NICOLAU SAIÃO
FASHION
Ante-propósito

  Falar na crise? Hum…Não me apanharão ainda nessa. Que, isto digo eu, basta senti-la para um cidadão ficar um bocadinho…turvo. Que é como quem refere: essa malina, de que na verdade o povinho não teve culpa (tirante, talvez, ser demasiado confiante nos poderes mágicos, que lhe diziam ser de gente decente e talentosa, dos que o guiavam ou simularam guiá-lo).

   Costumo dizer que no final são sempre os mesmos que “pagam as favas”, como reza a expressão algarvia que depois extravasou para todos os pontos cardeais da pátria quando é caso de uma pessoa se manifestar em relação ao hábito, relativamente maldoso, de se assacarem ao cidadão comum as caquexias, os erros - e senão mesmo pior - dos que “todo lo mandam” imperativamente, porque têm nas mãos todos os mecanismos que permitem tripudiar a seu bel-prazer sobre o geral da nação.

  Mas, como disse, não será ainda hoje que me apanharão a falar da crise. É qualquer coisa interior, do meu interior, que a isso se nega…assim como uma forma particular de fugir à realidade que faz, ou fez, com que o desemprego de há anos venha sempre a aumentar, que as exportações tenham diminuído pese aos esforços praticamente heróicos dos senhores ministros do ramo, de todos os ramos, para exaltar os brios de empregados e patrões.

  Não ouvirão, soltando-se da minha boca sensata e preclara, uma palavra adusta que seja para tentar ridicularizar ou increpar limas, loureiros e companhia. E nunca me mostrarei agastado contra as jaculatórias, mais de sacristão bondoso ou de prior de freguesia, que quando lhe dá na veneta ordeira o senhor presidente solta pelos ares, aconselhando calma e esperança aos lusitanos que em público vão carpindo mágoas. Nem nunca escreverei uma vírgula sequer xingando o presidente perpétuo que, mesmo sem estar presidente, fala como presidente  - sendo apenas, talvez, um cidadão opinativo e que quase sempre se enganou, de tal sorte que a meu ver a História vai ajustar contas com esse simpático pai fundador.

  Em suma: serei, durante todos estes tempos de pré-bernarda (como este último há dias vaticinou com visível aprazimento maroto) um poço de discrição, de contenção.

  Irei, conto eu, por outros caminhos.

 Há bocado, por exemplo, ouvi na rádio que uma imaginativa industrial, no caso nortenha, tinha tido a ideia, a meu aviso feliz e singular, de confeccionar sapatos ilustrados, ou seja: usando pinturas d’arte de fabrico próprio de parenta próxima, para dar mais qualidade estética no exterior aos populares chanatos ou calcantes que propõe aos potenciais compradores nacionais e estrangeiros.

  Prolongando a ideia, que acho soberba, num registo mais clássico, quem não gostaria por exemplo de trazer nos pés, confortavelmente calçados de boa pelica ou de bom cabedal tradicional, uns sapatos tendo como leit-motiv as naturezas-mortas de Cézanne, os campos de Eduardo Viana, as fantasias realistas de Pomar ou, no limite, as figuras celestiais de Miguel Angelo?

  Eu acredito que é mediante estas imaginações que a indústria pode crescer, salvando-nos um tanto da…crise (tenho de empregar a palavra), propiciando ganhos ao Comércio e rectificando mesmo a Indústria.

  É, nesta ordem de ideias, matéria de moda, da legítima.

  E por falar em moda, aqui vos deixo à guisa de minha contribuição mínima no esforço relativamente nacional, ou seja alentejano, um “boneco” e um textinho líricos precisamente com aquele título.

 

     Em todo o tempo as há, mas no Verão nota-se mais. E no Inverno é mais majestoso.

    Lá vão elas andando desfilando como estátuas hieráticas com tudo, contudo, no lugar.  

    E são brancas e pretas, ruivas e morenas e louras e de cabelinho rapado para ficarem exóticas, ex-ópticas aos nossos olhos em bico em bugalho em riste como binóculos de apreciadores de corridas de cavalos ou de paisagens longínquas.

    A umas os seus construtores/construtoras querem que apreciemos as partes de cima, outros/outras as partes de baixo – e nós, que sabemos apreciar ver coruscar como faróis na noite olhamos principalmente o que as suas construtoras construtores não lhes fizeram/costuraram mas lhes foi dado pela natureza o acaso a simples e boa elegância que ou se tem ou se não tem, raios.

    Elas lá vão deslizando como borboletas numa serena manhã de verão ou ao entrar da noitinha. Meninas, lindas meninas, qual de vós o vosso ideal e os/as que as miram escrutinam remiram sentem por vezes um frémito um arrepiozinho que acrescenta um tremeluzir na passerelle. Como se fosse o ring em que se batem contra a fealdade do tempo e a beleza da idade.

   Como se não fossem apenas estátuas hieráticas mas pessoas andando desfilando no quotidiano dum mundo reconfigurado e liberto.

 

                                                                                                           ns

 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.