Nova Série

 
 

 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO
É assim que se faz a História
Os namorados de Lisboa
(No Largo do Rato)

Os namorados

enlaçados

passeiam por Lisboa

com os rostos fechados.

 

Enlaçados

ou de mão na mão:

compenetrados

circunspectos e equilibrados

- estão ambos bem empregados –

…e além disso há a emancipação.

 

É tempo (que felicidade!)

de liberdade e de alegria.

Que serve para esquecer

que depois irão ter

uma data de anos de agonia.

 

Por enquanto passeiam. Miram, remiram

as montras. Tanta coisa bonita!

Assim até amar

- até casar –

é mais de recomendar

e mais catita.

 

Lá vão andando. Ignoram

o seu norte e o seu sul: o símbolo

grego, judaico, egípcio, lusitano.

Sabem é que é preciso

“indispensável, filho, indispensável”

achar apartamento até ao fim do ano.

Por sorte ela já deu c’um senhorio amável…

 

Têm o resto, que bom, mais ou menos tratado.

Até a Avó, que alívio, se lembrou de falecer

- o que vai dar certa ajuda ao ordenado -

Ah!  o velho pé-de-meia bem guardado

que enquanto adolescente ele se lembra de ver!

 

Eis que passeiam, olhando. E trocam gestos

minúcias, uma que outra carícia

sem maldade.

Da parte da polícia

não vai haver protestos

pois não visam lançar a anarquia na cidade.

 

Remiram e procuram, interessados. Ele, tá claro

com expressão de Homem

ela com jeitinhos de Mulher. E ao depois de casados

muito solenes e lavados

(um bocadinho encavacados)

farão então amor

- ele muito senhor

- ela cheirando a malmequer.

 

E seja o que Deus quiser…!

 

Amor do melhor, de confiança

sóbrio, digno e composto

sem tiques, sem toques, sem truques ‘scusados.

Mas com alguns ais

vá lá, dentro do esquema:

- afinal ela já leu, emprestados, alguns manuais

e ele tem ido ao cinema.

 

São bons, são simples, são naturais

sérios e correctos

com um tom português nos rostos mansos.

Mais tarde, ela vai desculpar

outros afectos

ele, compreensivo, vai desculpar

alguns escapanços…

 

Terão muitos rebentos de narizes iguais

ao avôzinho, ao pai, ao primo Florival.

Hão-de oferecer-se prendas em todos os Natais

quando na noite esvoaça uma figura infernal.

 

Em quatro assoalhadas gastarão a sua vida.

E na volta, aos domingos, do passeio de popó

ela às vezes achará que se sente perdida

e ele às vezes sentirá quanto andou sempre só.

 

Morrerão um dia de velhos, aos bocados

estranhos, inquietantes, repletos que nem odres

de vastos silêncios petrificados

p’los vizinhos muito considerados, coitados

inteiramente podres.

 

E terão nessa altura o nome no jornal

e muita, muita gente amiga no funeral.

 

No Largo do Rato passam namorados.

Honrados e serenos, passo miúdo e igual.

 

- Meudeus, meudeus, meudeus

como estamos estragados

(digo-me cá por dentro aos meus botões espantados)

 

Como é triste e ridículo o amor em Portugal! 

 

Junho de 76 

(Dado tb a lume em 78 num boletim do Bureau Surrealista, por Mário Cesariny)

 
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Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/