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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
Nova Série |
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NICOLAU SAIÃO Os enigmas do quarto fechado e da
fotografia artística |
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De há uns tempos a esta parte dois fenómenos –
que eu diria paralelos - têm estado a intensificar-se (um pela
generalização e alargamento da posse de telemóveis qualificados, outro
pela introdução de novos leitores na geografia dos géneros e pelo cultivo
intensivo de certos sub-géneros subsidiários: a fotografia e a
escrita/leitura de novelas/romances policiais ou de mistério por extenso.
Nesta
perspectiva, porque tem ganho relevo certo tema, mais ou menos fundacional
do arqui-segredo dos clássicos como John Dickson Carr, Gaston Leroux,
Pierre Boileau ou Leo Bruce, ou dos modernos/significantes como Caleb
Carr, Elisabeth George ou Boris Starling, creio fazer algum sentido trazer
à colação o texto que segue, no qual se analisamas as duas circuntânncias
assim ligadas.
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Há na Literatura Policial um tema que é
o clássico dos clássicos: o quarto fechado onde algo de inusitado se
passou. Dentro, um morto. Aparentemente, sem assassino. Inúmeras
variações, mas um só dado exacto: a interrogação. De que maneira se
oficiou? Interrogação que pouco a pouco se vai construindo/desconstruindo
à medida que a novela se desenvolve e progride. Objecto sem construtor,
criatura sem criador? Digamos: como uma fotografia sem máquina ou como
máquina sem fotógrafo? Aparentemente, sim. E, no entanto, a nossa razão e
o sentido da leitura (do jogo) dizem-nos que não pode ter sido assim. Que
tudo é pois simulação - como nos retratos. E há outro corpo e outra
máquina: o leitor e o livro. Duas máquinas, dois quartos, dois corpos,
etc. Jogo de espelhos que forjamos ao ler e assumimos ao começar a ler (a
fotografar). Em suma: no plano estrito do relato, um
como de que não se conhece o
porquê e naturalmente sem quem.
No enigma do quarto fechado a máquina (o quarto) tem
algo lá dentro (o morto, a fotografia) sem que tenha havido um dedo a
premir o botão. Ou antes, sem que a presença desse dedo se tenha
manifestado indubitavelmente - dedo mindinho, polegar, indicador? E teria
mesmo havido um dedo (o assassino)? Temos de o admitir. O que se sabe (se
intui) fica então pairando sobre o que se não sabe, ou melhor: que se virá
a saber lá mais para diante, unindo-se então à outra imagem em negativo.
Na máquina fotográfica, uma vez retirado
o corpo de delito (o rolo impressionado) dá-se um imenso vazio: o corpo
morto (o fotografado) vai entrar noutro mundo de martírio - molhado,
quimicamente macerado para que esplenda de vida simulada. Um morto
torturado que só depois de trans-figurado (des-figurado?) pode viver então
de uma vida equívoca (numa carteira, num
dossier, emoldurado ou plasmado
numa medalha ornamental, colado num suporte próprio, trans-ferido quiçá
para as páginas de um jornal). O morto, no relato, vai ter as
circunstâncias da sua vida (da sua morte) analisadas, dissecadas,
descriptadas. Vai ganhar exactidão, ou antes: vai ser o sinal palpável de
uma exactidão reconhecível, forjadora de luz. A fotografia, por seu turno,
verá os sinais da sua realidade transformarem-se paulatinamente, até
desaparecerem com o passar do tempo - com o passar da luz. As inflexões,
os pormenores - os habilidosos detalhes da encenação do
crime - que a tornaram artística
ir-se-ão dissolvendo irrevogavelmente, tornar-se-ão pertença e parte dum
imenso território onde impera o desconhecido. Mas, dado que tudo é
convenção (ficção dentro da ficção que um texto ou uma fotografia não
deixam de ser) tudo está (fica) repleto dum sentido muito próprio: há um
como absoluto, mas sem
aclaramento (o flash) nunca se
chegará ao quem e ao
porquê (como nos retratos: ao olharmos para uma fotografia de nós
mesmos é como se nos olhássemos a um
espelho do passado, um espelho onde não nos conseguimos reflectir; o
direito é o esquerdo e vice-versa, mas a foto está paralisada, faz parte
de um além imutável). Na fotografia artística - vestígio de algo
existente, ainda que simulado - o
porquê ocupa grande parte da cena e antecede (justifica?) o
quem e o
como. Ou seja: um morto
(criatura, retrato) que já não tem continente (a máquina, o quarto) e que
a prazo nem terá (será?) conteúdo. Por outras palavras: a criatura sem
criador nomeável, comportável, reconhecível.
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Ao entrar no quarto (aposento, mas
também câmara) o detective (a
fonte de luz) começa de imediato a destruir as simulações engendradas pelo
oficiante (o criminoso, o fotógrafo), tal como a brusca aparição da
luminosidade ao penetrar na câmara escura destrói a película fotográfica.
Há pois que saber preservar a dose apropriada de sombra (o mistério do
crime, o mistério que é a matéria ela-mesma que conforma a escrita
enquanto elemento palpável). Depois de solucionado, o enigma do quarto
fechado evidencia os limites da arte que o possibilitou, ou seja, das
encenações perpetradas para iludir a verdade dos factos: a realidade, que
é o que os
autores (os assassinos) tentam transformar em algo reconhecível (como uma
foto).
A literatura não será pois tanto a
criação de fantasmas (de negativos) mas o lançar de fantasmas
transfigurados (os negativos transformados, reconvertidos, ou seja
retratos) no tráfego quotidiano, nos foros da realidade. Tornando-os vivos
dessa vida esquiva, insólita e peculiar - fotografia aproximada de algo
que se sabe ilusório mas fortemente ilustrativo. No princípio há o
espanto, o arrepio do mistério, à guisa do que sentiam os primitivos
fotografados. Depois há a realidade, ou seja: a imobilização da fantasia,
em suma - o retorno à Razão que subjaz à descriptação do crime. Na
fotografia artística forja-se assim a perfeita imagem invertida do enigma
do quarto fechado ou, ainda melhor, a imagem no espelho duma lente:
acumulação de simulações para iludir uma realidade ultrapassada por
flashes sucessivos (os
raciocínios sagazes do investigador).Verdadeira acumulação de realidades
presuntivas feitas para propiciar uma Realidade que é, afinal, só
aparência, cópia armadilhada de alguma coisa que só o artista, o
assassino, deu à objectiva a ver, ou antes - que esta só viu através duma
máquina mortal. O assassino apoderou-se desta maneira do corpo do
assassinado e expõe os seus vestígios a quem os quiser ver.
Por isso é que a fotografia é a arte
obsessiva deste tempo, um tempo de homicidas: simulação encenada, não
inocente - tal como o autor do relato - reflexo duma exposição à
escuridão (a luz que mata, que não é a iluminação mas a destruição
do objecto retratado) que qualifica o fotógrafo (o criminoso) e a
sociedade que o multiplica, a sociedade de imagens em que vivemos.
Uma sociedade que, ironicamente, exibe e
protege os sinais dos seus crimes (as fotografias). Como se o quarto
fechado assim ficasse através dos anos, com o morto e os seus sinais
reproduzindo-se surpreendentemente no exterior por um
passe de mágica (uma revelação).
Como, digamo-lo assim, algo impresso na matéria
existente em quaisquer retratos mortos ou vivos da possível eternidade.
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Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia,
Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto
individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto,
Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha,
etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia
ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia
geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan”
(1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do
tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica
(“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed.
Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O
armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos
de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o
mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos”
(2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade
em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas
sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado
em espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios,
“Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”,
“La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”,
“Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos),
“Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou os
livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas”
de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo
Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e
“Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado
mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março
de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”
(1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio
Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e
pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones
lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da
sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001,
a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e
cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.
Blog : Ablogando, em:
http://ab-logando.blogspot.pt/ |
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