Nova Série

 
 

 

 

 

 

PHILIPPE TANCELIN
Dois Poemas

Urgente... com toda a urgência

 

       Isso começa aos poucos: perda da esperança

       e lento sumiço dos outros... em nome do sofrimento,

       quando a lucidez se perde aos pés das ruínas,

       naquele abismo-berço de prédicas imaginárias.

       E nós percebemos as hordas de imagens tomar de assalto

       a inteligência amorosa, forçando-a a ser visível.

 

       Um esfarelar vagaroso da consciência ganhando a narração dos fatos,

        já não ouvimos a última que precede a cada evento,

        e o simulacro age sem relaxar, aniquila a essência do ver.

 

                                     De repente...

Nada mais nos resta, senão essa discordância entre o dito e o pensado,

para atuarmos de modo justo, quer dizer, louco.

 

                                      Mas...

Nós queremos erguer um mundo do céu previdente, do dia atento a todas as coisas;

com um tênue apelo ao bafejar da pureza,

buscamos na floresta escura, que se apossa das ideias humanas,

um sutil pensamento

devorando a noite de questões invencíveis.

 

Nós vamos seguindo, tais quais os raios de estrela, um pensamento liberto do impasse da teoria;

nós vislumbramos as cores vivificadas pela simples presença do outro,

ouvimos a coragem do grito engajado na ascese;

mantemos a vida amarrada ao corpo que se diz insubmisso;

temos aquela força da invisível sabedoria e da triunfante volúpia de nosso desejo;

traçamos, contra a mediocridade,

o solitário destino de uma palavra ativa no sussurrar das irrequietudes;

nós somos a relva louca dos interstícios, alta pelo caminho da infância dos séculos,

      e, no devir dos homens, marchamos junto aos deuses.

 

                                             Sim,

Nós estamos em cena, em volta da liberdade que vem acorrendo, debaixo do sol, aos trigais de mil e uma histórias;

hoje, não menos que ontem, nós não mentimos para nós mesmos;

temos a alma rebelde sem traços nos livros

nem cifras a competirem;

nós somos órfãos felizes no recital de fronteiras incultas;

nós somos tão só uma estação de homens e de mulheres e de crianças, todos        

      reunidos na árvore cujos frutos despertam

 

                                                e

                                                nós testemunhamos...

testemunhamos a sombra sobre as coisas;

testemunhamos o inumerável;

testemunhamos aquela palavra que se reflete no pensamento,

      uma palavra repleta de cantos do pressentir,

palavra liberta do necessário falar.

 

Nós vamos, embora feridos e enlutados,

atear o fogo das falas;

nós vamos plantar a árvore do diálogo abandonado;

nós vamos criar, na língua dos cumes, o livro do sentido inicial da vida;

nós vamos, partindo dos limiares movimentados da consciência, em busca de rasgos audazes,

nós vamos com nossos gostos sensíveis, voltados contra si mesmos;

nós vamos, enfim, perguntar com tanto arroubo: de que adianta poupar o afago se o que abraça não se subtrai aos abraços da eternidade?

 

                                                   Nós vamos lá

onde quem dá não retém,

onde o mínimo dos refúgios nos oferece um reino,

onde compartilhar é como manifestar-se,

onde o grito ressoa sempre na hora da terra natal,

na hora de devolvermos a noite do sonho aos homens;

nós vamos lá para os pretendentes ao trono,

bem como os dominadores e os impostores,

serem cercados e, afinal, derrotados;

nós vamos com o rebelde,

a socorrermos das flamas a brasa,

com a migração selvagem das noites geladas –

noite da tirania, noite azul dos executados –

nós vamos lá onde a afeição não fere a árvore para punir sua seiva, onde o caos nos livra de nossas tolices de homenzinho hipotecado do cotidiano.

 

Nós vamos por toda a luz e a sua dança,

pelo que descobrimos de incorrigível,

pela brecha que jorra,

através do grito, daquele grito que sobe a passos do mundo inteiro,

grito mais forte do que se grita,

grito refugiado a reiniciar o sermão dos justos;

para além dos armistícios e das implantações do viver,

nós vamos à fortaleza humana onde um homem é dado ao outro,

ao seu poema;

nós vamos atravessando a tempestade das falas junto a cada um,

após mentiras,

com a facção das sombras em nossos olhos,

com a facção dos humildes em nossas mãos,

mais alto que todas as contas de horizontes e de massacres,

tão grandes como se ergue a utopia no revezar das enchentes e das vazantes históricas,

quando tudo chama pelo alvorecer para salvar os foragidos da noite.

 

Homem, escreve sobre as nuvens, escreve

acima do esquecimento,

no coração da casa da aurora;

escreve a recordação... para te recordares que somos dez mil amantes contra o inumerável.

 

Ei-la, a noite alumiada pelo incêndio das marchas rumo à frente sublime dos companheiros;

ei-lo, o amor nas mãos das mães e dos filhos e das irmãs revirando os destroços, com os seus dedos ensanguentados, para reconhecer o filho, o pai, o irmão enterrados;

ei-la, a graça mui simplesmente de pé, afastando o jugo a assaltar nossas solidões;

eis o céu de audácia aos joelhos feridos do humilhado,

eis a verdade estendida ao longo do rio,

a relva que brota junto aos lábios,

a fonte sob os farrapos;

eis o silêncio do bálsamo sobre a voz perdida.

 

Sim,

nós falamos:

Dizemos a desmedida,

dizemo-nos pertencentes a um sorriso e desvendamos o dédalo de seus segredos

e a espera virada para o horizonte,

sem possessão dissimulada na voz,

sem usarmos palavras falsas;

entre o real turbulento e o mistério de seu apelo,

desde as vésperas roucas dos desamparados,

dizemos a melancolia daquele espaço que põe à prova, escala ou permanência, qualquer um de nós;

nós dizemos o raio elucidado de tanto falar verdade,

quando nada mais aparece senão a atenção do horizonte à luz do dia.

 

Nós abrimos o viveiro das queixas,

o florescer das vias do esgotado.

Nós cremos que esteja na hora de atingir a palavra, os gestos de tudo o que ficou cego e surdo quando não ouvíamos mais

nem enxergávamos nada, tanto nossos sentidos estavam cativos.

 

Ergue-se uma fome insubmissa ao banquete das falas,

sem outra riqueza a oferecer senão o mistério de sua dança:

aquela dança é um verdadeiro complot da ideia em sua contradição mais ampla, quando ela se reconhece enfim estrangeira a si mesma.

Ela se chama a ideia poética e permite-nos ter esperanças ao passo que reaprendemos a arte da inocência.

 

Se não quisermos ser vítimas ao raiar do sol,

é preciso cantarmos mais cedo do que os pássaros,

é preciso despirmo-nos, mesmo que a luz sádica nos abrase,

termos palavras terrificadas,

atônitas com a ordem e com os jogos,

palavras bem viscerais

e olhos subitamente demasiados para os nossos rostos

e mãos nunca vistas,

a segurar mil ideias e toques, valores e sonhos...

Enfim, é urgente amarmos,

amarmos com toda a urgência.

Saudades do país de vós (1)

 

1  

Altos passos de extravio...

essas árvores

 

o precipício se abre virado pelo avesso,

a estação desnuda se inclina

sobre o cruzamento,

elas vos acompanham...

conduzem vossa chegada.

 

Vós ides

um defronte ao outro,

provendo o esboço

de céus indizíveis.

 

Passais a fronteira,

cada um em seu caminhar

rumo ao sonho fatal;

transbordando a noite,

atravessais a espera

com um passo a mais.

 

2 

Ela viu tanto dele

que está nevando

sobre a sua aproximação.

 

Ele viu tão pouco dela

que ergue uma árvore

pela causa perdida

de seu clarão.

 

Entre os dois

a in-visão

 

branca,

imaculada

constela.

 

3

Sempre caminharão

ao revés um do outro,

caminharão

entre luz e sombra,

presença........ausência,

por essa via que ferra

o seu destino,

 

até o lugar onde surgirá,

em plena festa,

eterno abraço

 

ou decepção.

 

4

As árvores curvas,

quase pendentes,

para vós dois.

 

Há um deserto

que dorme ao vosso lado.

 

Vejo-vos

ir e vir,

passo a passo, postos à prova

naquele terrível nu

que vos tem conjugado

com nossos silêncios.

 

[1] Um homem e uma mulher que não se conhecem, naquele parque de Istambul sob a neve...  

 

O AUTOR: Nascido em 29 de março de 1948, Philippe Jacques Xavier Tancelin é poeta e filósofo, professor emérito da Universidade de Paris. Dedicando-se ao estudo das interligações entre a filosofia e a poesia, bem como das condições e medidas em que o fazer poético poderia participar na construção de uma nova epistemologia, criou e dirigiu, ao longo de toda a década de 1990, múltiplos núcleos criativos nos meios universitário, escolar e marginalizado; em 1991 fundou, auxiliado por Geneviève Clancy e Jean-Pierre Faye, o Centro Internacional e Interuniversitário de Criação de Espaços Poéticos (CICEP) que preside até hoje. É autor de diversas obras literárias, galardoadas com o Prêmio Internacional dos autores dramáticos (França, 1990) e o Prêmio Internacional de poesia Branko Radičevič (Sérvia, 2007) e parcialmente traduzidas para 15 idiomas.

Traduções de Oleg Almeida 

Oleg Almeida (1971, Bielorrússia) é poeta, ensaísta e tradutor, sócio da União Brasileira de Escritores (UBE/São Paulo). Autor dos livros de poesia Memórias dum hiperbóreo (2008, Prêmio Internacional Il Convivio de 2013), Quarta-feira de Cinzas e outros poemas (2011, Prêmio Literário Bunkyo de 2012), Antologia cosmopolita (2013) e de numerosas traduções do russo (Crime e castigo, Diário do subsolo e O jogador de Fiódor Dostoiévski; Pequenas tragédias de Alexandr Púchkin, entre outras) e do francês (O esplim de Paris: pequenos poemas em prosa de Charles Baudelaire, entre outras

 
 
 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/