Nova Série

 
 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO

Londres sem nevoeiro há já 4 anos…

ANDAVAM OS BOROGOVES DESDITOSOS 


    Mas isso era lá na antiga Borogóvia e eram só alguns. Os outros andavam, naquela altura estival, mais ou menos bem - pois os olhos, colados pela propaganda incessante dos aparatchikis do costume, parece que finalmente começavam a abrir-se. E vai daí, fizeram saber às gentes do mando, mediante uma manifestaçãozinha com alguns bons milhares, uma coisa absolutamente intuitiva, fundacional: que os filhos da casa, proletas dos quatro costados, têm, devem ter, precedência sobre os contratados que chegam de fora e que, por norma, ainda por cima cospem no anzol depois de terem comido a isca...  

   Puseram-se desditosos os manos reaccionários, politicamente correctos que usam apanhar bofetadas para não apanharem pontapés. Mas desta vez os proletas não cederam e o “poor fellow prime minister” teve de se conformar e apanhar os bonés todos. 
   Assim o fizesse também por cá o arteiro e manhoso premier e outro galo nos cantaria. Mas este jovem cheio de talento prefere estomagar os reformados e os outros demais portugueses, incluindo - chegou-se até a isto! - os membros da ótoridade e do sistema judicial, que também não são, convenhamos,  flores que se cheirem por aí além.

   Mas adiante: foram 4 dias muito bem passados, com gente fixe e talentosa e com uma assisteência interessada que não me fez perder o meu tempo.

   A funçanata teve lugar numa galeria perto do Strand, sítio que sempre me emociona. Ainda ali perpassam as silhuetas do dr. Watson e do seu amigo do cachimbo, do boné de abas e do amplo sobretudo em tecido príncipe de Gales... O que tinha um faro mais acerado que um cão pisteiro...O nosso "velho" Sherlock!

  E as algumas iguarias, fornecidas por um entreposto luso pela mão, obra e graça do alentejano compicha Manuel Caldeira, também estiveram muito acertadas…

   Custou-me foi o regressar.

   Sempre que saio/entro neste belo, alegre e triste Portugal, é o mesmo panorama: feliz por tornar ao lar mas curtidinho por dentro, como um couro, por ter de voltar à "piolheira" - como dizia com vernáculo humor, nos seus tempos, o juvenil príncipe D.Carlos... que depois deus teve em sua guarda.

   Tenho de me deixar destas viagens. Transtornam-me, fazem-me sentir cada vez menos português. E eu não queria, raios, porque até sou muito patriota…

  Para amenizar, aqui vos deixo um poema do acervo que lá fui apresentar. Com,  já e agora, uma certa enorme saudade!

LONDRES



Visitei Londres pela primeira vez numa manhã de Primavera.
Numa das margens do rio, um pouco ao estilo vitoriano
rapazolas snifavam tranquilamente
tornavam real e popular o mistério que William
Blake espalhou pelas coisas do inferno e do céu.
Velho carola
O que eu lhe li nas entrelinhas
o que eu inventei à sua custa com a proverbial
lucidez mediterrânica

Mas passemos adiante. Salvo erro
- e creio que isto é exacto –
daquela maneira desasada é que habitualmente circulavam
os que numa serena e fresca noite resolveram limpar o sebo
mesmo sob o nariz dos transeuntes
à jovem Elisabeth Douglas com sete naifadas no baço
(a sua mãe, o seu pai choroso
o ar compungido da locutora boazona
o cheiro provável a cera fria dos demais figurantes…)

Os cisnes em Datchet Court
solenes como dois turistas numa pensão da linha.
Londres Londres dali vejo partir os velhos aventureiros
G.A.Henty com a sua gravata verde os olhos piscos
Poetas envinagrados conjurando-se a uma esquina
lançando a âncora num pub despertando lembranças
Sucheu   Bali  as savanas do monte Kenya
lá passam de autocarro até Hampstead
não naturalmente pelos livros mas sobretudo
pelos leitores “recordo-me que uma vez
tentei trabalhar numa casa depois de uma outra quadrilha
lá ter estado”  O meu vizinho que sabe
que tudo é citação faz-me sorrir
conta-me coisas adormece-me.

Muitas coisas ficam desconstruídas, do grave
ao divertido

ao fim duma meditação intempestiva
Os domingos de sol
As prímulas na pradaria de Runnymede
O choro de Defoe ou de Donne sobre os rochedos de Chaltenham
O amplexo de um preto velho numa lojeca de Carnaby Street.
Mas a inocência
é já matéria sem relevo
é uma pérola  uma pedra  fibra descarnada e melancólica.

Londres exactamente e tudo o mais é divagação
há 300 anos eu aqui seria um inimigo.

Os salpicos de lama feriam-me a concentração
mas não havia bruma ouvia-se
um piano mecânico nas redondezas
Deserta a cidade rapaziada pedante mariquices isabelinas
- o obelisco como um carvalho nas colinas de Cape Staines.

É difícil pensei eu lançar o olhar em volta
tanta coisa poderia eu sei lá acontecer
A rapariga junto ao poste de iluminação pensativa
Cinco sonatinas para violoncelo e a sombra de Mateus Pipperbarem
uma voz que ondula de repente e pára.

Ferrovias contudo desdobravam-se ao longo dos continentes e foi então
Que me ocorreu Mas que faço
eu aqui
No entanto uma doçura muito velha percorria-me de cima a baixo
a Inglaterra florida e violenta martelava-me na cabeça
Robinson surgia de súbito acenando com um jornal na mão
Interrogativo um pouco alucinado.

A minha alegria ousará abrir caminho por aqueles labirintos.
A tepidez do Inverno num lugar mais aprazível.
Olho de novo o céu. A multidão comprime-se.

Noutras condições  pergunto  ainda estarei no recanto que sonhara?




Juan Pedro Moro

Trad. Nicolau Saião

 

 
 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/