Nova Série

 
 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO...

Sobre a poesia e o livro “Canto Finissecular” de Nuno Rebocho

   Num dos famosos textos em que habilmente mesclava a imaginação inefável e a erudição de bom recorte, conta-nos Jacques Bergier que os magos egípcios buscaram durante séculos a fio, mediante manipulações adequadas, o segredo do “espelho perfeito”. Tratava-se, de acordo com este investigador do insólito, dum artefacto altamente elaborado mediante as leis da matemática e da óptica que teria a propriedade maravilhosa não só de revelar a verdadeira face – a “imagem interior”, como diziam os Gregos – de quem nele se mirasse mas também, o que é ainda mais curioso, de nos permitir aquilatar do valor real das palavras que na sua frente se proferissem.

    Não necessito, creio, de salientar que tal hermético utensílio seria uma curiosidade muito mal vinda aos dias de hoje, nomeadamente nos sectores da “polis” que usam embalar-nos com imagens e palavras um bocadinho diferentes da realidade…

    Tanto quanto se sabe, não consta que os magos de antanho tivessem alguma vez chegado a bom porto, no seu afã mágico-científico. O que se sabe de ciência certa é que, já nos nossos dias, um “mago” houve, seguido por uma chusma de magos menores bastante operosos, que inventou um outro “espelho” – deixem que lhe chame assim – que se calhar por uma magia muito especial, ou talvez não, tem o efeito perfeitamente surpreendente de nos apresentar faces esplendorosas mas que são na verdade equívocas e, também, palavras encantadoras que, afinal, são frequentemente não mais que simulacro mistificador.

    E tal “espelho”, como o seu antecessor imediato, apenas palavroso, vem assumindo num universo que certos sectores procuram seja manipulado e numa sociedade tendencialmente duvidosa – um protagonismo e um peso inquietantes, inadequados e efectivamente propiciadores de confusos percursos mentais.

    O espelho procurado pelos magos egípcios, sendo de ordem conceptual e para-científica, era um artefacto poético, ao passo que o actual “espelho” fornecedor de imagens e de sons é da ordem do realismo obrigado a mote, gerido como o tem sido por possuidores seguindo as oscilações de mercado e de audiências e que, com terrível frequência, não cumpre de forma alguma o papel que lhe caberia num mundo bem construído e que deveria ser o de estabelecer uma ponte salutar entre os diversos imaginários pessoais e colectivos.

 
 

     A poesia – ou seja, a palavra organizada, ou mesmo desconstruída numa determinada sequência decorrente duma incursão pelo espaço da escrita em liberdade e naturalidade – deve ter e na realidade tem como tarefa primacial, não sendo a única e se alguma lhe cabe, o constituir-se como uma espécie de barreira, ou contraforte, frente a esse estado de coisas desertificador. O Autor, levado pelos ritmos interiores de meditação específica (e que estão muito para além da mera e propagandeada, et pour cause, lista de signos) ou de pura regra vital – dou a esta expressão o sentido que o poeta latino Terêncio lhe dava – comunica aos seus textos as imagens e os signos, ou deixa que eles os emitam, regulares ou irregulares em que o mundo cobra uma determinada realidade que se torna, para ele primeiramente, significado e presença e, depois, vai atingir um continente mais ou menos vasto consoante seja ele lido por alguns ou por muitos.

     Mas esta melhor difusão está, como se sabe, ferida por diversos factores sombrios. Em primeiro lugar porque vivemos presentemente numa sociedade que, como Jean-Marie Benoist disse com certeira perspicácia, é em enormíssima parte constituída por “invasores verticais”, ou seja, capturada pelos “novos bárbaros” referidos mais que uma vez por Dostoievski e que se caracterizam por terem conseguido instaurar um tipo de atitude socialmente espúria, notoriamente boçal e firmemente mediocrizante. Por outro lado, o que decorre aliás deste facto aludido, a poesia tem aquilo a que se dá tecnicamente o nome de “baixo valor de consumo”, o que é retintamente filho dum escasso valor de mercado forjado ardilosa mas eficazmente. Ela é, na verdade, a parente pobre do mundo altamente elaborado, por razões consabidas, que vive à volta (ou devia dizer: na periferia?) das artes e das letras…

     Além do mais, como referiu pitorescamente um conhecido e pitoresco articulista da nossa praça, nos dias actuais o mundo tornou-se perigoso: eles são os problemas do desemprego que apoquentam não só a juventude como outras classe etárias, ele é o progressivo declínio do “estado social” com as suas seguranças mais ou menos inseguras e, muito importante e por isso me permito uma chamada de atenção sublinhando este sector, o ponto a que chegou ou se procurou que chegasse – e que é o cancro que está a destruir a democracia participativa e a tranquilidade social – o errático e por vezes iníquo sistema judicial, servido por leis inadequadas ou confusionistas, desleixadas ou inapropriadas por um lado e, por outro, protagonizadas por próceres ou arrogantes ou desumanizados e que por vezes actuam como donos dos ritmos sociais em que se contém uma caricatura de justiça que nos tentam impor após ardilosamente a proporem…

      E se este panorama a que urge pôr cobro se não queremos que irreversivelmente se caia em graves situações (e que inquieta, desde altas personagens e “representantes do povo” ainda conscientes, a pensadores e simples particulares) não é ainda pior, deve-o à acção digna e corajosa de magistrados íntegros e de trabalhadores judiciários pundonorosos por vezes assoberbados de labuta – e a quem tiramos com apreço o nosso chapéu simbólico e poético.

     Um tal estado de coisas é, nos casos mais leves, penoso para os poetas – jungidos geralmente às usuais dificuldades de editar e à marginalização que muitas vezes os atinge e, nos casos mais pesados, ao impedimento puro e simples por razões exógenas ou, então, na verdade bem próprias de uma democracia apenas tendencial (como é o caso desta em que vamos existindo) e que discreta ou mesmo já descaradamente visa que existam para poder amordaçar a palavra iluminada que se tornou incómoda.

    Nuno Rebocho, que num texto anterior caracterizei como “um convivente goliardo moderno” em função da sua natureza comparticipativa e solidária com os ritmos positivos do mundo e, também, pela forma alta e clara com que nos mostra o seu rosto de poeta, conhece bem o peso das palavras, daquilo que elas forjam nos melhores momentos de criatividade e, num vôo sobre os instantes do tempo que lhe tem sido dado viver, disso tem dado testemunho e razão.

    Personalidade fulcral do chamado “desintegracionismo”, tem incursionado de uma forma bem palpável pelos movimentos quotidianos do Mundo que se consubstancia no poema (neste livro) em que as presenças de coisas de todas as horas criam como que um outro mundo mais além, mais significativo e talvez ou por isso mesmo mais real - real diria em todas as direcções. Sendo uma poesia de clara vocação imagética e simbólica está todavia eivada de formulações de forte sentido prático – e quando digo prático, além de praticado quero aludir ao que num universo repleto de sentido seria a sequência duma saudável ligação entre o Homem e a Natureza naturante, que é não apenas a das realidades possuídas mas, também, as que numa vida harmoniosa – donde a poesia nunca está ausente – viríamos a verdadeiramente possuir.

    Como em tempos me escreveu num dos seus proverbiais “bilhetes” o Prof. Agostinho da Silva, “nunca o mundo necessitou tanto de poesia”. Ou seja, de consciência e de independência de espírito, que é nisso que se expande e se concentra o múnus específico do Poeta. Num quotidiano em que as grandezas e as belezas da vida são muitas vezes esvaziadas de préstimo pelo caviloso ou arrogante domínio de ritmos medíocres, há que persistir de coração “vivo e altivo” como dizia Milton em dar aos nossos companheiros de existência o fruto ora do nosso pensamento ora da nossa comoção.

   Nuno Rebocho, cidadão e poeta de corpo inteiro, à sua maneira muito própria aí está para nobremente o testemunhar.

                                          Casa do Atalaião, Portalegre, Maio de 2015

                                                            Nicolau Saião

 
 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/