Pelo menos o do tempo proverbial, canónico, que pelos séculos vem
sucedendo e é celebrado pelos crentes e fruído, em festa e por vezes em
nostalgia vinda da infância e de uma assumida inocência, por não crentes
tolerantes e cordiais.
No Natal dão-se e
recebem-se presentinhos que certificam fraternal entrosamento relacional.
Pois eu, há dias, tive algo
à guisa de oferenda entregue pelo acaso, um belo presentinho por extenso:
acharam-me um dvd que eu havia perdido com um ror de material (prosas
diversas, poemaria, bonecada…) desse que uma vez extraviado nos deixa em
petição de tristeza desesperada.
Do conjunto extraí dois itens,
curiosamente ligados a este mês, que aqui vos deixo à guisa da minha
oferta da Quadra.
Boas Festas!
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1.
Um poema de Manuel Hermínio Monteiro
ANTÓNIO MARIA LISBOA
Senhora mãe é uma escadaria de costas para o poente
as
mãos no peito, “as mamas na varanda”.
No
passe-vite, nos brinquedos do menino
na
fome do menino
Senhora mãe vai esmigalhando deus e o diabo
pela
tarde fora
pelo
silêncio adentro.
Um
pardal poisa em frente ao sol do poema
vem
do Norte
vem
de trás do tempo
na
Senhora mãe o pardal goteja
a
loucura inominada
do
nome das casas
um
pardal de erva submete a primavera
em
Novembro, Senhora mãe,
um
pardal sem choro semeia o vendaval
parte vidros
sorri atrás da porta
chupa-te os dedos Senhora mãe
aniquila no teu vestido vermelho
o teu
palácio apocalíptico
o teu
silêncio de mina
as
serpentinas de arame
nos
teus olhos de escadaria
batendo maternalmente no poema
que
um poema
é
maior que um filho penteado.
Enviado
a NS em Dezembro de 80, foi por este dado a lume posteriormente na Página
Literária do semanário alentejano “A Rabeca”, que orientava.
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2.
Portalegre,
19 Dezembro de 1987
Prezada Drª
Maria de Fátima Marinho
Tive o ensejo de ler,
ainda que não com a atenção que merece, uma vez que não adquiri o livro
inibido pelos três contos que o volume custa (não sou pessoa muito
abonada) o seu ensaio dedicado ao surrealismo português.
Não leve a mal
algumas críticas que lhe vou dirigir. São feitas de boa-fé – e isto não é
preparação sibilina que visa desconcentrar o alvo a quem vai
espingardear-se.
A pecha maior
do livro parece-me ser uma visão universitariante da aventura surreal.
Creio que me faço entender. Depois, parece-me que o livro está demasiado
preso a uma concepção que persiste em encarar o surrealismo ora como
escola (essa já é velha), ora como uma estética bretoniana (esta é mais
moderna, mas falha também).
Depois, não
leva em conta que o surrealismo acontece em todo o lado, não apenas em
Lisboa e arredores. E continua acontecendo, e tem acontecido.
Creio que,
honestamente tentando ser objectiva, serena e imparcial, concisa e proba,
se deixou também enlear na frieza, no esquematismo e numa certa visão
“oficial” que já tenho notado ser muito comum aos investigadores
universitários – pelo menos lusitanos. Repare que isto não põe em causa a
sua seriedade, como é óbvio.
Por isso
há lacunas no livro, o livro vê tudo muito por fora.
Acontece que,
como sabe, por cá continua-se sem se poder, como lá fora, (de boca
amarrada, também) comunicar o que de facto se tem passado. Algo tem vindo
a lume. Mas como tudo faz parte da Liberdade, importa que tudo seja claro,
solar. Daí, naturalmente, eu enviar-lhe o que vai anexo. Evidentemente que
existem dezenas de cartas e outra papelada, mas isso nunca eu o poderei
editar (sou, como disse, pouco abonado) e, se vai existindo uma história
oficial do surrealismo de cá, para quê (não sou eu que o penso) mexer mais
na ribeira? Sairia um peixe fluorescente? Pelo menos um carapauzinho
luminoso não duvido.
O principal
problema dos surrealistas portugueses (e isto leva uma carga irónica de
cinquenta metros) é serem pobres e não usarem gravata (embora alguns
tenham usado fraque).
Sim, o cardo é
enorme, já o Lisboa o disse. E a rosa?
Saudações
cordiais do
NICOLAU
SAIÃO
Nota – Um detalhe perturbador: não teria possibilidade de me arranjar um
exemplar do livro? Como lhe disse, sou pessoa pouco abonada e tal
far-me-ia muito jeito. E merci, desde já.
N.Saião (manuscrito)
(Enviada a Carlos Martins,
acompanhada de alguns elementos em espécie, para que a entregasse à
distinta ensaísta uma vez que eu não tinha o seu contacto.
Em meados de Janeiro 88 pude
dispor de um exemplar do livro, oferecido por Mário Cesariny).
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Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia,
Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto
individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto,
Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha,
etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia
ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia
geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan”
(1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do
tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica
(“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed.
Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O
armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos
de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o
mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos”
(2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade
em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas
sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado
em espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios,
“Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”,
“La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”,
“Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos),
“Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou os
livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas”
de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo
Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e
“Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado
mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março
de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”
(1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio
Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e
pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones
lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da
sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001,
a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e
cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.
Blog : Ablogando, em:
http://ab-logando.blogspot.pt/ |