Nova Série

 
 

 

 

 

 

PATRICK CINTAS
Ode ao vinho

O vinho
que não está certo
tampouco está errado.
Nada de copo
para bebê-lo,
apenas o sol
e a minha espera
sob um carvalho,
onde a pedra
é o limiar
de mim mesmo.
Pedra cavada
por dez gerações
de pastores.
As nádegas deles
moldaram a posição ideal
de quem fica sentado,
em face daquela distância
que nos separa
da civilização.
O vinho também espera,
e o momento vem sempre:
a noite acossa o dia,
o qual não perece –
caso contrário, ele renasceria,
e nós teríamos tempo
para recomeçar
em vez de substituirmos a nossa espera
por algum jogo.
O vinho tem suas razões:
não explica nada.
Nem nada concede.
Não substitui
o que falta,
o que acaba,
em nosso olvido.
A terra do vinho é obra-prima
dos lugarejos sagrados
à nossa espera.
O vinho escorre
por cômoros duros,
e nós percorremos o invisível
sem encontrarmos palavras
para dizê-lo.
A terra
em leves
declives,
as escavações
das chuvas,
a relva louca
e os caminhos
pré-calculados 
na trajetória
das pedras
que descem
dos muros
de mármore
e de calcário.
O vinho reascendia
ao primeiro dia
e à primeira fermentação,
à alquimia 
do átimo
que ninguém ainda
viera a esclarecer.
O vinho e essa terra
se entrelaçavam
como as aves
no céu,
e eu procurava o sono,
como se ele não existisse,
como se me coubesse
inventá-lo.
Nós escrevemos
na casca das árvores
com a ponta da faca,
testemunhando a faca
momentos de desespero
na carne daquelas mulheres
ou na deste homem
que não esperou pela sua hora.
O vinho dos velhos garrotes
cedeu o lugar de quem vence
ao vinho das perpetuidades
bem relativas.
Porém, não é coisa pior,
que tu não te sentes tão odiado.
E matas mais facilmente
que a doença.
Vinho daquelas crianças
nascidas do gozo,
se é que a gente não mente
em crer nisso.
Uma mulher intervém,
linda como a aveia pelas encostas
ou má como a água das agaváceas;
uma mulher chega ao ponto marcado
para levar a cabo
a obra do vinho,
dando-lhe um sentido,
mais uma 
razão.
O vinho não está certo
tomando o lugar da mulher 
que o acaso lhe pôs no caminho,
mas, se não foi o acaso
e se a mulher partiu
sem você,
pois você não iria embora
com tanta facilidade,
então a espera
fica pior
que os giros infames
do torno,
pior que a cama
arrumada todos os dias
por hábito
de manter a ordem.
O vinho saía da minha boca
como as frases
das tuas mãos,
derramadas sobre a minha carne
adormecida,
criatura de minha aptidão
para criar de novo as circunstâncias
previstas
pela comunidade,
criatura nascida do cruzamento
da transparência
e do invisível,
planos secantes
das interrupções
ou, quem sabe, dobras
de meus lençóis. 
O vinho,
a terra.
A terra
e nossas andanças.
As nossas andanças
e a espera
dos que viajam
em vez de cumprirem as suas promessas.
Nossas janelas sem vidros.
Nossos cômodos sem janelas.
As lajes de nossos telhados.
O raio oblíquo do amanhecer
refletido por um espelho
posto com precisão.
Virá o outono
com sua corrente de mármore branco
que fez os jornais locais
exsudarem a tinta.
Depois o inverno no ponto marcado
cristalizará infinitamente
as superfícies.
Mais tarde a primavera
e suas estimativas
de rentabilidade. 
Tão só o verão
é que resta
para o vinho,
e, mais ainda,
sob condição
de bebê-lo
e de esperar dele
o que lhe pertence
pelo direito
da primazia:
o sonho
e seus bichinhos
de muros
e de painéis,
linguajar do deserto
e língua de nosso arrimo
no chão nativo.
Ei-lo aqui, o vinho
cantado por este homem
que o conhece.
Vinho das noites e das manhãs.
Fio de Ariadne de nossos relatos.
Memória de nossos caminhos
e das vielas
de limiares que se inspiraram
nos faniquitos da rocha.
Lembrança e parcial olvido
daqueles melhores momentos
do crescimento do homem,
ao mesmo tempo no coração e à margem 
da civilização.
Vinho de nossas cortinas puxadas
e das cadeiras nos limiares.
Vinho da sagacidade
e do desespero.
Vinho da compreensão
e de nossas viagens.
Os gatos traspassam o ar
como os morcegos,
e o cão
adormece
em cima de uma mureta
largada.
Mais homens para baterem papo
e mais mulheres para assomarem em suas janelas,
e mais crianças para a velocidade dos limiares
e mais idosos para a paciência dos muros.
Eis onde estamos,
o que deixamos,
o que nada substituirá.
Sem razões não há vinho,
porém o vinho não está certo,
e, dado aquilo que evoquei agorinha,
tampouco se pode dizer
que ele está errado.
De resto,
seria um personagem mesmo,
visto que o bebemos? 
A poesia teria um corpo mesmo,
se nos nutríssemos dela?
 

O Autor - Patrick Cintas não tem grande nome, pelo menos fora da França onde reside. Modesto e reservado, alheio a toda e qualquer celeuma mediática, mantém-se distante dos holofotes, fala pouco de si mesmo, não insiste em buscar reconhecimento público. No entanto, é dono de uma verdadeira cornucópia literária, autor de incontáveis romances e poemas, ensaios críticos e crônicas culturais. Sem se gabar de seus sucessos nem se queixar de seus problemas, ele faz o que se deve fazer quando se é escritor: ele escreve... O extenso poema cuja versão portuguesa se dá aqui é um dos exemplos característicos de sua espetacular criatividade. Espero que nossos leitores, amantes do bom vinho e da boa poesia, gostem dele. E quem se interessar pelas obras de Patrick Cintas em geral, quem quiser conhecê-las a fundo, fará bem em visitar o site da editora “Le Chasseur abstrait” e da revista virtual RALM que ele dirige (www.lechasseurabstrait.com), assim como o seu próprio site (www.lechasseurabstrait.com/television/), os quais decerto lhe parecerão dignos de atenção.

Traduções de Oleg Almeida 

Oleg Almeida (1971, Bielorrússia) é poeta, ensaísta e tradutor, sócio da União Brasileira de Escritores (UBE/São Paulo). Autor dos livros de poesia Memórias dum hiperbóreo (2008, Prêmio Internacional Il Convivio de 2013), Quarta-feira de Cinzas e outros poemas (2011, Prêmio Literário Bunkyo de 2012), Antologia cosmopolita (2013) e de numerosas traduções do russo (Crime e castigo, Diário do subsolo e O jogador de Fiódor Dostoiévski; Pequenas tragédias de Alexandr Púchkin, entre outras) e do francês (O esplim de Paris: pequenos poemas em prosa de Charles Baudelaire, entre outras
 
 
 
 
 
 
 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/