Há um filme, espécie de bíblia do mundo dos “gangsters” a sério, que a certa altura nos dá uma cena crucial.
Já lá vou, mas convirá
referir que nessa fita (“Dillinger”)
o papel principal é sustentado por um Warren Oates superlativo – esse
mesmo, o do “Tragam-me a cabeça de
Alfredo Garcia” do nosso estimado “Bloody Sam” Peckinpah.
A talhe de foice eu
aconselhava o seu visionamento a deputados, magistrados, secretários de
Estado, etc e juro pelas alminhas santas que estou de boa-fé. Porque
ficariam esclarecidos sobre o que é que um arquétipo dos “enragés”,
dos “gangsters” honrados (ou
seja todos nós, às tantas, numa sociedade torpe como a que temos) pensava
sobre as suas deles profissões de risco. Mas adiante…
E a cena é esta: estando o
Dillinger - na clandestinidade, é claro - num bar a tomar uma refeição com
a amante, calha de ser topado inteiramente por acaso pelo Ben Johnson, que
faz de chefe detective e perseguidor-mor. Cavalheirescamente este entende
que ali e no momento se está em território neutro e deve haver
contemplação. Por isso, depois de uns segundos de umas estocadas de
conversa, estende a mão nobremente ao seu adversário – que pura e
simplesmente não lha aperta e o olha de maneira que demonstra que a vida
para ele não é uma comédia de cavalheiros.
Este episódio
cinematográfico ocorreu-me ao meditar nas sensuais esgrimas discursivas
entre a estimável e a respeitável confraria de políticos adversários uns
dos outros, talentarrões como dizia Eça, que se querem mutuamente dar o
pontapé pl’a escada acima que é
o caricioso destino que espera estes brilhantes cidadãos quando saem do
redondel da confraria pura e dura em que se enfronham e mergulham.
Porque, vejamos, este
pugilato mais ou menos platónico tem-no havido sempre, na nossa saborosa
democracia
tendencial, protagonizado pelos que pertencem ao
jet set (um pouco rasca,
convenhamos) de que estes afidalgados têm sido um brilhantes ornamento de
retórica e de conversa fiada. Porque estes senhores barafustam e chegam a
enxovalhar-se, quer em privado quer em público, mas no fim tudo acaba em
bem…
As chatices práticas e os
desfechos sanguinolentos estão guardados para os
cá de baixo.
A tristeza é que é sempre a
população, as gentes do povo, que ficam com
as barbas de molho. E não se tem
esperança de que venham em breve a acordar indignadamente. Dando-lhes o
proverbial e rijo pontapé no traseiro, como nas fitas do Charlot.
O cinismo de que são
possuidores, bem servido por uma contra-informação que principalmente se
apoia no arbítrio, na intimidação e no descaramento (por o povo ter
brandos costumes entendem que lhes assiste o direito de tripudiarem sobre
ele impunemente) mantém-nos no trono dos cinzentos corredores onde têm o
seu habitat.
Meus amigos, meus
confrades, meus manos: atiremos ao menos a esta gente, com a dose quanto
baste de altivez e de dignidade enxovalhada,
um longo e duro olhar.
Se eles (ainda) tiverem
alguma vergonha(?) decerto entenderão.
Ns
Nota – O título desta crónica aponta para o célebre romance de Malcolm
Gair, um dos especialistas do “hardboiled” moderno, publicado entre nós na
famosa colecção Olho de Lince e que é um thriller emocionante versando o
tema da corrupção e do abuso – coisas muito apelativas e extremamente
portuguesas a alta escala…
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Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia,
Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto
individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto,
Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha,
etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia
ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia
geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan”
(1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do
tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica
(“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed.
Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O
armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos
de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o
mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos”
(2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade
em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas
sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado
em espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios,
“Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”,
“La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”,
“Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos),
“Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou os
livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas”
de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo
Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e
“Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado
mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março
de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”
(1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio
Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e
pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones
lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da
sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001,
a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e
cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.
Blog : Ablogando, em:
http://ab-logando.blogspot.pt/ |