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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
Nova Série |
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NICOLAU SAIÃO Dos encontros e desencontros na
Cidade Um duo de três – António Luís Moita, José Alberto Reis
Pereira e José Carlos Breia |
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Trocando por miúdos: dois mortos e um vivo, ou um vivo e dois mortos, mas
os três bem vivinhos da silva pois “livre
é a raça dos poetas” como dizia Demóstenes e a cada momento isso se
confirma, se certifica e reconverte através do que escreveram, deixaram
escrito, continuam escrevendo num outro espaço e num outro tempo – os
olhos, o espírito e a alma de quem os lê – se os colocamos no lugar
expresso da Cidade, o lugar iluminado e perene, se sabemos guardar-lhes a
recordação, a legítima lembrança do que sempre irão sendo.
Consintam-me que por uns segundos me cite, de boamente e boa-fé: “A
quem servem as evocações? Em certas alturas, a nós mesmos. Talvez a um que
outro, recheado de minutos de dúvida sobre a face da sociedade. A gentes
projectadas num futuro incerto, possivelmente, viajando entre recordações
e utopias. Entre os rochedos da memória provável.A
certas horas, rodamos em torno das recordações como um lobo em volta da
presa. É a nossa própria carne que, como num espelho, se faz significado,
matéria afastada que pouco a pouco se ilumina(…)”.
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Portalegre vista do alto da Serra,
foto de João Garção |
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É sem desdouro que assim me exprimo, entre a emoção e a nostalgia. Mas eu
vos conto:
1. Conheci António Luís Moita
no final dos anos oitenta, embora de há muito lhe conhecesse o nome e
alguns poemas
colhidos por aqui e por ali na
imprensa e, musicados por cantores oposicionistas, na rádio dos tempos da
velha senhora quando o rei fazia anos. Os seus livros iria lê-los depois,
completos e oferecidos pela sua generosidade de confrade atento.
Ele dera a lume num jornal de Castelo de Vide um belo texto evocativo dum
seu amigo dilecto, o poeta Cristóvam Pavia, no qual era também referido
Francisco Bugalho, pai do autor de “35 Poemas” e figura destacada no
movimento da “Presença”.
Eu realizava nesse tempo numa das rádios portalegrenses um programa
semanal, o “Mapa de Viagens” e, por intermédio de confrades comuns,
convidei-o a estar presente para elaborarmos uma emissão (“Uma noite com
Cristóvão Pavia”). Aceitou de imediato e o programa aconteceu, ouvido com
agrado tal como com agrado fôra feito. Ele fizera-se acompanhar por José
Carlos Breia, que ficou doravante sendo das minhas gratas relações.
E foi este, tempos atrás e no meio duma conversa telefónica após um
período seu de convalescença, quem me deu a triste notícia do falecimento
do nosso comum amigo, que eu julgava ainda vivo apesar do seu, como ele
usava dizer, “barroco biológico”
que a todos atinge nos anos finais.
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Eis um dos poemas que um dia me enviou:
ORNITOLOGIA
Dez papam lagosta. Trinta, camarão.
Muitos, alcagoitas. Os demais, tremoço.
A tudo isto assisto na Associação:
“Esta teta é minha! Mama tu um osso!”
Passarões, decerto, na associciência
Com que tomam posse do lugar cativo,
Hoje, à mesa de honra, sábios se congressam,
Revirando os olhos, refinando o bico.
As araras palram, sacudindo as penas.
Palram papagaios, frente ao macacal.
Telecoloridos (como os seus poemas)
Vão rever-se à noite, no telejornal.
Ei-los que, ditosos, mútuos se deslumbram
Com saracoteios, com salamaleques,
Tanto os que num pipo de cachimbo fumam
Como as catatuas, por detrás dos leques.
De repente o espanto de mil sóis deflagra!
Cruzam-se holofotes. Vê-se (do balcão)
Um peru, no púlpito (ou uma abetarda?)
Crepitar no flash, pronta a
promoção.
Junto ao microfone, funga-lhe na boca
Fumegante, a fala, foto-fungicida.
Se, microgravada, não se fizer rouca
Por qualquer defeito do hi-fi da
fita,
Já meu tetraneto poderá escutá-la,
Para sempre limpa do presente morto,
Num glu-glu de stereo que
gluglui na sala,
Milagrosamente, sem um perdigoto.
Do Luiz quem sabe qual a voz que tinha?
Do Cesário findo qual a verde voz?
Mas daquele galo, daquela galinha,
Repenicam, longos, seus cocorocós.
Já o Tempo o eco dos seus cantos bebe!
Já seus trinos bebem, sem demora, o Tempo!
Pairam no futuro, vivos na cassete
Da posteridade, salvos nesse invento!
Entretanto, à margem, os que pagam quotas
Buscam-se nos bolsos, catam os tostões.
Bicam um tremoço, cascas de alcagoitas.
- Este, o aviário. Estas as gaivotas.
Umas são gaivinas. Outras, gaviões.
25/1/82
A.
L.M.
2. O meu conhecimento com o
Engenheiro (que este era mesmo engenheiro e não engenheiral…) José Alberto
dos Reis
Pereira, filho do pintor/poeta Julio/Saúl Dias e sobrinho de José Régio,
decorreu de outras circunstancias. Eu diria…profissionais.
No
princípio dos anos noventa, tendo estado durante algum tempo colocado na
Biblioteca municipal para efectuar determinadas tarefas, em certo dia
foi-me dito pelo presidente da gerência de então da Câmara, um antigo e
benquisto amigo meu, que tinham pensado colocar-me definitivamente no
Centro de Estudos da Casa-Museu do autor de “Davam grandes passeios aos
domingos…”, que desejavam estivesse daí em diante sempre aberto aos
visitantes e em plena disponibilidade de contactos e actividades. Tinham
tido a pronta aquiescência do engº Reis Pereira, tanto mais que ele
conhecia escritos meus e sabia da minha posição ante a figura de Régio,
que algumas vezes eu evocara na imprensa e na rádio.
Após
a minha entrada no Centro os contactos foram-se paulatinamente
estabelecendo e, a partir duma certa altura, estreitaram-se.
Cordialíssimo, de fino trato e marcada sensibilidade e talento, escrevia e
pintava de forma autónoma, com voz própria. Apesar da estatura do seu pai
e do seu tio lhe serem tão próximas, tinha os seus caminhos pessoais, o
que pode ser confirmado por quem consultar o belo álbum “O Surrealismo
Abrangente, colecção particular de Cruzeiro Seixas” - editado pela
Fundação Cupertino de Miranda – no qual é sublinhada a sua “pintura
e desenho neo-expressionista bad, próximo da Arte Bruta, com traço
impulsivo e cromatismo fauve”.
Em fins de Fevereiro deste ano, admirado de não ter, há algum tempo já,
feedback pl’os envios que de
tempos a tempos faço a confrades, resolvi telefonar-lhe. Fui atendido por
uma voz feminina, a de sua esposa, que com triste surpresa da minha parte
e mágoa mútua me disse que o engenheiro José Alberto tinha falecido
repentinamente nos inícios do mês. Encontros…desencontros…que é disto que
se constrói o nosso périplo relacional.
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O texto que segue foi-me cedido para
publicação (in suplemento
cultural “Fanal”, que eu então co-coordenava) no número dedicado a José
Régio:
RÉGIO – A COERENTE DIMENSÃO
A diferente valorização dos conceitos como
forma de intervir na orientação do que, em cada época, vai sendo tentado,
adquirido, conseguido, é por certo um indicador das coincidências, dos
encontros e dos desencontros que preenchem o relacionamento dos homens e
das ideias. Vem isto a propósito do que em Régio haverá de dissonante com
correntes ou tendências que hoje se vão afirmando e que, por isso mesmo,
assumem o natural confronto com o existente.
A sujeição a um novo olhar, à nova luz de
novos tempos, é assim um inevitável exercício para a obra de arte, para o
que, sendo o resultado da íntima criação, fica depois disponível ao
diverso entendimento, às várias circunstâncias, aos humores e aos afectos.
A importância dos valores permanentes, o
confessado gosto de Régio pelo perdurável, pelo intemporal, pela
realização continuada, com vagar e na íntima coerência de quem desenvolve
posições muito próprias, são aspectos que poderão constituir um ponto de
partida para a breve análise a que nos propomos. Como o será também o
olhar profundo, a visão interior que não teme a complexidade do homem nem
cede a tentações de modas, ao domínio dos valores formais ou outros
alheios à condição artística.
Pensamos poder dizer que, no geral, será na
“coerente dimensão” da obra de Régio – e aqui a coerência não limita ou
condiciona a diversidade de uma dimensão que é muito mais que apenas
física – que se poderá encontrar alguma dissonância com autores mais
recentes. Com correntes que invocam, por exemplo, a restrição da liberdade
criadora que dizem caracterizar o pensamento coerente e o trabalho
continuado e que por seu lado valorizam práticas de eficácia mais
imediata, como o improviso e a liberdade de mudar, sem que para isso seja
relevante qualquer condição anterior.
Por outro lado, conceitos como a valorização
do efémero, da conjuntura e da circunstância, bem assim como a visão mais
à superfície, na epiderme das coisas e dos seres, e a maior atenção ao
detalhe e ao pormenor diferenciado, têm na actualidade particular
expressão. Como têm também os aspectos formais que, valorizados pelas
novas tecnologias, assumem hoje um papel mais relevante, quando não
dominante e em desfavor dos aspectos de concepção e conteúdo.
Não nos ocupando agora em assinalar as
diferenças ou procurar os encontros – o que seria um outro trabalho,
talvez com resultados de alguma surpresa – interessa clarificar que é na
própria obra, na energia vital que sobrevive ao desaparecimento da sua
origem, que terá que se encontrar a capacidade de resposta ao confronto
dos tempos. Por isso se indicam alguns dos elementos que sendo
significativos da vitalidade do texto e do espírito regiano, serão
determinantes para o necessário balanço revelador.
O primado da liberdade criativa, da criação
libérrima que só na autenticidade tem o seu limite e o elevar a actividade
crítica ao nível da restante produção literária, condicionada apenas pelo
dever ético da “compreensão crítica” são, desde logo, valores que temos
por vitais na obra de José Régio. Como o são também, e sem ser exaustivo,
o fundo olhar sobre si próprio e sobre os outros, uma permanente atitude
dialética e antidogmática que desde sempre manifestou; como o é ainda a
coragem em assumir a sua pluralidade – “Que diabo, não sou homem de uma só
face! A minha unidade tem de se afirmar na diversidade”, diz o poeta no
Diário; - a interveniente prática da polémica e da intervenção cívica;
como ainda o é também o assumir da sua particular condição de homem
religioso, como confessava em livro quando a morte o surpreendeu.
Obra centrada nos desafios da íntima
diversidade, na coerência onde há lugar para a razão, para o esforço
continuado do progresso do conhecimento, mas também para o mistério, para
o sublime, para tudo o que está para além dos limites, a obra de Régio
permanece frente aos desafios dos novos tempos, na coerente dimensão que é
a sua energia vital.
J.A.R.P.
3.
E
a finalizar - num registo que como decerto verificarão tem um sentido
aprazível de permanência pelo enfoque cerzindo o passado, o presente e o
futuro, pela justeza de tom e pela nostalgia que contudo não nos destroça
– 3 poemas de José Carlos Breia:
DICIONÁRIO
Este é o livro
onde as palavras
cristalizam.
Do livro agora aberto
-
do preciso rigor das suas linhas,
retiro algumas dessas
formas frias.
Rodeio, lento, a sua
geometria.
Paciente, procuro,
ponto-a-ponto
a cruz axial em que
se animam.
Os pequenos cristais
revelam ângulos,
planos
que a sua dura forma
escurecia.
Secreto,
fecho depois o livro
em que o poema,
recomeçado sempre,
ausente fica.
RETRATOS
Olho os retratos
que nesta velha sala
me rodeiam.
Entre quadros e
livros muito lidos
eles cercam-me
e pedem-me cuidados:
que lhes tire o pó
dos vidros
e a mancha das
molduras.
Brilham agora,
limpos,
mas ainda inseguros.
Eles querem também
que os reconheça:
querem, da minha
vida,
a vida que me resta.
(Mesmo o meu gato
preto,
por quem chorei
talvez
mais do que por
ninguém,
me lança a fina
fresta dos seus olhos
pedindo-me que o
deixe ronronar).
Mas são, contudo, os
vivos
-
os que ainda se arrastam lá por fora
que mais me
preocupam.
Eram belos e plenos
seus corpos.
Pareciam eternos.
Mas há muito morreram
nos retratos
que nesta velha sala
me rodeiam.
in “LUGAR NENHUM”
DAS PEDRAS 1
A pedra na mão.
Na minha mão
Disse-o Décio, o
romano,
que com ela matou.
Disse-o o nómada Ben
Zir
quando ao meditar
a rolou.
Devraux, o
arqueólogo,
disse que se tratava
de…
Von Zeint, o geólogo,
contestou
Se enobreceu túmulos
ou palácios
não sabemos.
Mas,
talhada por mãos
hábeis,
foi arte,
é vida.
Passou por muitas
mãos
e de todas, um pouco,
ficou.
A pedra na mão.
Na minha mão.
Milhares de histórias
entre os dedos.
in “DAS MÍNIMAS
COISAS”
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Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia,
Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto
individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto,
Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha,
etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia
ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia
geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan”
(1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do
tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica
(“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed.
Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O
armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos
de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o
mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos”
(2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade
em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas
sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado
em espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios,
“Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”,
“La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”,
“Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos),
“Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou os
livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas”
de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo
Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e
“Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado
mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março
de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”
(1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio
Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e
pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones
lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da
sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001,
a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e
cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.
Blog : Ablogando, em:
http://ab-logando.blogspot.pt/ |
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