Nova Série

 
 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO

DEZ E UM SÃO ONZE 
O último dos duros

Pois é… Já lá dizia o outro que o tempo é um cavalo na sua avançada célere para o depois, para o muito depois, para o tal futuro que deixa o passado como uma figura meio esbatida no horizonte dos tempos… 

Brinca brincando, sem que me desse muita conta, verifiquei que passaram mais de dez anos, precisamente onze, sobre o falecimento deste autor cujo passamento noticiei como segue, na altura, num espaço brasileiro onde também tive ensejo de epigrafar outros cultores da literatura de mistério, tão apreciada em geral por todos os que sabem ler e nessa conformidade certificam e conferem o género.

As agências noticiosas deram ontem conhecimento de que Mickey Spilane, que os apreciadores conheciam como o criador de Mike Hammer, falecera depois de à guisa do seu herói ter resistido durante muito tempo a uma pertinaz doença.

Era o último representante da chamada “geração hardboiled” (duros de roer), mas dum género realista e desencantado que ficava no outro lado do espelho de Raymond Chandler e Dashiell Hammett.

Mike Hammer, ao contrário dos chevaliers sans reproche Marlowe ou Sam Spade, passara pelas vielas enlameadas do Bronx e de Brooklin donde o seu criador era originário e onde recebera as primeira lições duma Nova Iorque onde o seu pai era barman. Onde Marlowe artilhava um soco no queixo, Hammer socorria-se dum balázio entre os olhos. O universo onde se movia perdera a rude polidez e os vilões não eram de facto cavalheiros, ainda que perigosos. Eram cruéis, frequentemente nefandos e o seu palco era o de uma sociedade donde o romantismo fora banido e vivia nos escombros dum final de guerra (que ele fez como instrutor de aviação) e os ergástulos da “guerra fria” onde o som que vinha do outro lado do oceano não era o dos amanhãs que cantavam mas o ululante queixume dos campos de concentração estalinistas que ele sempre combateu a par do nazismo.

Os membros do partidão, devido a isso, desencadearam contra ele diversas campanhas difamatórias visando calar o seu espírito indomável. E, no entanto, foi ele que num celebérrimo “Kiss me deadly” (O beijo fatal) – que Robert Aldrich levaria ao cinema e tornaria lendário pois pela primeira vez era abordado o problema da proliferação nuclear – desmascararia o perigo e a inconsciência dos que visavam aniquilar a humanidade através da defesa dos seus interesses egoístas.

Esta entre outras verdadeiras baladas novelísticas, cujos títulos aliás passariam a fazer parte não só da iconologia policiária como do próprio léxico quotidiano: “A grande caçada”, “A vingança é minha”, “A longa espera”, “A minha arma não perdoa”, onde eram traçados os sinais reconhecíveis das megatowns com todos os problemas típicos dum mundo em transformação acelerada: gangsterismo, corrupção, alcoolismo e traficância, nomeadamente nas esferas institucionais – mas igualmente o sinal de que numa sociedade aberta o mal pode extirpar-se, dado que não é de índole metafísica mas sim originado por coisas bem reais e, por isso, irradicável.

Tentaram chamar-lhe racista porque falava sem paninhos quentes nos bairros negros pululantes de miséria donde a compaixão estava banida; e reaccionário porque não fazia o jogo politicamente correcto dos que a leste visavam instaurar novos cárceres; e machista porque denunciava o matriarcado americano, com o seu ror de felonias e de deusas hipócritas e aproveitadoras; e brutal, porque – como o têm feito nos tempos mais chegados Giorgio Scerbanenco e Jean-Christophe Grangé – nos descrevia um mundo tirado a papel químico do que todos nós conhecemos dos noticiários mais exactos.

Mas hoje a panorâmica está completa e já se percebe melhor que afinal fazia parte como, noutro registo, Horace McCoy, Faulkner, Irwin Shaw e muitos outros, ao grande e riquíssimo filão dos realistas americanos.

Caiu o guerreiro – e, por mim, relembro-o e saúdo-o com um simples e conciso “longo e duro olhar”

So long, Mickey!

                                                                               ns

 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/