Viagem só há uma: só há
uma viagem. De vida só
uma – a semente no
coração: de grão, de mulher, de planície e
tempo
transparente viagem entre os rios
minutos
a rude viagem de nós a
mundo
palavra presa que de noite rompe
de noite toma
madrugada e língua
onda e treva, escrevendo
o verbo obscuro
de mão
e vento
- viagem uma só
queimando
a morte
axila em que formado se
consome o
furor da fome
frente
ao liso gomo de carne sob os dedos
de gente: o Homem.
Viagem uma só: terra
e pranto sobre os cantos
da cama
onde é sagrado o espanto de bichos
verbo então dizendo
o ânimo de dentro
o antigo mar afluente rompendo
enlouquecido a atenta
cruz de paixão em bosque e luz jacente:
quem se viaja em nós connosco ardendo?
Não mais se deixará por incendiada
a estrela-macho
de adultas águas no universo ausente
velhas vinhas de cachos excessivos
- esse o líquido posto no sinal de crescer
corpo
de guerra e fendido acaso
exposto
florindo em tudo seu pretexto de domínios
excedendo
o excesso.
Por moradas de só
placenta e mito
palavras de morte que vida seja em pouco
espaço inconcebível e distante
barco por olhos e meses de escancarada
manhã de terna e gritada
floresta
onde cai devagar a outra chuva
a sangrada chuva
impassível mesa
de pão esquecido no hábito dos gestos
desmedidos
aridez alargada de campo
afrontamento
de peito e praia
braço
incontável desvão
arquitectura
de beijo
e mordido silêncio
tanto
tanto
animal luminoso com seus dentes de infância e
desejo
ano após ano no interior mais denso
onde a carne insinuada se queda (in)confessa
e rebenta
na espádua
na boca violenta
- o vestígio molhado
onde pasma o solar espasmo correndo.
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Viagem de lonjura
conduzida: viagem mais loucura e mais
sentida. Viagem passo a passo
claramente planeta no morrer da
solidão
ilusão de mergulho na cidade acesa
fria e espessa
coração navegado de segredo e
cárcere
uma casa pairando por vingança
corredores suspensos
de jardins calados
na curva dolente da
cólera e do
ódio sonoro do ar
apenas muro vestido de secura
riscos
de estranhas manchas
rugas
dias idos
tudo o que gera a calma conduzindo os defuntos e
os vivos acontecendo
por saudade e desgosto em momentos de
febre
em arrastado amor que fala e perde
- assim dito seria por quem brincou ao sol –
e de fora se impele contra a amargura e a
doença
camisola hostil e assustada
pela mão diferente e deslizante
a ânsia
consentida
chama invocada aflorando a sombra
do cabelo
em desmaios e queixas e
amor feito
talhado à imagem de
figura
de viagem uma
viagem ousada
alquímica alquimia de escolhida memória
inferno inicial de ternura perplexa
mulher
mercúrio de criança dentro em
suor e dor
no Verão de não-virtude: de haver e ter
um Agosto infinito borboleta fugindo
ao suspiro
de pescoço de nádega de joelho
espelho de filhos no antes do prazer
da
possível indesmentida viagem suprema
funda de gemidos
a esperança
duma pele lambida tocada
criando
mais pesadas as horas de não despertar
mais contadas as vozes de não existir
Noite que em si de si fugia
noite que em si revelava o dia
noite que junto ao umbigo encontra o peso da areia
morta
noite sensual e fresca sabida companheira da
eternidade
livre ao pôr-do-sol da multidão
- um olhar rápido ao oceano circundante
quando um olho com outro olho se choca
um lábio ocultando a
unha a polpa da
conversa interminável
viva erecção
de ruas enchendo o mundo
anca
de agonia e grandeza
de expelido amor.
Uma
não mais: que é viagem
o trémulo tapado cantar dos que dormem
uma raiz perpétua
vasta como
um corpo dado ao sono outonal
girando sobre tantos havidos corações.
Viagem: uma só e
frágil
na apodrecida porta imensa do tempo
perturbada
florescente arbusto de fruto masculino
feminino contorno de desespero
para sempre
destruídos.
in “Residência Fixa”
ns
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Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia,
Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto
individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto,
Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha,
etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia
ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia
geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan”
(1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do
tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica
(“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed.
Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O
armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos
de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o
mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos”
(2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade
em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas
sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado
em espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios,
“Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”,
“La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”,
“Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos),
“Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou os
livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas”
de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo
Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e
“Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado
mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março
de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”
(1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio
Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e
pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones
lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da
sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001,
a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e
cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.
Blog : Ablogando, em:
http://ab-logando.blogspot.pt/ |