|
|
NICOLAU SAIÃO |
|
Sobre a poesia de António José Forte
|
António José Forte:
Póvoa de Santa Iria, 6 de Fevereiro de 1931 – Lisboa, 15 de Dezembro de
1988
|
|
Dizia Ernesto Sampaio
em “A única real tradição viva” que “É esta a orla de um tempo onde todo
o pensamento grande e rigoroso vai dar ao Inferno”.
Noutro continente, por
seu turno, referia Chesterton que “Todo o encadeamento de palavras leva
ao êxtase, todos podem levar ao país das fadas”. É pois entre florestas
e sombras inquietantes ou surpreendentes que se movem as vozes dos
Poetas, uma vez que a razia social, se acaso consente a maravilha, muito
mais desejaria essas vozes perenemente sob um sol negro de amargura.
Nestes tempos do fim como lhes chamou André Coyné, a Poesia move-se com
dificuldade e é deslocando-se entre Sila e Caríbdis que a nave poética
busca chegar a bom porto.
Não tenhamos ilusões:
o Poeta que o é e não simples abonador de prestígios em verso para maior
glória dos seus donos, tem sempre pela frente a insídia das horas do
quotidiano policiado – mesmo sendo homem de paz – da intolerância social
das aparelhagens sediadas nos pólos onde a avidez, o interesse
orientado, a mesquinhez, a corrupção judicial e a fraude pública ditam
as suas leis.
Para os que persistem
em opor aos desvigamentos sociais do dia-a-dia uma palavra alta e clara,
já Gilbert Proteau nos esclareceu qual o destino mais provável: a corda,
o punhal, o garrote, as difamações geralmente impunes, o calabouço e,
nos casos mais suaves, a marginalização. Aos que acaso escapam, resta em
geral uma vida de dificuldades que, entre nós, se cifra na “apagada e
vil tristeza” dum mundo que não pode e não quer consentir a liberdade
luminosa de ser-se “profeta e aedo num país onde só querem que haja
lapuzes e vilões”, para citar Manuel Carreira Viana.
A poesia de António
José Forte, falecido em meados de 1988, ilustra de maneira perfeita o
trajecto de quem não cede e persiste em procurar a casa encantada em
cujo telhado crescem floridas excrescências carnosas, o “palácio ideal”
que Cheval levou à prática e tantos outros tentam erguer ora aqui ora
ali, entre bosques primordiais e estranhas muralhas de granito.
Desde o seu primeiro
livro “Trinta noites de insónia de fogo nos dentes numa girândola
implacável” até aos poemas finais dados a lume na Editorial Estampa,
passando pelo texto que tinha como personagem nuclear Daniel Cohn-Bendit
vindo a público na revista “Grifo”, imediatamente retirada de circulação
pela PIDE que impediu a publicação de novos números, sente-se perpassar
uma grande inquietação temperada, todavia, pela ternura dos seus
melhores momentos. As imagens encadeiam-se de forma inusitada, sempre
muito próximas de um “real absoluto” que punha em destaque o amor e o
conhecimento do mundo onde as figuras estendiam salutarmente de mão em
mão os objectos comuns como um cigarro ou uma chave.
Lembro, das conversas
havidas ao velejar dos minutos ao fim da tarde ou já na noite colectiva,
o interesse que Forte tinha pelos grandes mistérios da existência
(pirâmides de Tenochtitlan, as construções desenhadas na planície
desértica de Nazca…) e, em contraponto, os enigmas contidos na
existência quotidiana habitual, que lhe pareciam ultrapassar os outros
em fascínio e estranheza. Esse quotidiano onde ele “passasse a fumar/ e
o fumo fosse para se ler”.
A poesia de António
José Forte foi-me dada pela primeira vez a ler por Donato Faria, seu
companheiro de emprego nas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, numa
das nossas habituais reuniões (já Forte saíra de Portalegre para ir
trabalhar na Casa mãe) na pensão da Rua 31 de Janeiro, frente à taberna
Capote e cujas janelas de terceiro andar deitavam para o Largo da Sé –
sempre repleto de gente, principalmente rapazes e raparigas alunos da
Escola do Magistério Primário, nesses anos em que a cidade não
mergulhara ainda na desertificação que hoje a caracteriza em geral e no
casco histórico em particular.
Foi ali que este me
mostrou os “Cadernos Pirâmide” da responsabilidade de Carlos Loures e
Máximo Lisboa. Era a segunda vaga surrealista, que trazia nela autores
como Manuel de Castro, o magnífico poeta de “Estrela Rutilante” que
teria como pares, no desenho e na pintura, as explosões singulares de
Mário Botas e José Escada, posto que actuassem por outras bandas.
Mergulhando
inelutavelmente no sonho de todas as horas, interiores e exteriores, a
poesia surrealista desses tempos, seguidos logo de outros onde mais
autores se forjavam, forçava por libertar-se dos enleios do hábito, do
conformismo imposto por condottieri exteriores, geralmente literatos
subidos ao poder administrativamente e nele mantidos pelos mandantes
dentro e fora dos órgãos de comunicação e das estantes desses lugares de
massacre que demasiadas vezes são os “estabelecimentos de ensino” de
alto coturno. E em que o lirismo, mais que ser apenas “um epigonismo da
prisão de ventre” como Cesariny dizia com justa ferocidade, seria luz
revelada na noite geral.
O lirismo de Forte,
separado – por uma brusca mutação interior – daquele que ainda hoje se
expande em revoadas de folhas propiciadas por tanto vate de ocasião (ou,
o que ainda é pior, por operadores de safada carreira cimentada por
áulicos), aspirava à realidade, essa realidade outra (surrealidade) em
que as mãos, por exemplo, já não são objectos para prender os movimentos
alheios mas sinal palpável de fraternal sabedoria alcançada, pomo
finalmente liberto abrindo fulgores diferentes e mais autênticos.
Contra a quinquilharia
que frequentemente fere o viajante, a sua poesia é susceptível de criar
em quem a lê um apetite de melhor e menos banal. A sua adjectivação, que
nunca bordeja as margens do efémero ou do destrambelhadamento
pseudo-original, que nunca reside e se deixa cair na redundância
pretensiosa mas é antes um sublinhar de adequadas iluminações, faz
passar de estrofe para estrofe símbolos que extinguem a inutilidade das
escritas que acatitam a leitura.
Dizia Étienne de
Sénancour: “O homem é perecível; pode ser…Mas pereçamos resistindo e se,
ao fim, o que nos espera é o vazio e o nada façamos com que isso seja
uma injustiça”. A poesia de António José Forte, que permanece nos nossos
ouvidos e na nossa cabeça muito depois de ser lida, ilustra de forma
soberana como é possível lançar, aos deuses programados e programadores,
o grande desafio dos que sabem ser e dar-se a si mesmos como penhor de
que não foi em vão a passagem dum Poeta pelas planícies do tempo
destroçado.
ns |
|
TRÊS POEMAS DO LIVRO “UMA FACA NOS DENTES”
(Prefácio de Herberto Helder
Parceria A.M. Pereira
Livraria Editora, Lda.) |
|
AINDA NÃO |
|
Ainda não
não há dinheiro para
partir de vez
não há espaço de mais para
ficar
ainda não se pode abrir
uma veia
e morrer antes de alguém
chegar
ainda não há uma flor na
boca
para os poetas que estão
aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem.
ainda não há nada no
pulmão direito
ainda não se respira como
devia ser
ainda não é por isso que
choramos às vezes
e que outras somos heróis
a valer
ainda não é a pátria que é
uma maçada
nem estar deste lado que
custa a cabeça
ainda não há uma escada e
outra escada depois
para descer à frente de
quem quer que desça
.
ainda não há camas só para
pesadelos
ainda não se ama só no
chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração |
|
POEMA |
|
Alguma coisa onde tu
parada
fosses depois das lágrimas
uma ilha,
e eu chegasse para
dizer-te adeus
de repente na curva duma
estrada
alguma coisa onde a tua
mão
escrevesse cartas para
chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler
alguma coisa onde tu ao
norte
beijasses nos olhos os
navios
e eu rasgasse o teu
retrato
para vê-Io passar na
direcção dos rios
alguma coisa onde tu
corresses
numa rua com portas para o
mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar |
|
O BOM ARTÍFICE |
|
Entretanto
dez séculos mais tarde
no local do drama
o diabo
diante
do seu fomo
levanta por instantes
seus doces olhos
para quatro
mil cadafalsos
Vêde
mais
além o bom artífice
mostrando
anjos
ou
batéis
ainda uma canção
se gostais
de
belas torturas
não
ouvireis nada |
|
Nicolau
Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou
em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália,
Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter
exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris,
Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi,
Sevilha, etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio
Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor
ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro
(1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O
desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a
sair).
No Brasil
foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e
plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a
Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique
(2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os
fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e
ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato
Suttana “Bichos” (2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na
surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na
Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.
Tem
colaborado em espaços culturais de vários países: “DiVersos”
(Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”,
“Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil),
Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),
“Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”,
“Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”,
“Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista
365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou
os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de
portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do
Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno
Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros
Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural
publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de
Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.
Organizou,
com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o
Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O
futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na
Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de
poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no
álbum “Canciones lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município
da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e,
em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de
actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de
Mérito Municipal. |
|
|
|