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NICOLAU SAIÃO |
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NOS ONZE ANOS DO SEU FALECIMENTO
Lud, habitante do outro lado do espelho |
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Paisagem,
serigrafia de Lud (Junho1948 - Junho 2001),
col. ns |
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A notícia, vinda no JL pela mão de Vítor Silva Tavares, apanhou-me de
chofre. Horas antes, já um ex-colega tentara entrar em contacto comigo
para me transmitir a triste notícia. E isto porque, à puridade aqui fica
dito, a última conversa que tivéramos no dia anterior fôra precisamente
sobre Lud - Ludgero Viegas Pinto - o pintor e poeta bissexto, o
imprevisível Lud que contudo comigo sempre agira como um cavalheiro e
confrade fraternal.
Afinal, o Lud já estava morto à hora em que concertávamos pedir-lhe
desenhos para o suplemento que então co-coordenava e em que combinávamos
apanhá-lo, na próxima ida a Lisboa, para uma conversata até às tantas.
Mas a vida – a vida que a morte, essa, não tem nada senão negrume
– tem destes arrepios, destes desconchavos que nos derribam a alegria. A
essa hora, a esse tempo em que congeminávamos projectos que o incluíam,
já o Lud lisboeta dos quatro costados e alentejano por casamento e
inclinação (como tantas vezes me disse nos tempos em que frequentávamos
Monte da Pedra, terra de sua mulher) percorria outros caminhos, outras
jornadas de peculiar desenvoltura. Talvez em passo estugado, como usava
nos seus bons tempos de empenhado fruidor de ritmos epicuristas, ou em
passeio mais pausado desde que uma recomendação de médico lhe
aconselhara dietas menos reconfortantes. À hora em que nós o
recordávamos pensando para ele diferentes enquadramentos, Lud retoiçava
já noutras paragens com o seu atento olho negro de português retinto, o
cabelo asa de corvo e o bigode à Douglas Fairbanks dos seus bons tempos.
Lá por setenta e um setenta e dois, em certo dia apareceu-me na Estação
Meteorológica onde eu, pela mão de Vitorino Caramelo, me iniciava como
ajudante de meteorologista (única profissão que de facto tive, o resto
foi só caminho civil para tratos de existência quotidiana) um sujeito de
porte atlético solenemente vestido com um desses fatos azulados que se
usavam na década, impecável camisa branca e gravata a condizer. Vinha
falar com os responsáveis dum Liceu ou duma Escola do burgo
portalegrense para que cordatamente o admitissem como professor de
desenho. Propósito louvável, mas algo quimérico. Como pouco depois vim
a saber pelo mesmo Pedro Oom que para mim lhe entregara recomendação,
só por intemerato desígnio é que Lud se dera a esse périplo de potencial
labutador…Com efeito, Lud não era propriamente cidadão que conseguisse
estar dia após dia, com esmero, ensinando estudantinhos com propósito e
persistência. Ele mesmo se encarregou, digamos, de me esclarecer sobre o
inusitado da indumentária, da farpela de dandy: “É só para
a entrevista…”, elucidou-me na sua voz educada de alfacinha
encartado. |
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O
terceiro – óleo de Lud |
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De
modo que o que lhe ficou dessa viagem algo quimérica foi só uma belo
almoço na aprazível “Casa Capote” e, dispersa pelos anos, a amizade do
signatário.
De tempos a tempos aparecia-me em Portalegre, em geral acompanhado de um
primo amigalhaço ou dum vizinho conterrâneo da esposa e lá íamos nós a
caminho da aldeia de Monte da Pedra onde, numa simpática tasquinha a
condizer, depois de lauta manducação de petiscos regionais nos
entregávamos ao prazer singular e algo desenquadrado da declamação de
poemas e ao trautear de algumas canções – manutenção de minha lavra –
que o Lud acompanhava com fervor mas sem timbre excessivo…
Em Lisboa, algumas vezes com Carlos Martins e, pelo menos uma vez, com
Luís Osório e Henrique Madeira, demos nossos passeios cortados
eventualmente por alguma partida das que gostava de artilhar.
Pirraças em vol d’oiseau mas que nunca indiciavam maldade, antes
certificavam um humor de cepa lusitana sem ferocidades.
Colaborou comigo em suplementos e revistas. Fez capa para um livro meu
que não chegou a sair na altura por o seu presuntivo editor ter falido
com pequenino estrondo, mas que foi o suficiente para se lhe entravar a
rota. Expusemos em conjunto aqui e ali, no país e lá fora com envios
pela prestimosa e bendita via postal. E até combinámos, num dia mais
sonhador e pachorrento, uma viagem a Itália que o Lud afinal não pôde
fruir por mor de outros afazeres e, razão muito ponderosa, por não lhe
abundar marcadamente o vil metal.
Em casa dos familiares próximos do Dr.Feliciano Falcão, conviva e amigo
de Régio, está decerto uma obra sua. Foi compra/venda feita durante uma
das tais viagens até aos rincões de São Mamede. Por mor desse negócio
artístico proveitoso, generosamente, o pintor quis debruçar-se comigo,
fazendo do seu bolso as honras do bródio, sobre uma vasta pratada de
marisco acompanhada de outros pitéus e líquidos condizentes, numa Casa
do ramo bem conhecida ali ao pé do Coliseu da capital.
Lud tinha mão de pintor e era – para mim sempre foi, como o
atesta uma dedicatória iluminada com um desenho e aposta no meu exemplar
de um livro de C.W.Ceram – um conversador tonificante ainda que algo
deambulatório. Levemente intempestivo para alguns, não sei porquê mas
sempre manifestou pelo que aqui o evoca e relembra uma cordialidade
afectuosa e um companheirismo intelectual que nunca desceu à zombaria ou
ao descontrole. Ares serenos do Alentejo o enlevavam nesses momentos?
Não o sei, nunca o soube nem procurei tirar isso a limpo, confesso que
jamais pensei muito nisso. Mesmo agora e quando ele se foi e só restou
um halo de saudade com uma dúzia de anos.
Nessa altura senti uma sensível amargura e disse para os meus botões
enquanto lhe recordava o perfil desaparecido: “Até sempre, amigo
Ludgero. Que descanses coloridamente, já sem as tuas habituais
inquietações, na absoluta paz final!”.
ns |
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Gato número seis – óleo de Lud |
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Nicolau
Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou
em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália,
Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter
exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris,
Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi,
Sevilha, etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio
Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor
ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro
(1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O
desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a
sair).
No Brasil
foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e
plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a
Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique
(2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os
fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e
ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato
Suttana “Bichos” (2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na
surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na
Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.
Tem
colaborado em espaços culturais de vários países: “DiVersos”
(Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”,
“Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil),
Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),
“Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”,
“Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”,
“Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista
365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou
os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de
portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do
Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno
Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros
Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural
publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de
Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.
Organizou,
com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o
Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O
futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na
Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de
poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no
álbum “Canciones lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município
da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e,
em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de
actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de
Mérito Municipal. |
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