Urgente... com toda a urgência
Isso começa aos poucos: perda da
esperança
e lento sumiço dos outros... em nome do
sofrimento,
quando a lucidez se perde aos pés das
ruínas,
naquele abismo-berço de prédicas
imaginárias.
E nós percebemos as hordas de imagens
tomar de assalto
a inteligência amorosa, forçando-a a ser
visível.
Um esfarelar vagaroso da consciência
ganhando a narração dos fatos,
já não ouvimos a última que precede a
cada evento,
e o simulacro age sem relaxar, aniquila a
essência do ver.
De repente...
Nada mais nos resta,
senão essa discordância entre o dito e o pensado,
para atuarmos de modo justo, quer dizer, louco.
Mas...
Nós queremos erguer um
mundo do céu previdente, do dia atento a todas as coisas;
com um tênue apelo ao bafejar da pureza,
buscamos na floresta escura, que se apossa das
ideias humanas,
um sutil pensamento
devorando a noite de questões invencíveis.
Nós vamos seguindo, tais quais os raios de
estrela, um pensamento liberto do impasse da teoria;
nós vislumbramos as cores vivificadas pela simples
presença do outro,
ouvimos a coragem do grito engajado na ascese;
mantemos a vida amarrada ao corpo que se diz insubmisso;
temos aquela força da invisível sabedoria e da triunfante volúpia de nosso
desejo;
traçamos, contra a mediocridade,
o
solitário destino de uma palavra ativa no sussurrar das irrequietudes;
nós somos a relva louca dos
interstícios, alta pelo caminho da infância dos séculos,
e, no devir dos homens, marchamos junto
aos deuses.
Sim,
Nós estamos em cena, em volta da liberdade que
vem acorrendo, debaixo do sol, aos trigais de mil e uma histórias;
hoje, não menos que ontem, nós não mentimos para nós mesmos;
temos a alma rebelde sem
traços nos livros
nem cifras a
competirem;
nós somos órfãos
felizes no recital de fronteiras incultas;
nós somos tão só
uma estação de homens e de mulheres e de crianças, todos
reunidos na árvore cujos frutos despertam
e
nós testemunhamos...
testemunhamos a sombra sobre as coisas;
testemunhamos o inumerável;
testemunhamos aquela palavra
que se reflete no pensamento,
uma palavra repleta de cantos do
pressentir,
palavra liberta do necessário
falar.
Nós vamos, embora feridos e
enlutados,
atear o fogo das falas;
nós vamos plantar a árvore do
diálogo abandonado;
nós vamos criar, na língua dos
cumes, o livro do sentido inicial da vida;
nós vamos, partindo dos limiares
movimentados da consciência, em busca de rasgos audazes,
nós vamos com nossos gostos
sensíveis, voltados contra si mesmos;
nós vamos, enfim, perguntar com
tanto arroubo: de que adianta poupar o afago se o que abraça não se
subtrai aos abraços da eternidade?
Nós
vamos lá
onde quem dá não retém,
onde o mínimo dos refúgios nos
oferece um reino,
onde compartilhar é como
manifestar-se,
onde o grito ressoa sempre na hora
da terra natal,
na hora de devolvermos a noite do
sonho aos homens;
nós vamos lá para os pretendentes
ao trono,
bem como os dominadores e os
impostores,
serem cercados e, afinal,
derrotados;
nós vamos com o rebelde,
a socorrermos das flamas a brasa,
com a migração selvagem das noites
geladas –
noite da tirania, noite azul dos
executados –
nós vamos lá onde a afeição não
fere a árvore para punir sua seiva, onde o caos nos livra de nossas
tolices de homenzinho hipotecado do cotidiano.
Nós vamos por toda a luz e a sua
dança,
pelo que descobrimos de
incorrigível,
pela brecha que jorra,
através do grito, daquele grito que
sobe a passos do mundo inteiro,
grito mais forte do que se grita,
grito refugiado a reiniciar o
sermão dos justos;
para além dos armistícios e das
implantações do viver,
nós vamos à fortaleza humana onde
um homem é dado ao outro,
ao seu poema;
nós vamos atravessando a tempestade
das falas junto a cada um,
após mentiras,
com a facção das sombras em nossos
olhos,
com a facção dos humildes em nossas
mãos,
mais alto que todas as contas de
horizontes e de massacres,
tão grandes como se ergue a utopia
no revezar das enchentes e das vazantes históricas,
quando tudo chama pelo alvorecer
para salvar os foragidos da noite.
Homem, escreve sobre as nuvens,
escreve
acima do esquecimento,
no coração da casa da aurora;
escreve a recordação... para te
recordares que somos dez mil amantes contra o inumerável.
Ei-la, a noite alumiada pelo
incêndio das marchas rumo à frente sublime dos companheiros;
ei-lo, o amor nas mãos das mães e
dos filhos e das irmãs revirando os destroços, com os seus dedos
ensanguentados, para reconhecer o filho, o pai, o irmão enterrados;
ei-la, a graça mui simplesmente de
pé, afastando o jugo a assaltar nossas solidões;
eis o céu de audácia aos joelhos
feridos do humilhado,
eis a verdade estendida ao longo do
rio,
a relva que brota junto aos lábios,
a fonte sob os farrapos;
eis o silêncio do bálsamo sobre a
voz perdida.
Sim,
nós
falamos:
Dizemos a desmedida,
dizemo-nos pertencentes a um
sorriso e desvendamos o dédalo de seus segredos
e a espera virada para o horizonte,
sem possessão dissimulada na voz,
sem usarmos palavras falsas;
entre o real turbulento e o
mistério de seu apelo,
desde as vésperas roucas dos
desamparados,
dizemos a melancolia daquele espaço
que põe à prova, escala ou permanência, qualquer um de nós;
nós dizemos o raio elucidado de
tanto falar verdade,
quando nada mais aparece senão a
atenção do horizonte à luz do dia.
Nós abrimos o viveiro das queixas,
o florescer das vias do esgotado.
Nós cremos que esteja na hora de
atingir a palavra, os gestos de tudo o que ficou cego e surdo quando não
ouvíamos mais
nem enxergávamos nada, tanto nossos
sentidos estavam cativos.
Ergue-se uma fome insubmissa ao
banquete das falas,
sem outra riqueza a oferecer senão
o mistério de sua dança:
aquela dança é um verdadeiro
complot da ideia em sua contradição mais ampla, quando ela se reconhece
enfim estrangeira a si mesma.
Ela se chama a ideia poética e
permite-nos ter esperanças ao passo que reaprendemos a arte da inocência.
Se não quisermos ser vítimas ao
raiar do sol,
é preciso cantarmos mais cedo do
que os pássaros,
é preciso despirmo-nos, mesmo que a
luz sádica nos abrase,
termos palavras terrificadas,
atônitas com a ordem e com os
jogos,
palavras bem viscerais
e olhos subitamente demasiados para
os nossos rostos
e mãos nunca vistas,
a segurar mil ideias e toques,
valores e sonhos...
Enfim, é urgente amarmos,
amarmos com toda a urgência.
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