2.
Em 2010, na revista do espaço literário TRIPLOV
dei a lume sobre o poeta de “Interior à luz” um bloco que, um par
de anos após, sairia na forma de antologia mínima sob a chancela da
Sirgo.
Permitam-me que cite a
pequena introdução.
Referi eu nela
“Há,
neste acervo, um verso que a meu ver descreve com exactidão o mundo da
escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”, diz
ele a dada altura no poema dedicado a Claudio Rodriguez. (Claudio
Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas europeus onde a natureza se
confrontou decisivamente com os sons duma modernidade assumida,
reencaminhada nos troços vicinais de um continente que não perdera de
vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a tentar
reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).
Poeta da natureza, António
Salvado? Sim, mas também da linguagem que a certifica, perpassa e
ultrapassa. Conhecedor dos clássicos, sempre soube viajar – como fica
patente nesta pequena antologia – pela comovida desconstrução da escrita.
E, assim, é um contemporâneo
tanto dos que se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo”.
Acrescentaria agora: poeta da
nostalgia e da memória, duas linhas de força que norteiam grande parte da
sua poesia, ainda que a sua lira se envolva noutras, quais sejam o apego
àquilo que se observa na senda dum realismo caldeado pelas presenças do
amor aos pequenos ritmos – aparentemente pequenos, sublinharia – à grande
contemplação do que nos rodeia a todos e ao autor o rodeou em momentos que
ele cifrou para lhes guardar a singularidade.
É NOITE, MÃE
As folhas já começam a
cobrir o bosque, mãe, do teu outono puro... São tantas as palavras
deste amor que presas os meus lábios retiveram pra colocar na tua
face, mãe!...
Continuamente o bosque se define em lividez de
pântanos agora, e aviva sempre mais as desprendidas folhas que
tornam minha dor maior. No chão do sangue que me deste, humilde e
triste, as beijo. Um dia pra contigo terei sido cruel: a minha boca,
em cada latejar do vento pelos ramos, procura, seca, o teu perdão
imenso...
É noite, mãe: aguardo, olhos fechados, que uma
qualquer manhã me ressuscite!...
Versos esses que atingem noutro registo a
fundíssima lembrança de presenças amadas e onde se percebe, para além do
que se pressente, o sinal maior duma comoção que as palavras permitem
evocar e, diria, tornar figura intensa duma re-ligação.
EPITÁFIO
Porque
sabias os caminhos
que
encontrarias na viagem,
sem desaires
nem labirintos
a tua vida foi
a simples
maneira de
atravessares
no mundo
brenhas e neblinas.
Não precisavas
de milagres
para aqueceres
a tua crença:
afagos de
serenidade,
os dias
chegavam passavam
com a mesma
limpidez quente
e mansa que a
fé torna clara.
Desfolho rente
à tua campa
os ramos de
malvas: lembranças
do cálido
peregrinar
das contas
puras do rosário
que os dedos
do amor rezaram
à espera de um céu alcançado.
Um outro
timbre na obra de António Salvado é-nos dado pelo senso de humor crítico e
pela ironia, crespa mas afável (como sabem uma por vezes não
desdenha a outra…até a implica)
bem patentes nos seus epigramas e quadras (im)populares, como ele
as designou. Mas eu preferiria colocar o acento tónico na sua atenção às
coisas simples, a essas coisas
simples da natureza reconfigurada e dos quotidianos transmutados pela
apreensão do que de verdadeiramente imenso têm em si.
Foi nas perenes
coisas que aprendi
a ser: a casa do amor cercada
de ruas que subiam junto ao fim
do céu que sempre mais se prolongava,
de longo mudos maternais jardins
onde as eternas flores eram lagos
de fragrância ofegante colorida
e os lagos sol em água mergulhado.
E nela: o pão cantado sobre a mesa,
a bilha da ternura a renascer,
a pureza do linho a dedilhar
as palavras nos lábios entoadas…
deito longe a saudade: permanece
a casa do amor, em mim, perene.
Não poderei nem quererei
passar de forma leve sobre a sua figura de tradutor. E dou relevo à
maneira como colocou em língua portuguesa, salubre e luminosa, autores
como Ricardo Paseyro, Cláudio Rodriguez, Harold Alvarado Tenório ou o aqui
presente, em boa hora, Alfredo Pérez Alencart. Nem a mão certeira com que
colocou em verso, por exemplo, o bom e jucundo Apuleio.
A finalizar estas
necessariamente breves reflexões, eu gostaria de dar também relevo, duma
forma tangível, ao homem solidário, ao companheiro que, no que me diz
parte, por duas vezes assumiu fraternidade frontal e pública e ao qual
cabem inteiramente as palavras de António José de Almeida que rezam:”
Não basta apenas possuirmos a posição erecta, é necessário que
firmemente nos mantenhamos nela”.
Pelas nossas
obras, pelo todo com que iremos passar para o pouco ou o muito que nos
couber de permanência no porvir? Sem dúvida, arrisco dizer, mas também
pela qualidade humana, de ligação aos grandes temas da existência, a
saber: a dignidade, o respeito pelos outros e por nós próprios, tudo o que
é honrado e que permite que respondamos, a alguém que um dia disse: “O
autor de talento não é necessariamente uma boa-pessoa!”, desta maneira
muito simples, muito concreta e assaz acertada: “Sim.
Mas cremos que será sempre uma pessoa boa!”.
E como as
grandes realidades da vida não podem ser, nunca são afinal, ultrapassadas
ou postas de lado com piruetas ou com esquivanços, eu afixo aqui a minha
consideração, a minha estima e o meu apreço intelectual e humano por esta
pessoa boa a quem endosso o meu
abraço firme e a quem tomarei a liberdade de chamar, a terminar: meu
querido Poeta, meu querido Amigo António Salvado!
Portalegre, Casa do Atalaião em Outubro de
2014
Nicolau Saião
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