Nova Série

 
 

 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO
Uma pequena luz - à guisa de
lembrança e celebração

  Diversos autores de formações variadas – de Albert Camus a Desmond Morris ou, entre nós, o Prof. Manuel Sérgio – se têm debruçado sobre o fenómeno desportivo e, dentro dele, o futebol, essa inteligencia em movimento como apropriadamente lhe chamou André Maurois.

  O futebol concita as atenções – não por acaso! – de  milhões de pessoas em todo o mundo: jogo entusiasmante a todos os títulos, joga-se com todo o corpo num vasto relvado, o que permite criar as mais diversas variações e as diferentes fases e coreografias que lhe estão associadas e que dele decorrem. E isso faz dele uma emoção completa.

  Como muito bem referiu um dia o nosso saudoso Carlos Pinhão, e cito de memória, o que interessa realmente é o que se passa dentro das quatro linhas; o resto…é o que não interessa neste jogo que nos encanta.

  Creio que sou explícito – sem colocar mais na carta…sem precisar de estar a ser redundante.

  Passa agora uma semana sobre o falecimento do excelso jogador Eusébio da Silva Ferreira (ou apenas, como aos nossos corações será grato dizer) de Eusébio. E não teria despertado, esse falecimento, uma emoção tão grande se não fosse ele, a par dum maravilhoso executante dessa “inteligência em movimento”, um homem de alta simplicidade cordial, de lhaneza e modéstia, de fair-play e bom carácter que o tornaram querido de espectadores encartados, de colegas de profissão no país e no estrangeiro e até de simples observadores.

   As algumas declarações insensatas, despropositadas ou inadequadas de certas figuras públicas em cujas personalidades se têm junto a vaidade, a pesporrência ou a enfatuada sobranceria de pequenos jogadores com o remate trocado, devemos deixá-las ao eventual julgamento da História – se acaso tiverem figura suficiente para lhe ocupar a atenção…

   Ora bem: em Janeiro de 1990 o Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas efectuou uma sessão de lançamento, no Palácio Foz, da antologia “O desporto na poesia portuguesa”, organizada pelo nosso confrade José do Carmo Francisco com a competência, o aprumo e a qualidade que o caracterizam.

  Como também ali estava representado (com o poema “O Futebolista” que vos dou a ler no fim) desloquei-me a Lisboa para participar no evento.

   O salão regurgitava. Estavam ali praticantes de diversos clubes e diferentes modalidades, autores dos poemas, dirigentes, jornalistas e muitos torcedores com o intuito, claramente perceptível, de também terem o ensejo de estar perto e ao vivo (ao vivo e em directo como se diz em expressão mediática…) dos seus ídolos presentes ou passados.

  Finda a apresentação que fora seguida de uma colação e de uma degustação de ligeiros acepipes (e de gostosos fragmentos de conversa com confrades, amigos e afins – foi nessa altura que conheci Dinis Machado, relacionamento esse que durou até ao desaparecimento do excelente autor de “O que diz Molero”) como tinha de estar a certa hora no entreposto fraternal dos meus parentes, na Ajuda, abandonei a partida antes do apito final, para usar uma expressão proverbial dos derbys…

   Quando ia quase no fim da escadaria de acesso ao salão onde ainda decorria o rescaldo do evento, ouvi uns passos picados atrás de mim. Voltei-me – e verifiquei, com alguma surpresa e evidente agrado, que se tratava de Eusébio.

  Esperei que chegasse a uns passos e disse-lhe com alguma emoção, “Senhor Eusébio, dá-me licença que o cumprimente?”. “Faz favor… retorquiu e de imediato me estendeu a mão.

   Disse-lhe então, além de lhe referir que era um dos autores representados na antologia que ele levava na mão, e por isso ali viera, que andavam os meus 4 filhos no futebol (dois nas equipas profissionais, respectivamente na Académica e no Estrela de Portalegre e outros dois nas camadas amadoras das mesmas) o que propiciara que Carlos Pinhão tivesse elaborado a meu respeito um texto dado a lume n’A BOLA sob o título “Era uma vez…Um pai que tinha 3 filhos que afinal são quatro” (pois o mais novito era somente iniciado). Que evidentemente o admiravam, que viam nele um exemplo de lealdade no confronto com os adversários e na maneira de estar na vida desportiva. Recordei ao de leve momentos de prazer futebolístico, como o famoso embate com a Coréia do Norte em que ele fora o protagonista principal…

  Ouviu-me sem se mostrar minimamente enfadado, antes com pequenas expressões de atenção educada e cordial.

  Não o querendo demorar mais, pedi-lhe licença e despedimo-nos com outro shake-hands desportivo, como dizia um conhecido comentador e, enquanto ele abalava, fiquei a olhá-lo e ao seu caminhar onde me pareceu notar uma pequena hesitação numa das pernas, provocada obviamente pelas diversas operações a que fora submetido.

   E nunca mais o vi em pessoa.

 Curvo-me com apreço e respeito ante a sua memória de grande figura dos relvados – ele que nasceu numa modestíssima casa do bairro moçambicano de Mafalala e que, pelo seu génio de praticante e pela sua postura de pessoa, foi conhecido, apreciado e estimado em todo mundo.

ns                                                     

 
 

O FUTEBOLISTA

 

Eu, jogador

me confesso

 

Cresço p’ra dentro e p’ra fora

mas só na hora

da bola

 

Mãos, pernas, cabeça

e outros acessórios convenientes

armam por mim

o desafio

universal: um driblar sereno

no terreno

da verdade

- esperança louca de golo

em vão, livre indirecto

para milhares de mágoas e alívios.

 

Como guerreiro de antanho

ou caçador

o território define-se para mim: balizas

linhas laterais, grande área. E o remate

é sempre o fim em vista

- como animal vencido,  o guarda-redes

oferece-se a meus olhos tal qual fosse

um cervo, uma abetarda, um leão morto.

 

Mas em meu peito não há

maldade ou manha escondidas:

há sempre o ardil que basta

para o canto certeiro, para o penalty

que resolve as partidas.

 

Em mim se encontram e recolhem

tristezas, grandes faltas

dum povo e dum país. Por mim se volvem

caras e olhares, tardes de raiva e glória

entre estrelas da noite e holofotes. Sou, afinal

como um ligeiro sinal, que num relvado

ganha futuro e passado.

 

Jogador por destino ou decisão?

P’lo menos homem exposto

à canelada e ao cartão

e a um desgosto: junto ao grito

o insulto do apito!

 

Sobre mim passam anos, ironias, madrugadas

em branco passadas por torcedores furiosos

firmes sócios de quota e coração.

Quanta alegria com um chuto quebrada…

Que a vitória é às vezes um nada

do camarote à bancada: mas o jogo, esse

não!

 

Uns me dizem monstro, outros menino

outros ainda usam minha face

no mundo excessivamente. E no entanto

sou só isto: rápida chama habilidosa

que a vida às vezes consome

sem sentido desportivo…

 

Mas é assim. Que a vida

-- seja ganha ou perdida –

tem tantas surpresas como uma finta bestial

feita sem ser por mal

a alguém de olho vivo!

 

ns

 

in “O desporto na poesia portuguesa”, antologia. Pesquisa, selecção e notas de José do Carmo Francisco - 1989.

 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/