NICOLAU SAIÃO

Beirão de lei

  Tinha eu p’raí uns 16 anos quando, num dia, um colega de estudos um pouco mais velho que passava entre a maralha e os docentes por dado às letras e era filho dum senhor com ideias avançadas como então se dizia, alertou-me fraternalmente mais ou menos desta forma: “Vê se lês o Alves Redol e também o Manuel Mendes. São bons romancistas e escrevem duma maneira progressista…”.  E logo a seguir, com cuidados de orientador (que mais tarde veio a ser antes de abandonar evangelizações e abalar para os brasis) acrescentou: “Há também o Aquilino. É progressista mas não é indispensável que o leias pois escreve duma maneira um bocado confusa e o meu pai já me disse que é anarca”.

  Olhei-o com algum espanto, pois nessa altura eu não percebia bem certo tipo de vocabulário porque tão-só iniciava o meu desemburrar nas matérias do foro revolucionário militantão, que aliás nunca consegui realmente cumprir.

  Sem lhe dizer nada, portanto na clandestinidade literária-escolar, fui dias depois pela calada à biblioteca que a saudosa D. Josefa Morgado custodiava como mestra da disciplina de Português e, sem esforços excessivos, consegui tomar conta de dois tomos: “Romance da Raposa” e “Príncipes de Portugal – Suas grandezas e misérias”.

  Em suma: fiquei para sempre perdido para as andanças proto-partidárias e neo-realistas a carácter. Pois o que eu fui encontrar naqueles dois livros sugestivos na sua ática aparência, materialmente falando (e o da raposeca ainda por cima era o das ilustrações de Benjamin Rabier) foi uma escrita vigorosa mas festiva, tersa e tão escorreita que me deixou enlevado. Era um pouco confuso, sim, para usar a terminologia do meu putativo orientador de leituras. Confuso no sentido em que o seu vocabulário, vibrante de colorido, não se cingia ao habitual mas caminhava francamente num reino com expressões de cepa regionalista, no caso a fala natural dum escritor beirão de ampla diversidade oratória, confundindo assim os que estavam habituados a consumir apenas uma escrita do tipo pão pão queijo queijo.

  Fiquei para sempre apegado ao autor de “É a guerra”, “O homem da Nave”, “Filhas de Babilónia”, “Alemanha ensanguentada”…

  Um pouco à guisa de Stendhal, que para purgar a escrita ia frequentemente à Biblioteca Nacional ler excertos do Código Civil, faço quando calha “cura de águas” com Aquilino Ribeiro. Para além de ser sempre um gosto, é um belo remédio: não há chateza colhida em jornal de letras que lhe resista; não há pedaço de romancezeco lido por uma questão de know how que o afronte.

   Ficam logo liquidados, em palpos de aranha. É uma tisana que se recomenda.

  Ora há bocado, ainda que não estivesse muito enfartado – comera apenas uns pedacitos de Marguerite Yourcenar, que é boa febra – apanhei o “Arcas encoiradas” na sóbria, e talvez por isso mais bela, edição da Bertrand. E num rasgo de acaso fui logo topar com aquele trecho que a dado passo nos fala de Britiande.

   Aqui o deixo transcrito, pois me parece uma página muito capaz de nos servir dois minutos de comprazimento:

“(…) Aquela estrada para Lamego, sombreada de grandes e belos castanheiros, e com rampas destemperadas, abundava em paragens dignas de nota, mas nenhuma como aquela. (…) Todavia aqui, além, mais além-fora erguiam-se muitas cruzes de homem morto e estes nichos ou estelas, que os espanhóis chamam humilladeros e nós simplesmente alminhas. Mas as tragédias tinham-se apagado nos cemitérios e nos cartórios sem deixar lume nem rasto.(…)

       Britiande, com as casas fidalgas, dum lado e doutro, na rua tão estreita, que, de noite, se ouviam os traques de cá para lá, algumas de bojuda cornija de abadia e janelas especiosas, mandadas construir por indiáticos, tinha imensa graça. Tinha-a para mim, de olhos habituados às aldeias de construções troglodíticas em granito bruto. Na calçada a mala-posta levantava uma trovoada sonora. Os cavalos encrespavam as crinas, tangidos pelo chicote do Ceguinho, que soltava sobre eles naquela ocasião um estalido homérico, os velhos empertigavam-se contra os muros para não serem atropelados, e as mães puxavam os meninos para as soleiras das portas, estes meninos de monco verde, camisinha rota sobre o zimbório, e uma vergazinha incipiente ao léu, iluminura não apenas de Britiande mas de todos os lugarejos beirões.

   Sempre me deu que cismar este nome de Britiande, terra que era como uma avançada dos nobres paredais de Lamego, mãe jurídica da Nacionalidade. Um dos criados do colégio, que era natural dali, explicava:

- Chama-se assim porque quando D. Afonso Henriques ali passou à frente das tropas, havia nozes pelo chão. Vinha com pressa, mas os soldados arregalaram o olho. E ele deu esta ordem: Brite e ande.

- Essa agora!

- Muitas vezes me contou meu tio, que era barbeiro, esta anedota…

- Ele leu-a?

- Ler não leu, mas ouviu-a ao pai, que lha contou por a ouvir ao avô. Sim, senhor!

   Quando com meu pai, escarrapachado na abacial Bicha, passávamos por Britiande, ninguém olhava para nós, o que eu achava natural. Depois do Fundador, que as gerações ali celebravam como em Lamego, qualquer cavaleiro era coisa de quotiliquê. A nossa passagem é que não deixava de atroar a calçada que vinha do tempo de D. Tareja, construída para os caseiros de Egas Moniz não encharcarem os pés quando desciam de Riba Douro, ajoujados de dízimos e gabelas, para os paços de Tarouca onde vivia o magnata, alma de diamante. Se não era assim, fica por conta de Fr. Bernardo de Brito, que nunca lhe caíam os dentes ao mentir.

   Meu pai deixava a cavalgadura num ferrador que havia à saída da ponte sobre o Balsemão.

- Trate-ma bem, mestre. São as minhas pernas…

- Vá descansado, senhor, que não seria melhor tratada a mula do papa.

  E era. Naqueles tempos havia honra e lisura, até entre alveitares e professores de alveitaria que lidavam com mulas reais. Hoje a égua de meu pai teria penso similar ao do cavalo do inglês.” .

 

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Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.