço dos aparelhos controladores de mercado e da repressão social de estados totalitários, sendo demasiadas vezes privilegiada pelos tecnocratas e sectores autoritários oficiais e oficiosos e servindo deficientemente o cidadão e os seus direitos inalienáveis.

   Ainda que, principalmente depois do puxão de orelhas que o profundo investigador e cientista Thomas Szas lhes aplicou num Congresso Internacional que ficou célebre, já se movam com maior humildade e menor jactância. (música)

   Seja como fôr, os estudiosos de hoje possuem já maior espaço de manobra para situar apropriadamente os reais dados da questão, podendo efectuar com razoável eficácia a separação entre mistificações e possibilidades a considerar com seriedade no vasto continente que é o interior do Homem e que indubitavelmente nos reserva ainda um vasto continente de mundos a descobrir e a conhecer melhor.

   A seu modo, em suma, os investigadores do mistério encarado no sentido lato – glorificam a vida inteligente e salutarmente forjadora do conhecimento que antecede a sabedoria possível, que nenhuma capelinha, seja fideísta ou laica, pode hoje reclamar como exclusivamente sua ou, como em certo passado felizmente em parte extinto, manipular de maneira a obscurecer o autentico e luminoso rosto de Prometeu e de Adão. (música)

  (No decorrer do programa, ao sabor do diálogo com José Manuel Anes e no qual foram abordados assuntos tão diversos como a astrofísica moderna, a alquimia e lugares iniciáticos, as teorias analíticas “outer space” e as descobertas contemporâneas efectuadas na América do Sul, no Egipto e em certas ilhas da Oceania, foram lidos poemas de H.P.Lovecraft, Mário Cesariny e Rainer Maria Rilke, além de pequenos excertos de Eliphas Levi, Fernando Pessoa e James Conant.

  Foi, ainda, lido o texto de apresentação e análise crítica, que aqui se dá também a lume, do filme “A noite da águia”, de Sidney Hayers, um dos grandes cultores do cinema fantástico, exibido no dia seguinte em complemento do programa).

 

CONTINUIDADE

 

   Há em certas coisas antigas um vestígio

   De nebulosa essência, além do peso e forma;

   Um éter subtil, indefinido

   Ligado às leis do tempo e do espaço.

 

   Um débil, velado signo de sequências

   Que os olhos de fora descobrir não conseguem;

   Suas cerradas dimensões – onde os anos idos se acoitam

   Só por secretas chaves se devassam.

 

   Comovo-me quando os raios do sol ao entardecer

   Alumiam as velhas casas da quinta frente ao monte

   Colorindo de vida as formas que perduram

   De séculos mais reais que este que conhecemos.

 

   E nessa estranha luz sinto que não estou longe

   Dessa massa imutável em que as faces são as épocas

 

                             H. P. Lovecraft


***

Filme A  NOITE  DA  ÁGUIA 

    Considerado uma das obras-primas do cinema fantástico anglo-americano que tantas películas importantes nos deu (Frankenstein, Contos da Tumba, Drácula, Lua Vermelha, O Duelo) “A noite da águia” apresenta um rol impressionante de especialistas do fantástico, a começar pelo principal argumentista, Richard Matheson – provavelmente o melhor autor de novelas fantásticas do nosso tempo (a extraordinária trilogia “Shock”) – passando pelos actores, Peter Wingarde e Janet Blair, findando no autor da novela donde foi extraído o filme, o justamente famoso Fritz Leiber.

   Mas o que é, em suma, o fantástico? Dizia Miguel de Cervantes “Eu não creio em bruxas, mas lá que existem, existem”. Simplificando, mas de forma adequada, diremos que o fantástico ocupa o espaço de uma dúvida, mantendo a sua existência durante o tempo dessa ambiguidade fascinante que leva o Homem a viajar na direcção dos mais antigos e nebulosos mistérios do Universo, criando uma surpresa ante a qual se espanta e obrigando-o a recordar, por um fugaz momento que seja, os terrores atávicos que pulsam ainda hoje no mais íntimo de si mesmo. O fantástico representa um corte, uma quebra na razoabilidade dum quotidiano que cremos estável, sendo como é uma interrogação entre o inabitual e o que se nos apresenta desejavelmente como real. Ou seja, com efeito, esse lugar de trevas atravessado pelo clarão súbito de mil sóis referido por Claude Beylie. Entre o sobrenatural definido (que é outro género, o maravilhoso) e o dia-a-dia indubitável e sem surpresas repentinas, o fantástico cumpre a sua tarefa de lançar o espírito humano nas caves, nas salas assombradas, nas criptas recônditas do seu inconsciente. Para que, passado o abismo do mal, delas regresse transfigurado, redimido, purificado, inteiro. Em última análise, o fantástico possibilita o triunfo do Ego sobre o Superego utilizando as armas escondidas por este último.

   O mistério é a sua ponte de passagem para o claro dia, a verdade.

   Como se sabe, infelizmente os frankensteins e os dráculas existem – metamorfoseados em cientistas atómicos, em manipuladores mediáticos de consciencias, em homens públicos ardilosos e burlões urdindo manobras dirigidas a quem fingem acatitar com afectos, em colectivistas destituídos de respeito pelos cidadãos que buscam cinicamente usar para os seus fins. O fantástico, na literatura e na arte, pictórica ou cinematográfica, coloca-os frente á sua imagem real, como num espelho paradoxal. Trá-los á luz da natureza que eles procuram obscurecer, pois, segundo o provérbio, é com a manhã que os fantasmas se vão.

   Num recente escrito, referia Cláudia Villi que o nosso mundo está repleto de realismo na Arte, ao passo que vai mergulhando pouco a pouco no irrealismo dum quotidiano social. Deu-se portanto uma troca de posições. Tal facto reflecte a necessidade que o poder, abusivamente, tem de misturar o discurso intelectual com as suas escórias, para melhor incluir a tecnocracia ou o fideísmo autoritário na vida comum, falseando os problemas fundamentais do nosso tempo.

   É precisamente contra esse pretenso realismo – o conhecido a vida tal como ela é das enxurradas de telenovelas, por exemplo – que o cinema de imaginação se confronta, reconduzindo ao plano exacto os dados da questão, pois é através desse espelho imaginativo que o Homem, qual personagem de Lewis Carrol ou de Roald Dahl, pode passar definitivamente para o lado efectivamente real – o real absoluto dos verdadeiros sábios-cientistas sem preconceitos, dos poetas sem quinquilharias ou tagarelices fraudulentas, dos artistas cidadãos que os oportunistas tentam macular no universo dominante com que ainda hoje nos estorvam cavilosamente.

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Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/