|
Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
Nova Série |
|
|
|
|
NICOLAU SAIÃO
|
|
O armário de Midas |
POEMA
Uma coisa pequena
quase inútil, afeiçoada no dia
tão vaga na noite
afastada nas horas do mundo
calada
porque não mais
que objecto achado algures.
Além do elemento vegetal
para todos os anos
como diminuto utensílio
só para ser olhado
nem sequer pensado
De só ser visto
pelos olhos amados.
|
|
SAUDAÇÃO
(postal)
(a Julio/Saúl Dias)
“Não conheci o pintor nem o poeta.
Não sei se era mau ou bom como pessoa
Mas espero que fosse um bocadinho mau
O suficiente para não ser
mau a valer.
Só li um poema dele só vi um desenho dele.
Sei que em pequeno viveu perto do mar
Disseram-me que mais tarde morou noutra cidade
Onde havia não gaivotas mas cegonhas.
Disseram-me ainda que gostava de rosas
E de figurinhas de barro
e que sentia
Anjos a pairar por cima dos telhados. E isso
É bom, o coração dos anjos bate ao ritmo da chuva
Ou do andar dos animais, por vezes há anjos
Que morrem atropelados numa estrada enlameada.
Disseram-me também que ele falava baixinho e
pausadamente.
Sim. Creio que estou a ver. Parece-me que o conheço
Mais ou menos: umas vezes monstro, outras
Flor, ele devia noutras alturas ser também peixe ou
árvore deslizante
Devia gostar de fruta, de mexer nos utensílios dentro
de casa
De ficar parado a pintar no Inverno.
Penso em tudo isto, talvez fosse mesmo assim.
Mando-lhe a minha benção
Peço-lhe a sua benção.”
|
|
PARÁBOLA
O verde está ao norte na esplanada da manhã.
O azul por dentro da camisa do primeiro barítono.
O castanho debaixo duma carta dum primo distante.
O preto ficou parado: estendeu-se sob uma laranjeira.
O anil, por seu turno, nada fez.
O violeta censurou-lhe a preguiça e agora vão os dois
de braço dado.
O cinzento mora no sovaco de um cardeal francês e
ressona.
O amarelo foi devagarinho aninhar-se por detrás duma
garrafa de conhaque.
Algumas outras cores dançam de roda. Duas delas
cantam:" Naquele dia
o meu amor nadou
sete quilómetros/ ao longo dum rio caudaloso
e os girassóis
estremeceram/ cheiínhos de saudade".
Uma cor pequena e modesta subiu para cima duma cadeira
e pediu atenção. "Era
uma vez", disse com voz clara e sóbria
- e todas as cores, sonolentas, desataram a sorrir.
|
|
SEIS
FOTOGRAFIAS DE PABLO NERUDA
Primeira foto: Neruda
com o pai, aos três anos. A mãe tinha ido a Cochabamba comprar figos. No
rosto da criança lê-se uma expressão ansiosa. Nessa manhã o seu primo
Felipe, dois anos mais velho, oferecera-lhe um gaio. A mão do pequeno
Ricardo
(chamava-se então apenas Ricardo Reys Basoalto) parece um pouco
enclavinhada
na fímbria do casaco do seu progenitor.
Segunda foto: Neruda
no terreiro junto da casa familiar. Os olhos assustados. Vira nessa manhã
uma cobra junto a um muro. Podemos imaginar como à criança de seis anos
essa visão inusitada perturbara. Traz uma camisita branca de folhos. O
cabelo é um pouco revolto, como se lhe tivesse dado uma brisa indiscreta e
prazenteira.
Terceira foto: Neruda
na sala de aulas. Percebe-se que olha com alguma inquietação o professor,
como se este lhe tivesse comunicado coisas inomináveis. Na carteira em
frente da sua, uma mocita sensivelmente da sua idade deixa ver
meio-perfil. A sua expressão é de clara expectativa.
Quarta-foto: Neruda
numa praça de Santiago. Tem um pouco mais de vinte e três anos.
Um ar
de intensa concentração. Olha a direito, com seriedade e decisão. Os
passantes
nota-se que reparam atentamente neste jovem a quem as musas decerto têm
sorrido. Entende-se que o autor de “Residência na Terra” possui mil razões
para permanecer tanto no mar como na terra dos silêncios e das buscas.
Quinta foto: Neruda
junto de César Vallejo. Um ricto intraduzível paira-lhe no rosto. Vallejo,
que mais tarde iria morrer de uma doença desconhecida, com os ombros
erguidos mostra ao amigo a força de quem tem por si o génio e a esperança.
É sabido quanto Neruda o admirava, ainda que não o soubesse ou pudesse
demonstrá-lo.
Sexta foto: Neruda
numa sala, intensamente concentrado, ouvindo a telefonia. Transmitem o
relatório Kruscheff, cujas revelações iriam espantar intelectuais em todo
o mundo. A expressão do poeta de “Canto geral” é de claro sofrimento. Um
dia mais tarde, na Isla Negra, Pablo Neruda irá relembrar as conversas com
Vallejo e uma dor muito funda atravessar-lhe-á o coração. As recordações
da guerra de Espanha afinal
permaneceram na sua memória até ao momento devastador da morte.
|
|
SOLENIDADE
Porque me pedes o que não tenho
Rosas aos quilos, nuvens no mar
Um combóio louco p’los campos fora
A suspirar
a transpirar
Porque me mostras coisas tão belas
Um anjo cego sobre um altar
Um cantor surdo na
passerelle
A suspirar
a transpirar
Porque me dizes coisas profundas
Um som de flauta para encantar
Um tiro no peito dum marinheiro
A suspirar
a transpirar
Porque me dás quarenta beijos
E uma imagem subliminar
E um pontapé no baixo ventre
A suspirar
a transpirar
Porque me assustas
porque me espantas
Porque me fazes admirar
Os deuses que andam nas avenidas
A suspirar
a transpirar
Só sei que tenho a voz aflita
De me rir tanto
de protestar
Por me obrigares a andar aos tombos
A transpirar
a suspirar.
|
|
BUCÓLICA
Olha lá, rouxinol
Onde tens a guarida?
Nos olhos de um pedinte
A fazer pela vida
Olha lá, rouxinol
Onde vais apressado?
Vou ali à igreja
Mais ao supermercado
Olha lá, rouxinol
Tens ideias decentes?
Tenho quatro narizes
E as orelhas pendentes
Mas, ai, ó rouxinol
Já não vejo o caminho...
Pede ao senhor polícia
Ou então ao vizinho
Mas é que, rouxinol
Vejo além muito escuro!
Compra um punhal de prata
P’ra ´screveres sobre um muro
Rouxinol, rouxinol
Tenho medo da noite!
Convida um monstro enorme
Para que ele te acoite
Rouxinol, já não vejo
Nem o sul nem o norte...
Compra um preservativo
P’ra dormires com a morte
Meu belo rouxinol
Levo vida de cão!
Marca um encontro a Deus
E dá-lhe um encontrão
|
|
MOMENTO 1 (Serra de São Mamede)
Na região que habito, algures entre a África e a
América, num lugar de montanhas e de florestas com pequenos cursos de água
e casas entre as árvores, os entardeceres são quase iguais aos de qualquer
parte não fôra o aparecimento repentino de figuras que não sei nomear.
Às vezes soam pelas
quebradas trilos de flautas e solos de saxofone vindos como que do
interior da terra. Ou será do ar que gira como se estivesse em
sobressalto? Não é certamente das habitações, plasmadas num estranho
sossego.
Em certos dias o
horizonte perde-se na bruma. Então as figuras agitam-se, ganham tons
mutáveis e luminosos e os que ali residem sentem uma brusca exaltação. As
mulheres erguem os braços e rodopiam, observadas pelos homens que não
ousam proferir palavra.
Já houve quem visse
alguns com o pranto a escorrer pelas faces.
|
|
MOMENTO 2 (Niagara Falls)
Quando se chega da estrada que atravessou a pradaria e os bosques, é o
espanto: como é que aquilo é possível? A seguir vem o encantamento: o rio
coberto, na parte de cima, de ilhotas verdejantes e, na parte de baixo, de
uma nuvem de fumo de água de vento e de remoínhos devido à força da
"senhora do nevoeiro" (lady in the
mist).
A força? A graça, para melhor dizer, porque aquela imensa e poderosa
massa-de-água possui uma elegância, uma beleza a que chamaria ática.
Escorreita como uma escultura criada por um deus artista e benfazejo.
Ficam-se cinco, depois dez minutos, depois
um quarto de hora. Depois meia hora e a seguir vai-se até à loja de
recordações e merca-se o que o bolso nos pode dar.
Depois volta-se - para mais uma vez se
lavarem os olhos naquela maravilha que também surpreendeu Chateaubriand.
Porque ela é a melhor recordação. Que nos acompanhará, interiormente, pelo
resto do nosso tempo.
|
|
MOMENTO 3
(Georgian Bay)
Um
perfume de paz. Árvores e mais árvores e um esquilo cinzento que, de
súbito, salta quase junto aos nossos pés.
Num segundo, percebe-se que a felicidade é
possível - por um momento que nos parece incorruptível.
Ao longe, o grito de uma ave de que nunca
saberemos o nome. O castanho dourado da ramaria e, por sobre a colina, ao
fundo, o sol sobre a praia do Lago Huron. Quase como se fosse em
Carcavelos, não estivéssemos no antigo território de caça dos corajosos
guerreiros dos Grandes Lagos.
Em Sainte-Marie-des-Hurons subi a um pequeno
forte para turista ver, enquanto os meus companheiros desciam ao
restaurante servido por empregados índios.
Absolutamente só, olhando o rio e as florestas naquele fim de tarde, senti
chegarem até mim as memórias adolescentes das histórias de Fenimore Cooper
lidas no "Cavaleiro Andante".
Depois, com a nostalgia a coalhar-se-me na
garganta e nos olhos, fui para o restaurante acompanhá-los num
retemperador "indian steak on the
plate"...
|
|
FOTOFLASH
O poeta é uma cabeça de luz
O poeta é uma cabeça de trevas
O corpo do poeta é uma campina do tamanho
dum corpo vivo
O poeta é uma floresta muito antiga
Onde as palavras passeiam ao redor das árvores
O poeta é uma árvore
Um bocado de bolo na algibeira duma criança
O poeta é isso
O poeta é aquilo
O poeta é mais e menos
um e outro
E querem saber?
O poeta é isto tudo
e não existe fora do aquilo
do aquilo que tudo isto é.
|
|
VIAGEM
Naquele ano, na sala de
entrada
do Museu do Homem (Otawa),
em certos dias da semana
e durante alguns minutos os
visitantes
mais observadores repararam
numa aparição
que se materializava perto
das esculturas
feitas de pedra macia pelos
habitantes dos bosques
da província do Ontário.
Um ou outro supuseram
que se tratava da figura de
um homem-medicina
que buscava a sua antiga
morada. Outros,
no entanto, disseram que não
era mais
- que não era mais nem menos
-
que um ectoplasma
pertencente
a um cidadão da longínqua
Europa.
|
|
PÁSCOA
1.Vem dos tempos antigos a voz desse tempo - antigos
para mim, do meu tempo e não da História: era eu que levava ao forno da
padaria do sr.Júlio que fumava de boquilha e tinha um dente de ouro
(padeiro fino, não sei se me entendem) as latas com os bolos-fintos e as
"enxovalhadas" ou boleimas que a Mãe e a Mana artilhavam com saberes de
magas.
Eu não sabia
que era feliz. Só sabia que naqueles dias, naquele tempo de férias da
escola, me davam amêndoas, me davam bolinhos doces, me davam alegrias, e o
Pai até umas suaves moedinhas...
Eu não sabia que era feliz - e na sexta-feira às três
da tarde soava o apito da fábrica e isso assinalava que alguém, há muito
tempo, morrera de morte triste numa terra do Oriente. E sentia-se um
estranho silêncio enquanto o apito soava. E eu sentia um frémito porque eu
gostava desse alguém que há muito tempo morrera - sem me preocupar se ele
era isto ou aquilo.
Era um estremecimento, digamos um abraço solidário que
ia de mim para ele, porque eu era criança. Ou seja: tinha tantos séculos!
E não sabia, nessa altura, muitas coisas - só um
poucochinho, um poucochinho mais do que sei hoje.
2. Ao longe a serra, ao longe como os tempos que
passaram. Tempos de páscoa, serras de páscoa, recordações de momentos que
depois preencheriam dias e lembranças.
Amêndoas,
bolos desta terra e daquela, festarolas tradicionais? Sim, isso tudo. E o
mais que a emoção dá, que é ir-se vivendo com um resto de inocencia e de
fraternidade vital. Dentro de nós, fora de nós: para nós e para os outros
- que também tiveram/terão seu tempo de maravilhamento e nostalgia.
|
|
UM PRATO DE PEIXE OUTRO DE CARNE
É de tarde e
você comeu frugalmente. Sardinhas assadas
Do dia
anterior. Para escorregar melhor, uma caneca
De “Castillo
de Salobreña”, sem álcool, “base de mosto de uvas
De vino y
manzana”. Lavou as mãos? Não lavou. Não tem
Problema – a
higiene é como as manhãs de Junho (fica bem quando
Está e bem
quando não
Está – uma
frase
Que não é nem
carne nem peixe). Mas dizia
Eu que é
preciso juntar, pois é disso
Que se trata:
um salmão fresquíssimo, dois
Ovos de
avestruz, um cheirinho de louro e outro
De
aguardente, um molho de hortelã e duas
Codornizes.
Abra o peixe, frite a carne, urine
Entrementes
um pouco de lado se acaso pensar
No tal poeta
que também é médico: aproveite para
Se vingar
dando um ou outro
Violentíssimo
traque como vírgulas, no interior da panela
Da escrita.
Considere, sorrindo, que a alimentação
Tende para o
sujo, para o torpe, para o inefável
Se a sua voz
é cheia como o Verão
Que findou há
doze anos: esse verão de 94
Que nunca lhe
sairá da memória.
Coza a carne,
corte o peixe, polvilhe com pimenta
Deixe alourar
tudo misturado. Grite. Grite mais. Ria desabaladamente.
Cague nas
suas desilusões. Jure que vai desmaiar. Faça de conta que vê um rio
Que viu um
rio
Que esteve em
cidades quotidianas mas
que o assustaram mortalmente.
Assim eu
cozinhava. Assim eu vi –
Mas vi mesmo,
vi convictamente
Papoilas na
noitinha nascente ao pé de um muro derrubado –
E assim eu
comia, tal como dobava linho
Aquela mulher
velha da fotografia
Ou o outro
entre móveis simples de pinho
Ou de
castanho
Olhados,
perdidos, olhados.
Hoje devoro
torradas
Não muito a
fundo. Debicando um pouco
Pois tremem
as chamas das velas e quando se adormece
Respira-se
como se não
mais houvesse
presságios nem minutos.
|
|
UMA VOLTA PELA EXTREMADURA
Ir a Espanha, viajar por
Espanha, percorrer os caminhos de Espanha - duma Espanha que nos
agrada, que é amorável e aventurosa – não é o mesmo que ir à
Brandoa.
O que aliás até pode
ser agradável, se por lá tivermos um amor, um derriço, uma almoçarada
valente, um mistério por desvendar. Na Brandoa. Mas de facto não é o
mesmo.
Começa-se pelo inevitável
salero da terra-ela mesma, dessa terra que parece mais larga
assim que se cruza a fronteira. Preconceito de lusitano que já está
um pouco cansado de politicões e videirinhos deste país onde vigora a lei
vígara do “muito tens muito vales”?
Talvez... Mas mais
parece ser por amor a lugares onde se sente vibrar um hausto de limpeza e
de liberdade. Doces terras de Espanha...doces lugares da Extremadura!
Trocado por miúdos:
veni, vidi, vici, como dizia o romano. Ou seja: armado do meu
portfólio, consegui seduzir uns apreciadores e tive Natal antecipado,
vendendo os bonecos, “cartões para painel de azulejo” por um preço
muito consolador. Os que vos deixei algures num bloquinho viajeiro, para
iluminar os olhos de quem me estimar.
No dia de S.Martinho,
foi o meu presente – acompanhado de uns tragos do tinto dos Fortios e de
um punhadinho de castanhas assadas. E querem melhor iguaria, seja
em Espanha ou em Portugal?
|
|
MENSAGEM
Ao domingo chega mais tarde o
sol do dia
À segunda a
noite fica dentro do quarto
À terça os
pombos comem connosco à mesa
À quarta não
é assado mas peixe frito
À quinta
entre o pijama e a camisola
À sexta
sente-se o gosto de tempos idos
Ao sábado o
sabonete faz mais espuma
Ao domingo
entre o cabelo e a paz dos tempos
À segunda
lembra-se a neta e a ida à escola
À terça que
já não há como o que havia
À quarta
sabe-se que ontem não era sábado
À quinta nos
outros dias que eram depois
À sexta
escreve-se ao outro do outro lado
Ao sábado
tem-se na mão um “como está?”
Ao domingo
vai-se ao mercado sem se lá ir
À segunda
sabe-se bem o que não há
À terça
fica-se erguido como sentado
À quarta
tem-se no olho um arabesco
À quinta as
florestas nem dão por que ontem
À sexta era
mais vento nos outros dias
Ao sábado
fica-se pronto para pensar
Ao domingo
cala-se a tarde se inda é manhã
À segunda
tudo se espera se se esqueceu
À terça
quando se abriam os sons da noite
À sexta há um
retrato que se procura
À quarta não
se tem medo do canto escuro
À segunda
come-se o fruto bebe-se o vinho
Ao sábado um
livro entrega o seu segredo
Há quinta já
se tem anos para o que foi
À terça a voz
antiga que nos chamava
À quarta
come-se o pão olha-se o campo
Ao domingo
vamos embora que já chegámos.
|
|
AS ESTAÇÕES DA VINHA
Os vinhedos de
Estremoz como os vinhedos do Reguengo. Como os de Asnières ou de Peso da
Régua. Como os de Tavira e de Pinhel, de Modena e de Kerion. No Alentejo
ou na Argentina, na província de Mendoza antes de se entrar nas pampas
desérticas.
No Oregon e no Idaho, em La Rioja, no Lidl e na Praça Nova, no
mercadinho do Corte Inglês e na mercearia fina ao canto da rua de Jacobo
Rodriguez quando se entra na Plaza de Cristóbal Colón em Badajoz: vinhos
que da uva saís, que dos vinhedos brotais - e esta palavra vinhedo que se
rola na boca como um néctar numa prova real - vinhas sob o sol ou debaixo
da chuva que sacode as parras, com gente e sem ninguém, brancas e azuis da
neve numa tarde de Janeiro.
E
as latadas. Em frente da casa antiga do lado sul da ermida de S.Cristóvão,
agora exactamente como há cinquenta anos.
Nos
olhos e na memória do mais discreto evocador como nos minutos simples de
prazer dum modesto beberrão solitário.
***
Fotos são sinais. Tal como as vinhas. Sinais de qualquer coisa que
se prolonga num tempo abstracto e no concreto tecnológico de diferentes
disciplinas. Semelhante ao olhar mecanicista de Rebeca Horn num crepúsculo
rosado, “veins of light inside,
like branches” ou o rigor objectivo e o conceito antrópico de Jannis
Kounellis.
Como se fôssem poemas. Ou antes: como se tivessem sido sempre poemas. O
pio do pássaro, a gaiola suspensa dum prego habilmente inclinado para lhe
dar firmeza. E as mulheres que passavam para a monda lá mais para diante,
para os socalcos em ferradura das Covas de Belém, lugar de nascimentos de
ancestros e de gente futura, mas de outra trajectória familiar.
De
outros destinos, sinas diversas como raízes de plantas diferentes, de
cepas desconhecidas.
E o
campanário, no meio das vinhas se olhado do pinheiral antes da estrada,
para além de outros campos dos lados de Marvão e dos contrafortes primevos
da serra de São Mamede.
***
O
copo meio cheio ou meio vazio de Franz Hals. Os borrachões de Goya. Os
hussardos bons pichéis de Jean Giono e os salteadores que se acalentavam
com um belo copázio de tinto quente com açúcar nas estalagens das terras
de Pourrières. A ida ao campo de ténis do Salão Frio pela vereda que
atravessava as vinhas e sob as figueiras ao pé da nora. Robert Desnos no
campo de concentração de Terezin, delirante e pouco antes de morrer,
sonhando que passeava com Tzara entre os cachos de moscatel das terras da
sua infância. Os provérbios e as sentenças da sabedoria popular com um
travo de séculos (“Muita parra,
pouca uva”; “Ano de nevão, ano de vinho e pão”; “Passar por lá como cão
por vinha vindimada”).
Os
domingos sem regresso, quando o pai levava o garoto pela mão e entravam
numa taberninha anexa a uma adega para provar o vinho novo e lhe disse que
era dos cachos iguais aos da velha quinta que se fazia aquele líquido de
cheiro pungente e fresco na penumbra da loja de alguns convivas.
***
Avançavam cautelosamente à roda da vinha. Por precaução retirou e
depois voltou a meter o carregador da automática. O tremor passara-lhe.
Lembrou-se de quando brincava aos índios e cóbois na courela da Quinta
Ferreira, antes do bosquezinho de castanheiros e um pouco para além da
eira e da saibreira como um deserto em miniatura.
A
rajada apanhou o companheiro da frente à altura dos rins e fê-lo rodopiar.
Ao estender-se no chão, estranhamente calmo e fazendo pontaria como se
estivesse na carreira de tiro, viu os olhos do outro muito abertos e fixos
na cara suada.
Olhos esverdeados como uvas ainda não plenamente amadurecidas.
***
“A vindima é a apanha dos
cachos. Deve ter lugar na altura em que a uva atingiu a maturação
completa. Este momento pode ser determinado com rigor, desde que se
recorra ao gleucómetro de Guyot – tipo de areómetro de volume variável e
peso constante, munido de três escalas…” - assim se lia na página 245
do livro “Mercadorias” (4ª edição da Livraria Didáctica) de Leopoldino de
Almeida e Jorge Ferreira Matias para os alunos do Curso Comercial.
Na
primeira página das folhas de guarda, escrita a tinta de caneta
permanente, uma citação do “Drona Parvah” (descoberta onde?): “Não
haverá sol, nem chuva, nem pássaros no céu. Não haverá paz, nem calor, nem
amizade. Somente se ouvirão os lamentos surdos e os gemidos roucos dos que
morrem. Tereis morte, loucura e peste. E tereis desespero e fome. E tudo
que havereis de ter será pouco. E tudo será demasiado. Porque vós não
sabeis quem sois, nem os vossos princípios conheceis.”.
***
Entrara em Espanha por Vilar Formoso. Passara a seguir os vinhedos
de Ciudad Rodrigo e as estepes e morros frementes de sol antes de
Salamanca, até Medina del Campo e os Montes Ibéricos. Os Pirinéus na noite
crescente, os lumes que eram vilas e cidades e aldeias ao longe na largura
de lugares que nunca vira. E, depois dum semi-sono, as luzes junto da
água, um caminho de luz e sombra e reflexos e era Bordéus e eram os
armazéns para os cascos enormes para todos os lugares da Terra, para
muitos sítios que jamais verá a não ser em mapas amorosamente guardados na
estante grande.
Algumas ruas da cidade sob a Lua de Junho com o seu traçado antigo como
nos filmes de d’Artagnan. E um café ao pé da paragem aonde a camioneta se
deteve por breves instantes e dois clientes apenas na esplanada minúscula
que bebiam talvez Fanta ou limonada, ou Ice Tea como numa tasca fina de
Borba, mas não, concerteza não - assim lho dizia o relancear de retrato
que lhes deitou - um qualquer bálsamo dos corriqueiros ou especiais,
habituais dali enquanto a camioneta ia abalando até que apanhasse o dia,
correndo já para os ares abertos na manhã da Grand Prairie.
|
|
CALABAZAS
a
Mayte Bayon
Eu sou o que sou
vegetal e mineral, fruto e animal
no inverno no verão
em cima da cama e numa cozinha
sobre a mesa com copos e garrafas
Sou pintada sou disposta em arco-íris
como alguém que ri e alguém que chora
como uma artista submergida
como um retrato emergente
ando de roda
rastejo
voo sobre os rios e os ventos
os montes e as chamas nas lareiras
sinto a terra nas mãos
balbucio a dormir
assusto-me fico presa
a um objecto tão belo como a escuridão
antes da manhã
depois de anoitecer
Tenho muitos nomes
que de repente desaparecem
cabacinha pintada de azul amarelo
cabacinha pintada de preto vermelho
e sou outra vez eu
e faço o pino danço adormeço
e os sonhos saiem pela cabeça
e ficam a pairar perto das paredes.
Sou cabaça
sou pessoa
sou madeira e pedra
e lume e ardósia e papel
ramagens ensolaradas
casas que se abrem e fecham
no dia inteiro
e na tarde
de todos os silencios e ruídos ao longe.
|
|
OITO POEMAS
PARA NOVE IMAGENS *
1.
De coisas
feitas
com seu nome
dado
- torre, janela
e flores dispostas
sobre seu lugar
de tempestade
de manhã ausente
de alegria
e lume.
Súbita luz
e pedra
e pão e acalento
de anos já perdidos
e sem memória.
2.
A Terra: laranjas e legumes, risos e
melodias, o medo e a sombra. Com tuas
mãos tocarás a maravilha lenta da cal e
do cimento sobre coisas desfeitas. O sol
e o vinho a teus pés: toda a riqueza
adivinhada de mansões de gente já
desaparecida. E a noite a chegar
e uma
nódoa de sangue nos olhos.
Olha pois à tua volta. Verás a silhueta
esmaecida de uma pátria inconcreta.
3.
Apenas
serenidade entre
muros e ruas
longínquas
próximas de nosso
escolhido dia.
Porta, simulação
que de si mesmo
guarda
gestos alheios:
uma árvore
um espelho
um lenço
Tudo impoluto
- e um grito sobre
as casas.
4.
A coisa poderia definir-se
assim: dum lado objectos
habituais – copos, talheres,
duas lâmpadas eléctricas,
uma almofada suja. Do
outro, dispostos em pilha,
livros antigos e vasos de
plantas verdes, alguns
frutos e embrulhos
fechados. O que mais
perdura é o sinal da
estrutura óssea, os
vestígios de carne seca,
desfibrada e solitária.
Apitos, correrias, vozes ao
longe e, afinal, o ardente
ruído de um terrível
remorso.
5.
Esse fumo:
- de lenha
de tabaco
de papel
de pano.
Esse fogo
- de árvore queimada
de terra ferida
de carne cortada
ou esmagada
ao longe
ao perto
dentro do dia
fora da noite.
Som
de voz de mulher
de animal
de mosca
de uva
de guizo
sobre os seios
entre os dentes
.
Soluços
enleios, terrores
asa posta
na cabeça
na palha
na abertura
do mundo
na alegria
no beijo
saudoso e
trémulo.
6.
Faz sair do seu
reduto
a melancolia e vê
que na parede
um sinal negro é a
sombra das mãos
entre
tecidos
amarfanhados. A
espera
angustiada a
natural
inclinação de um
ombro
a seminal
fotografia
única para saber
de todos
a veloz asa oculta
sobre os tempos.
7.
A voz
o escuro da
manhã/ a
luz da voz
no escuro da luz
como/ a voz na noite
entre/ a manhã e o
calor do pequeno/ dia
futuro
a tarde e o grito
e a recordação/ de luzes desaparecidas.
Escuro
para vozes passadas/ o tempo
recordado
o futuro como/ uma voz escura
o nome sobre o dia/ a luz
no calor do grito.
8.
Na república dos artistas terá de
haver mapas. Mas
não só. Haverá também
cadeirões, candelabros, centenas de
mesas repletas e de jarrões
com limonada e
à noite, uma janela dando para
um parque misterioso. Os cozinheiros
terão nomes de rios: Zambeze
Sena, Amazonas e mesmo
o soberbo Orenoco – ou então
de plantas como fotografias
ou ainda muitas imagens
de ruas familiares ou de
parentes desaparecidos.
(* Para colagens de Manuel
Almeida)
|
|
VISLUMBRE
No bote, os
polícias jazem amorosos
no virar da
semana
com as suas
adoradas em passeio
naquele
jardim com o lago meio adormecido
em que depois
de remarem, como os cisnes do parque
como a lua se
tivesse caído na água
ficam no
vazio, olhando os bancos e a relva
dessas horas
em que as ramagens cobrem
os corpos de
quem descansa e os ausentes
comem sua
merenda debaixo de outras folhas
em diferentes
lugares.
No barco, ao
balcão do quiosque, eles sustém
na sua mão a
mão de alguém que os prolonga.
Onde estão as
crianças e a música? Quando não é manhã
os barcos
vogam
em busca de
um horizonte em que haja noite
dentro mesmo
dos corpos, até do peito fendido
em que eu
contemplo as silhuetas seculares
quase no fim
dos bosques onde depois se amam
e se
interrogam por um nada
bocejando
aqui e além.
Tocas com
essa mão a primeira palavra. E notas
no céu negro
figuras como havia
na tua
adolescência sussurrante. Agora
olhas ao pé
do castelo um pequenino embrulho
e foi há
muito tempo que o sentiste
uma e outra
hora e ainda uma outra hora, essas
que de
repente param e tu sorris
na evidencia
que te chama. E dizes, como se nada fosse
- Ouve, jovem
polícia, o teu barco quedou-se ali
e por entre
as pálpebras semicerradas
o teu amor
esvoaça. Oito nove de noventa e seis
repara bem
o taumaturgo
testa a tua sede. O teu raro momento
tão plácido e
completo como um hall sem ninguém.
Vamos embora,
meu Senhor. Seco e magro como um vislumbre
que estimula
os quartos ao derredor
andas de
continente em continente
e os risos
aumentam e aumenta
o choro ao
canto do jardim ensolarado.
Uma palavra
em calão e uma reza, uma reza
saindo sem
que o soubessem alegremente das trevas.
|
|
RUINAS
(ao Margarido Neves, in
memoriam)
Vinte e quatro ruínas. Uma ruína para cada hora do dia e da noite.
Ruínas que do
tempo vieram, que de tempo se fizeram. Coisas, lembranças, lugares e
pessoas que o tempo desfez. E que agora se reerguem por um momento na
memória de quem as viveu. Nos olhos de quem as pode viver ou
contemplar ainda que exista a vida breve, tempus fugit, que afinal
dura os minutos de um dia, de um mês, de um ano. De muitos anos.
Também das existências que se não tiveram, pois que viver é escolher
um caminho entre vários caminhos, apenas aflorados, apenas
pressentidos como um eco longínquo. Como num sonho encenado, possível
mas ao qual não se deu figura.
A vida ardente
está aí. Entontecedora, repleta de sonhos e quimeras, de pequenas
luzes interiores como o súbito brilho do sol nas folhas de uma árvore
desaparecida.
Ruínas nos sítios
habitados “onde tudo canta
gravado pelos séculos”. Ruínas que “multiplicam
os seus fulgores conforme as horas”. Recordações entre os muros e
entre os mundos de baixo e de cima, como na infinita sabedoria e na
infinita humildade dos que não viveram em vão. Ruínas que não são de
cidades perdidas, de impérios destroçados, de cadáveres desmembrados e
de rostos convulsos, mas de pequenos detalhes que a nostalgia e o
encantamento dos momentos idos possibilitou existir num continente
improvável.
Aquelas matérias
que ascendem na vida natural de quem sabe ou de quem pode rememorar,
metáforas e imagens de quartos e de escadarias, de ruas que jamais
regressarão e contudo são as mesmas, de ideias esquecidas entre o
pequeno mundo do que se pensa num relance e se vai para sempre, sem
remorso nem contentamento, mas marcadas e coloridas pelo horizonte de
muito do que se foi vendo existir.
Fins de Outubro de 2011
|
|
NICOLAU SAIÃO
O ARMÁRIO
DE
M I D A S
ESCOLA DE MAPUTO REPÚBLICA
DE MOÇAMBIQUE - 2011
|
|
Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia,
Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto
individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto,
Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha,
etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia
ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia
geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan”
(1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do
tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica
(“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed.
Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O
armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos
de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o
mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos”
(2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade
em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas
sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado
em espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios,
“Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”,
“La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”,
“Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos),
“Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou os
livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas”
de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo
Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e
“Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado
mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março
de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”
(1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio
Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e
pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones
lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da
sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001,
a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e
cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.
Blog : Ablogando, em:
http://ab-logando.blogspot.pt/ |
|
|
|
|