DEDICATÓRIA
Quando à noitinha vou ao nosso quarto,
de algumas vezes sou quem abre a cama.
Um dia mais passou, serenos restos
deixados no carácter dado às roupas.
É uma pausa adiantada ao mundo
que ali se fica reduzido em dois,
à nossa espera em vida o ser de sempre.
Aos pés da cama deixo o meu pijama,
tua camisa de dormir ao lado,
e é tudo tão banal, tão repetido,
tão preenchidos já os mesmos cheiros,
que não percebo as erecções surgidas
(há mais de quarenta anos condizentes),
de cada vez que vou abrir a cama,
igual bailado sedutor das aves.
Tua camisa de dormir ao lado
por lá se fica junto ao meu pijama,
há mais de quarenta anos – monogâmicos
(como a ciência diz de certos bichos).
Bem sei que prezas estes rituais,
e eu próprio à diligência tos conduzo,
com perspectivas no armar das roupas
– voltar à pausa adiantada ao mundo.
Para ser sincero, eu nunca mais entendo
que a Natureza venha assim concreta
e há mais de quarenta anos permaneça
sabedoria de animal com espírito
– quando à noitinha calha abrir a cama.
Tua camisa de dormir ao lado
por lá se fica junto ao meu pijama.
Lençol de cama é leve sem pijama,
tua camisa de dormir soltou-se
– o abrir da cama é cuidado eréctil
com habilidade no armar das roupas.
Zoologia exacta. É boa a sorte
que em casa aqui passou, serenos restos
das roupas corporais, quando à noitinha
se alastra e se decide uma saudade.
Porquê, mulher, abrir a nossa cama?
– se é maldizer por dois com precaução
a competência que às viúvas fica.
GENÉRICO
Nas lojas, antigamente,
havia o Mestre, que era o dono delas.
As suas Artes eram seu Ofício,
para que ensinava sempre um Aprendiz.
O Mestre tinha o seu Oficial,
homem já feito, casadouro às vezes,
que ele criava à mão das ferramentas.
O Mestre era o patrão, e em sua casa
todos viviam como pai e filhos.
Lá tinham percentagem e alimento,
que a carne é corpo para criar o espírito.
Da profissão faziam a família,
comunalmente a sua lealdade,
e cada obra, ideia produzida,
era o louvor unido deles todos
que em troca dos seus ganhos ao freguês
levavam pronto como novidade.
Esse freguês em pouco procurava
aquelas coisas para o seu enfeite,
delas se dava à sua precisão.
Ainda quase não havia máquinas,
das suas mãos directas, com aprestos,
provinham simples complicadas peças
de sentimento e cérebro trasladadas
da vida para o tempo, persistentes.
O quadro se fazia de esquadria,
a roda se fazia de redondo,
as regras eram quem dizia o ser,
ditavam liberdade e consciência.
– Deus era sempre a explicação distante
e perto de qualquer matéria-prima.
Também a História pode ser um sonho.
PARA OS ELEMENTOS VEGETAIS
Das minhas mãos os dedos se entrelaçam
e se prolongam no agir dos vimes.
– Ao coração se oferece um labirinto
por onde passa a mansidão das flores,
onde se cruzam, vegetais , as linhas
da paciência ancestral, solene,
que os homens aprenderam necessária.
Numa canastra, num cesto,
que toda a gente pode ter em casa,
utilitária e banal,
também lá está enredada
– a Natureza.
PARA AS PELES E OS COUROS
Erecto e suportado, eis o silêncio
do homem que lá está – nos horizontes,
medida feita ao prumo do cajado.
À sua volta, os pastos e as ovelhas,
as linhas dos chaparros mais os bácoros.
Que a vida dão às lãs, outras cortiças,
com suas peles e pelico aos ombros,
do atanado às botas e aos safões.
Ao tiracolo um corno que é de azeite,
mais os coentros duma açorda breve
no tarro que Ela encheu, com azeitonas.
– Colher de lata, um garfo de três dentes.
E o descoberto, o homem corporal,
no Alentejo é posto e está vestido,
suspenso do cajado e dos farroupos,
às lãs do gado manso no Inverno.
De curtimenta, toda a vida as peles
– tisnados couros no suão dos ventos.
Depois se lança aos dorsos companheiros
dos animais que ajudam com mais força
as réstias dos cabrestos e arreios,
as cilhas do conforto, as selas hábeis,
rédeas de tiro e tranças de puxante.
De curtimenta, toda a vida os couros,
por mais-valia do deitar das peles.
PARA A MADEIRA
Rasgada a árvore, a fímbria é de veludo,
desde a raiz ao galho, o mais discreto.
Todo o machado, toda a serra cortam,
suor de seiva às ordens para as lareiras,
olhos dos montes, cadelinhas fixas,
fazem-se mochos para assentar as cruzes.
Os ossos se aliviam no buinho.
A mão do homem sofre, é dolorosa,
mas é precisa já a tábua erecta
para a cama e para as cadeiras, para a mesa
do pão que dá sossego – amor e sorte.
À boca dos caixões se traz farinha,
que é basto o lavrador na salgadeira,
tem os barrotes com fumeiro alado.
Pele inocente que a garlopa alisa
às linhas e às fissuras do graminho.
Formão e escopro, goivas, uma enxó,
as mãos se fazem de martírios ágeis
para os instintos de morrer na cama,
à beira das portadas, das janelas.
E ao lusco-fusco do fazer dos filhos,
a paridura os dá com seu destino
no berço que é redondo, pau de azinho.
– Eis o mistério das madeiras limpas.
GAJO PORREIRO
Não me convinha, se morresse agora.
– Quem é que havia de levar o carro
para transportar para casa as nossas compras?
A dor chorada é sempre precisada,
nós não choramos só por nossa conta,
mas é por nossa conta que choramos.
– Quem é que havia de levar o carro
para transportar para casa as nossas compras?
Não me convinha, se morresse agora.
Faz sempre falta quem não faz mais nada
das frágeis miudezas e chatices,
pequenas nicas úteis dispensáveis
que ao dia-a-dia dão sustentação.
Faz sempre falta alguém assim em casa
que pouco faz mas sempre vai fazendo,
como num Quadro o seu caixilho à volta,
tão supletivo, secundário, inútil,
que o Quadro faz mais vista se o tiver.
As casas, nos seus móveis, corredores,
nos seus lugares à mesa, ajustamentos,
arrumações, cuidados, diligências
que até numa toalha são sinal
de bem dobrada para não dar trabalho,
trazem indícios do morrer de alguém
que de manhã ligava o esquentador,
nunca esquecia as chaves , e à noitinha
baixava as persianas das janelas.
Alguém assim faz falta quando morre,
porque não pode já deixar recados,
não vai de companhia fazer compras,
não vai levar nem já buscar amigos …
… e agora! que fazer àquele carro?
… quem vai agora já escolher os vinhos?
… quem é que tem mais ditos para as visitas?
… e o IRS, as contas, pagamentos?
… quem vai à
Caixa levantar dinheiro?
– tudo tão simples, de ansiedade e fluido,
mulher e filhos também são tarefas
de ir ao vidrão e lá deitar garrafas…
… fazer rascunhos e escrever à máquina
… deitar lá
fora o lixo, ir aos Correios.
Alguém do nada, só morrer faz falta.
A dor chorada é sempre precisada.
Ninguém faz nada, é sempre alguma coisa,
porque ao morrer, essencial canseira,
figura que já foi destes cuidados
persiste como um quadro de Pintura
ali deixado sem o seu caixilho.
Uma existência vale mais que as artes,
mesmo que o Quadro fique sem caixilho.
Para o mesmo Quadro façam mais molduras,
interessa mais o Quadro que o caixilho…
… mas não se esqueçam de levar o carro,
e é já para o ano, ao posto de Inspecção.
Alguém será capaz de o conduzir.
“CARTA DE PÊRO VAZ DE CAMINHA”
…e vai-se daqui muito a Badajoz,
poiso de Espanha a iludir Madrid
para quem de ser baixinho é incapaz
de se atrever ao largo de horizontes.
Dez léguas distamos de Elvas
para se comprar um vestido,
dez léguas por vezes bastam
da raia de Espanha adentro…
Porque estas terras, senhor,
não sendo de grandes frutas,
muito ao revés dos negócios
das nossas lojas reais
de panos e vitualhas,
sinceridade das falas
dos índios cá pelos Cafés,
são ágeis e perspicazes
no comércio do lazer,
quer de dia quer de noite,
com jogos e mulheres encomendadas
para as tabernas.
E os amuletos exóticos,
as penugens, os berloques
das macumbas aldeadas,
tisanas, fumigações,
os ritos, os sacerdotes,
ouve dizer-se que luzem
por ser pequena a divisa
nas alfaias das precárias
e reduzida a partilha,
– muito cerce!
que os escribas fazem dos dízimos.
É maravilha de ver
os chefes das velhas tribos
alterados, e as matronas,
comparadas minguadas
na pecúnia, a consolar-se
de sociedades e custas,
asinha por Badajoz.
Há muitos rapazes espertos
analfabetos e ricos
que passam de berlinda e de candonga
crivados num alvará
dos que fazem licitude.
Há muitos casos de amantes
contratadas
e proxenetas nos templos
das novas feitiçarias.
São outras as raparigas
legalizadas por sorte
dos mesmos homens diferentes,
os lavradores sem lavoura
que, agora, comerciais,
deixarão de ser noviços:
– previstos os respeitáveis
das colónias.
Nem todos, porém, senhor,
aqui são por mais igual.
De antigos há muito povo
de bem haver entretido
na calma do seu serralho.
Mas no tempo é destemperada
cobiça das vossas terras.
Daqui, como dizia, a Badajoz,
terra de Espanha a iludir Madrid,
ainda por lá vai bastante gente
expedita de boa fé.
Haveis ainda o reduto
(Deus guarde vossa mercê!)
de quantos já se preparam
para resistir e ficar.
Com eles negociai
residência e alvedrio, bons aprestos,
– que as pragmáticas exigem
e os alcaides.
De Portalegre, senhor,
não tenhais esperanças.
E acautelai-vos também,
nestas paragens, de máquinas
e dos Flippers.
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