1.
Como escreveu Étienne
de Sénancour em comentário lançado ao papel antes do seu périplo famoso
por Itália e pelos países do centro da Europa, “as viagens são sempre um
sonho”, refazem um pouco o nosso imaginário e aproximam-se sem cerimónia
da descoberta ou, menos importunamente, da redescoberta de mundos apenas
entrevistos, de raças e de credos.
Dizia-me Pedro
Henaro, no decorrer duma intensa jornada a pé por Paris que deixou o
autor de “Los Amigos” a meditar no facto de que provavelmente são os
alentejanos grandes caminheiros, que “os povos pobres não fazem turismo
nos países ricos, são os povos ricos que o fazem nos países dos outros,
os primeiros quando muito fazem viagens…”. Tal parece-me uma evidência,
embora nas últimas décadas o panorama tenha mudado um tanto: é que nos
países pobres – e se calhar por isso é que estes são pobres – existe uma
coorte de privilegiados, de membros da classe possidente que, mais ou
menos conscientemente, excursionam a seu bel-prazer pelos rincões mais
inóspitos do planeta para seu consolo e nossa nefanda inveja… E, ainda,
o denominado “turismo social” - invento do omnipresente mercado para as
classes médias-baixas que são uma fatia considerável em que havia que
meditar - já permite que se passem fragmentos de férias por aqui e por
ali, da compenetrada Suíça às paragens improváveis das Caraíbas e do
Magrebe, que por enquanto lhes estão algo defesas as arribas da Nova
Zelândia e as planuras arenosas do Kalahari.
Não vai nisto nada
mais que não seja uma simples constatação. Pois por mim, que não tenho
fantasmas embora tenha muitas nostalgias, sempre viajei - medite-se na
suprema ironia do destino – à custa da poesia, da arte e fazendo meu
trabalhinho, executando meu labor, à guisa daqueles maestros dos tempos
vienenses de Maria Teresa ou do grande Francisco José, que recebiam sua
paga e seu jantar por terem encantado, como aperitivo mavioso, a
aristocrática assistência com trechos a carácter.
É que a poesia,
ajudando-nos a viajar por dentro também nos permite por vezes viajar por
fora, principalmente nas alturas em que os dirigentes da nação, sejam
eles locais ou nacionais, já integraram positivamente a ideia acertada
de que os artistas não-enfeudados e com argumentos reais de obra feita
não são simples importunos beliscando as chamadas “forças vivas”, mas
embaixadores legítimos duma cultura que muitas vezes com dificuldades e
entraves ultrapassam as coordenadas mentais de uma região e de um perfil
social e humano, constituindo também e ainda uma fotografia adequada dum
ambiente de relação.
O Canadá…Quantas vezes
nas minhas horas de adolescente ele povoara a minha imaginação! Em
frente do “Mundo de Aventuras”, do “Cavaleiro Andante”, de outros
jornais para gáudio de “gente dos 7 aos 70 anos” como publicitava
inspiradamente um deles, eu seguia com desvelo as aventuras dos
exploradores de ouro do Yukon, no território do Klondike, dos mounties
(nome popular dos membros da Polícia Montada) dos índios hurons e
delawares, dos terríveis iroqueses de cabelo em crista, como se fossem
“freaks” antes do tempo, das jornadas por entre os bosques da península
do Erie e do Ontário, sulcada de rios, povoada de veados e de esquilos,
de lobos e de fogueiras luzindo ao longe!
Quem me diria a mim que
haveria de conhecer um vero “polícia montado”, o comandante Augusto do
Rosário e de excursionar na sua companhia de juntura com outros
confrades pelas intermináveis planuras da Hurónia, de provar a água do
lago Huron na Georgian Bay e de conversar com índios e pioneiros
contemporâneos nos arredores de Toronto e em Sainte Marie des Hurons
onde ainda há bosques iguaizinhos aos desenhos do sonho antigo e, p’ra
turista e viandante sentir, paliçadas e cercas de vigia donde eu
contemplei, já sem inimigos ardilosos, preferencialmente as estrelas ao
entrar do crepúsculo sobre as copas daqueles arvoredos, num silêncio
emocionado.
2.
Mas nem só de
referências da adolescência foi criada a minha simpatia pelo Canadá e a
minha expectativa, concretizada num encontro multidisciplinar, com
aquela parte da América; paradoxalmente, no entanto, tão diferente e tão
semelhante ao seu vizinho do Sul. Com efeito, se as semelhanças físicas
e territoriais são evidentes, o perfil interior das duas nações é
completamente diverso: mesmo nos estados do Leste – e não devemos
esquecer que o Canadá, realmente, é sim os “estados unidos do Canadá” –
se sente uma presença palpável das suas origens europeias, ainda não
dispersas. Sendo um país de imigração, hoje como ontem, os Estados
Unidos têm características de lugar definitivo, com uma estrutura
cimentada e previsível. No Canadá, que é manifestamente um país ainda em
construção (possuindo contudo uma individualidade muito própria e
peculiar) ainda se sente um ar de aventura, de espaço aberto à
imaginação e ao livre empreendimento.
Até na Arte e na
Literatura tal se nota – e daí o seu grande encanto. Semelhante, só a
sensação de segurança que ali se respira, que é paralelo ao sentimento
de liberdade e de cidadania. Não se sente, pelo menos eu não senti e
creio que não estou só nesta minha opinião – nem violência, nem racismo,
nem miséria. Sociedade assumidamente capitalista, nota-se na
administração pública, entretanto, um respeito pelos direitos
individuais dos cidadãos, uma devoção – que talvez seja incentivada pela
consciente opinião pública – à causa comum de quem ali vive e trabalha.
Pude constatar, por conversas mantidas com causídicos, escritores e
simples particulares, que ali seriam impensáveis actos de prepotência e
de desrespeito como existem noutros países, quer da parte dos mandantes
e das forças de segurança, quer de jornais de chantagem ou de
associações duvidosas.
Ali, tanto quanto pude
aperceber-me, as leis – todas elas elaboradas para visar o bem comum –
são mesmo para cumprir. Nem os pequenos delinquentes nem os “colarinhos
brancos” se vêem desresponsabilizados por uma caricatura de Justiça, nem
os próceres do poder, por seu turno, abusam das prerrogativas de mando.
Sempre o podem tentar, uma vez que o ser humano – evidentemente! – não é
constituído por seres angélicos, mas o preço a pagar é elevado. Nem há
abusos dos célebres “policiais montados”, assim como seria impensável o
desrespeito a qualquer sua indicação. Assim, por exemplo, há uma
integração harmoniosa, pacificante, no quotidiano citadino, cruzamo-nos
a cada passo com as mais diversas figuras humanas: do negro com trajos
da sua comunidade familiar ao empertigado britânico, louro, escarolado,
com aspecto típico de súbdito de Sua Graciosa Majestade; do esquimó ao
alentejano, da loura filha do Norte europeu à chinesinha coleante e à
indiana hierática. Naquela “megatown”, como é dito até nas indicações de
mapas, fervilham etnias e comportamentos, concepções de vida e de
espiritualidade (há, por exemplo, templos de inúmeras confissões e, sem
conflitos, respeitando-se mutuamente).
Para quem chega de
fora, creio eu, o primeiro e mais forte sinal que se recebe é pois este:
o de uma Democracia que funciona e onde, salvas as naturais diferenças
de talento ou capacidade, nos sentimos donos da nossa própria
personalidade e do nosso destino.
Mas não haverá, pois,
aspectos menos conseguidos? Naturalmente, e em textos avulsos de autores
diversos eles são analisados. Mas constituem pequeno sinal obscuro, são
de reduzida monta. Dar-vos-ei antes sinal palpável, esvoaçante, do
périplo quotidiano, social e cultural que durante aquela incursão fui
achar dando, ainda, alguns perfis mesmo que esboçados de coisas e de
pessoas que o leitor decerto gostará de conhecer.
3.
“É este rio, Senhor,
mui largo e de boa feição. As margens, no verão, estão cobertas de
grande soma de árvores das mais variadas cores. Há ursos, castores de
boa pelagem e veados de forte corpulência. Entre as plantas rasteiras e
de média altura retoiçam uns animalinhos a que chamamos esquilos e que
alegram a vista pelo correr e saltar nos ramos e troncos. As aldeias dos
pagãos são mui numerosas, os homens de boa estatura e as mulheres
graciosas posto que pouco recatadas”.
Estas palavras, a que
naturalmente dei o cunho português daquela época, escrevia-as o Sieur de
Postallet a um seu correspondente fidalgo que ficara em França, ao
descrever-lhe as imediações da que seria mais tarde a grande e bela
cidade de Otawa. Repare-se no pormenor da descrição, que não esquece
inclusivamente o pouco recato das mulheres índias – pouco recato,
acrescente-se com a dose exacta de ironia, de que os mais ou menos
recatados filhos da Gália usavam tirar bom proveito…
No resto, a descrição
– que constitui na verdade uma pequena tela – mantém-se ainda hoje fiel
à realidade. O rio, o Otawa, ainda é largo e de boa feição, os
horizontes que dali se descortinam são fascinantes, ademais de coloridos
com todo o prestígio da lenda. Foi por estes lugares que se desenrolaram
ferozes combates entre franceses e britânicos, mas foi também por aqui
que viveram índios de alto grau de civilização e excelente traça que,
tendo pouco a ver com os postulados ocidentais, eram a expressão duma
vivência em que a terra, as árvores, o firmamento, a chuva e os frutos
da terra, os animais e os seres humanos se integravam harmoniosamente,
adequadamente, de tal forma que muitos exploradores, como nos refere o
canónico Herbert Wendt no seu livro de análise e divulgação “Tudo
começou em Babel”, tomavam costumes índios e habitavam com eles nas
aldeias e nas florestas, numa adoptada fraternidade que mais tarde os
”ventos da História” iriam aniquilar.
Mas os vestígios
ficaram, acrescentados de muitos outros de gerações posteriores, o que
está magnificamente espelhado no Museu do Conhecimento do Quebec, que
tive ensejo de visitar num dia inesquecível, acompanhado pelo poeta Juan
Ribeyrolles que na ocasião se encontrava no Canadá por motivos culturais
mas também familiares e transportado pelos sócios da Casa do Alentejo em
Toronto, Mariana e João Candeias, que na noite anterior no decorrer do
jantar havido nas acolhedoras instalações da agremiação se
prontificaram, com a energia desempoeirada de habitantes do Novo Mundo,
a levar-me a conhecer a capital do Canadá. Pois não era longe,
explicaram-me com desenfado, ficava apenas a cerca de 400 quilómetros de
distancia…
Pelas cinco horas da
manhã, uma manhã em que como durante toda a estadia tivemos a sorte de
gozar o chamado “verão indiano”, me foram buscar à Shaw Street onde eu
ficara na casa de outro confrade, quase no cruzamento com a Dufferin se
bem me lembro ou digo bem, uma vez que os nomes das ruas, de vinte
quilómetros ou mais, vão-se-me esgarçando no meu proverbialmente
distraído sentido da toponímia… E enquanto a cidade que nunca dorme
descansava no entanto, passados os bairros periféricos e entrados na
auto-estrada de Leste, esplendia nas luzes cintilantes, como de cenário
de science-fiction, dos seus arranha-céus de aço, de vidro e de cimento
concebidos por arquitectos com o sentido da beleza, nós atravessávamos a
noite canadiana, as grandes planuras cortadas de ribeiros e de bosques
onde as herdades de extensos trigais eram agora a rota que sulcávamos
como modernos exploradores visando os territórios desconhecidos.
Desconhecidos para
mim, naturalmente, poético maçarico do Velho Mundo. Que eles, além de
por sua profissão de donos de uma agencia de viagens conhecerem
razoavelmente o país, que de tão extenso nunca se chega a conhecer
absolutamente, também por seu gosto o visitam tanto quanto podem com
desvelo, museus e monumentos incluídos, desde as paragens da mítica
Saskatchewan até aos lugares menos distantes da cidade de Montreal.
“Preparem-se para uma grata surpresa – preveniram-me com unção – pois o
museu é uma maravilha!”.
E é, asseguro-vos.
Desde os toténs índios às pirogas, das barcas dos “voyageurs” aos tipees
de pele e os wigwans de madeira, desde os artefactos indígenas e étnicos
às pinturas dos que chegavam, às esculturas em pedra macia dos índios do
norte, muito de belo ali se vê. Mas também um “museu dos Correios”, com
espécimes variegados – de carroças para pequenos trajectos até às
carruagens para maiores lonjuras, passando por automóveis e camionetas
do princípio do século vinte e, mesmo, uma dessas avionetas tão
familiares aos cinéfilos, que cruzavam os céus da realidade e das
películas e das histórias de quadradinhos.
Noutro sector, estava
um razoável acervo de arte naif mais actual composto por várias salas
com esculturas em lata, madeira, cerâmica, tapeçarias com materiais
diversos, do trapo ao entrançado, pinturas sedutoras na sua assumida
ingenuidade… E, maravilha das maravilhas, uma “cidade” do tempo dos
pioneiros com simulação exacta de ruas e o céu em trompe l’oeil de
plástico especial, com a padaria, a igreja, a retrosaria e o célebre
“saloon” no estilo do Klondike, a enfermaria, os carroções das viagens
pelas planícies e os próprios para o comércio, a estação dos comboios
com uma locomotiva a vapor e, como corolário, um barco baleeiro dividido
em três parte sobrepostas, autêntico, saindo da enorme parede numa
simulação de grande efeito, com o capitão e os marinheiros de madeira ou
de cera, o desfazer da baleia, os grandes caldeirões para a derreter, as
barricas do óleo…
Jantámos num Cofee
retintamente americano destes sítios e pude apreciar as especialidades
locais, que me locupletaram sem excessivo custo, servidos por duas
senhoras que juntavam a boa aparência à cordialidade sempre de estimar.
Sem intuitos
publicitários, mas apenas de fruição cultural e artística, sugiro-vos
uma visita a Otawa, a cidade que é por si mesma um museu, no decorrer de
uma viagem ao Canadá. Num voo charter isso hoje pode fazer-se com uma
perna às costas e sem irreparável dispêndio – e os lusitanos sempre
tiveram e creio que ainda mantêm o gosto pela aventura mesmo assim,
urbana e civilizadamente. |
Nicolau
Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou
em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália,
Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter
exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris,
Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi,
Sevilha, etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio
Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor
ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro
(1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O
desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a
sair).
No Brasil
foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e
plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a
Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique
(2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os
fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e
ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato
Suttana “Bichos” (2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na
surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na
Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.
Tem
colaborado em espaços culturais de vários países: “DiVersos”
(Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”,
“Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil),
Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),
“Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”,
“Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”,
“Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista
365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou
os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de
portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do
Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno
Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros
Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural
publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de
Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.
Organizou,
com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o
Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O
futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na
Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de
poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no
álbum “Canciones lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município
da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e,
em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de
actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de
Mérito Municipal. |
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