NICOLAU SAIÃO

Um pouco de Paraíso (1)

Loja, contra-loja e armazém”, de Carlos Garcia de Castro

  O autor deste livro original – poeta e prosador doublé de professor que também foi radialista nos seus tempos de vilegiatura açoriana (durante 10 meses manteve na Rádio Angra o programa “Pensamento e Poesia”) e com tudo isto amigo de Manuel d’Assumpção, interlocutor de Régio, Manuel Inácio Pestana, Jacinto do Prado Coelho, João Rui de Souza, Tóssan e outros mais de que destacaríamos os professores Firmino Crespo e Manuel Duque Vieira - dá-nos no tomo um registo que vai além do simples memorialismo para se vazar claramente nas evocações comovidas de uma época e de uma cidade (região incluída) que têm a ver com a emoção emanada da escrita e seus múltiplos lugares de indagação do universo.

  O título não é simbólico, certifica uma realidade próxima a que os tempos há pouco deram fim: o encerramento da conhecida e conceituada Loja Hermínio Castro, entreposto onde se cruzaram durante décadas, nos tempos duma Portalegre compósita com seus tons de lenda e de encantamento popular, o rico e o pobre, o remediado e o assim-assim, o urbano e o serrenho das terras em volta de São Mamede, ainda hoje um dos rincões mais isolados do Alentejo, alto meandro de vivências e de estórias que, aqui se deixa dito, o autor de “Davam grandes passeios ao domingo…” conferiu nos seus caminhares de colecionador fervoroso.

A loja, neste volume onde a prosa é adequadamente sulcada por poemas extraídos de vários livros anteriores (um deles, o excelente “Fora de portas” tive o gosto e a honra de o prefaciar e apresentar no Brasil em 2009 - São Paulo, Editorial Escrituras) é o elemento à roda do qual se encenam as reflexões e os factos relembrados. Não está ali como pretexto mas entidade viva.

Sendo lugar onde se juntaram existências e figuras, foi nela que o autor entreviu experiências profundas de convivência e sentiu ritmos que o qualificaram como homem e como escritor.

E sendo claramente o livro de um poeta que evoca, pois como poeta e de alta qualidade ele se cifra aos nossos olhos, é também um livro de profunda rememoração de anos e de personagens doravante fixados num perfil exacto, sensível e inteiramente significativo.

 Eis um dos poemas inseridos no livro:

 

Domingo, depois de almoço,

convictos, os funcionários,

que ao lastro da semana em liberdade

só raramente jantam com as famílias

(picar nos tascos desenrasca mais)

vão de automóvel para Castelo de Vide,

perpassam por Marvão sem nada à volta,

conversam na Portagem: – Vamos embora…

ou raspam-se para Valência, à gasolina.

– Então não vamos dar uma voltinha?

Ao sol de Março, em paz, que é luzidio,

sai-se de casa após mais alguns restos

de aconchegadas discussões diárias,

dum lapso de virtude, uma estalada (…)

– É assim mesmo, para saberes quem manda!

– Hoje é domingo, vamos jantar fora.

Por isso é que elas passam esparramadas,

sornas, algumas, a olhar para os lados

por trás dos vidros de automóveis limpos

que os maridos já lavaram,

depois da praça, Fonte do Açude.

Vejo-os passar e penso, deslizante,

como os orgasmos semanais da posse

de madrugada aos sábados confirmam

nestes lugares os meus irmãos da espécie.

Um filtro de amor, altivo,

sustenta equilibrado estas poupanças

que almoçam frango e febras no churrasco.

Vêem-se sempre passear à tarde

edificantes automóveis lestos

que em toda a parte, de semana, amargos,

se adoçam conformados aos domingos.

 (…) Enquanto, porém, mais outros,

também independentes mas pacíficos,

fundamentais, de gozo inda maior,

municipais se ficam com cervejas

fumando e resolvendo nos Cafés

 

os problemas do trânsito.

 

 

in “Loja, contra-loja e armazém” (Edições Colibri, Novembro 2011) 

(Nota – Os textos de ns não seguem nunca os preceitos do Acordo Ortográfico)

 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.