NICOLAU SAIÃO
Dois poemas perdidos (b)

(Encontrados por António Garção entre as folhas dum livro emprestado por seu pai, dactilografados em folhas brancas calandragem 98 e datados de Agosto de 81)

“Um Café é o lugar onde podemos arruinar-nos, enlouquecer ou cometer um crime” – Vincent van Gogh

“Um Café tanto é um continente perdido
como um lar encontrado” – Lord Alfred Jelly

OS CAFÉS

Eles são territórios de solene aventura

com seus nomes diversos e pacatos

com seus nomes soberanos de antiga submissão:

Cafés do nosso mundo interior e exterior

a lembrar-nos o tempo, a liminar memória

tão conhecida e próxima, nocturna e singular.

 

- o Café onde um dia contemplámos o cerne

de que nos construimos: os Cafés da cidade

toada familiar

a que não se resiste

e por vezes nos muda a rima cá por dentro

setentrional como um cântico sob o luar de Fevereiro

seja só para a bica ou para maiores rumos

da primordial viagem:

o Facha e o Central, peculiares estações

onde li quer as opacas ordenações perfeitas

de Maurice Scève, Bulgakov, Antonin Artaud

quer a fulgurante linha de terra criada

por René Char e Nerval

- ainda não existia nessa altura a incisão deste silêncio –

pelas tardes de Verão, com amigos à mesa

 

(o Donato Faria, acompanhado

pelo Par Lagerkvist por dentro da cabeça

ou o Drago longilíneo que depois deu em romancista

ou ainda o Arnaldo, que tinha um pai polícia

o que é sempre matéria para odes

próprias ou alheias)

prolongados em conversas donde surgiam segredos

anos e anos depois

inteiramente sentidos.  Cafés

como o Alentejano, substância de possibilidades metamórficas

e por isso tendo a ver com os proverbiais sete pontos

de orientação europeia

ou o Tarro das elegâncias funéreas

de magistrados, professores, lojistas finos

ou ainda o Luso, onde se viam geralmente o pernalta

e o seu irmão contabilista

o rico ou o obliquamente pobretana, o estudante e o doutor

e outros

negociantes dos arredores da existência e demais vilas.

 

Quantas vezes

na orla insubmissa das noites comigo mesmo

foi neles que senti, olhando os rostos em torno

o faiscar repentino das descobertas diárias

que a seguir se dispersam e vão por todo o lado

como redondas andanças dum sentir universal

e portanto bem nosso.  As manhãs

 

repousadas, um contínuo pulsar

de entradas e saídas

porque sempre a tal nos ligam alegrias e tristezas

se adolescentes somos ou já adultos olhamos

os retratos do passado e o barulho do futuro.

 

Os meus Cafés existem muito para além de mim

nesta terra, naquela e naqueloutra ainda

- Cafés de Portalegre, um Café de Madrid

onde li as palavras que Bergamín escreveu

a traços largos numa parede, entre desenhos

de companheiros já idos ou simplesmente fuzilados,

o Café de Leiria (como se chamava a menina dos petiscos…?)

que tantas vezes acolheu com bondade comercial

a minha estranheza de militar por acaso

lá na mesa do fundo, com muitos anos a vir

e a abalarem p’ra diferentes latitudes

ao recordar com afecto as refeições a crédito

do fraternal patrão e as viagens p’ra casa.

Um Café de madrugada, sito em Ciudad Real

onde fômos comer churros, acompanhados

por canecões de chocolate a escaldar, mas mais propício

que um discurso de alcalde ou señoria. Um Café

rumorejante de Paris

onde tentei encontrar resíduos de poetas báquicos e resistentes

e em troca – we never know – quase fui engatado por uma londrina

que certamente nunca estivera na Rua da Junqueira

onde habita a última imagem de Café que frequentei

antes de passar à peluda.

 

 Cafés, entidades secretas de tessitura incessante

em vós se pode

sentir o amor passar numa figura desfocada

entre outras coisas que passam, cintilam e logo após

se dissolvem entre ruas calcorreadas e planetas

ano atrás de ano divisados

- um de cada lado da mesa, construindo

o imenso mistério que em nós pode habitar

e trocamos como um eco enquanto mastigamos

às vezes com manteiga, às vezes com mostarda

 

as lembranças da vida e as sandes de fiambre.

(Anotação manuscrita a esferográfica: “Para Os objectos inquietantes”)

 

DAGUERREOTIPO

     (Sobre uma escultura de Jacob Epstein)

Na sala ligeiramente silenciosa

frente a mim e a oeste de toda a luz solar

há dois homens sentados. Um deles é barbudo

e ambos são infelizes

estúpidos e feios

mas duma infelicidade e duma feiura de homens

que são barbudos feios sob tudo o que a manhã pede

de húmido e habitual, histórico e quotidiano.

São infelizes e vão durar muitos anos

pois ambos se agarraram desesperadamente à vida

como se a vida – sem símbolos – fosse

em tamanho superior ao volume normal.

 

São homens que bebem comem e acham certo

que dormem e acham perfeitamente certo

que defecam caminham sorriem bocejam e acham

mais do que certo

que não concebem nada de equivalente ao voo sinistro

de borboletas verdes sobre o mar

ou duma faca cravada no pescoço queimado

dum aborígene, dum alfaiate qualquer ou dum

habitante desconhecido duma cidade inominada

Que num domingo sem maldade colocam entre parêntesis

algum espanto petrificado em horas, em minutos

até chegar o crepúsculo com o seu barulho encantador

com os seus pobres rostos vidrados de dois mil anos de civilização

principalmente nas infrenes segundas-feiras

e vão olhando um pouco atónitos o existir nuclear das cerejeiras

das flores sublunares

que é o que lhes resta fazer,  especialmente neste poema.

 

Coitados, não estiveram em Hiroxima

em Belsen, em Lisboa

- até isso lhes foi negado –

são, por estranho que pareça

habitantes do sétimo círculo paralelo à Ursa Maior

homens enfim do tempo do pepsodent e das canções ligeiras

das herdades antigas de súbito reconfiguradas

e da saudade, da mansa e dolorosa agonia dos pintores de Altamira

em postais pro bono

hoje viajantes perplexos junto ao túmulo de alumínio dos seus descendentes

enquanto lá fora os cães citadinos ladram debaixo da brisa que a tarde dá

e angustiadamente rolam pela relva, eles lá sabem

com os olhos postos num esquisito embrulho que ali ficou por esquecimento

- os seus olhos pacíficos onde parecem esvoaçar fantasmas.

 

Rockdrill  Rockdrill existe

digamos mesmo em coro    e paz aos homens de boa vontade.

 

Minha pequena Antígona, tu que com esse nome te autoliquidaste

e hoje mais não fazes que buscar sem repouso a caixa azul

levemente amachucada pelo tombar das vigas

tens, pois quem dúvida, um gafanhoto no teu sapato amarelo

douradamente grego ou mesmo dior 37

prático, funcional mas elegante

com um bem esgalhado revólver de um designer de fama

apenas para assustar quem nos aborde na rua

com o pretexto de nos mostrar uma escultura moderna

um relógio de marca muitíssimo barato

um in-fólio iluminado por pontas-secas de Durer

e certamente uma ilusão abandonada

toda feita de palavras supostamente simples

nessas localidades inquietantes a que a tradição deu singeleza

e em cujos recantos caiem de tempos a tempos flores meio calcinadas

apontando sabe-se lá para continentes múltiplos.

 

Tu minha redôce Antígona, cinderela de papel normalizado

- e que bonito é ler, saber pintar, contar

histórias de estarrecer –

nos teus dias de volúpia como segredos contados

pelas aias meio-surdas desaparecidas, de balbuciados bons-dias

de guerreiros descritos entre o não e o talvez

procuras muita coisa essencial

quando o teu rosto ameno e comum irrompe em reflexo entre os drops das montras quando encostada ao vidro a tua infância sonhava

tentando ver o destino que adivinhavas sem escolha.

 

Sim  Rockdrill existe   quer o queiramos ou não

 

Que pensariam de nós os celtas, os aztecas

e os tais que devolviam os presentes que lhes eram atirados

enquanto um que outro gemido se ia ouvindo

à luz dum candeeiro de petróleo, provavelmente

se meditassem nos enforcamentos que o inverno nos concede

aqui, ali, acolá

quando à nossa volta crescem as velhas plantas tuberosas

de que já o Hispano falava com os lábios a tremer

se pensassem que nas mesas podem de repente surgir

uns quantos insectos mortos, vindos de parte ignota

alguns lápis roídos

ou uma pedra pequena

desenhada ou esculpida com um amor temeroso?

 

Todos irão ficar, não duvidemos, sem um ou dois

lugares onde estiveram tenuemente.

 

Não brincar, ou brincar, é o primeiro mandamento

já que os deuses nos facultam certos momentos de repouso.

E é então que se pergunta: que faz este copo sobre a toalha? Como

te chamas tu? E se pergunta ainda: somos candidatos ao recomeço?

Onde pousar

este cinzel tão velho, este bisturi rombo

com que matei o princípio que a todos foi comum?

 

Mas mais provável é que a resposta não venha

e que no átrio deserto e mesmo assim familiar

surjam de repente outros vultos barbados, de bocas

muito abertas, de silhuetas limpas mas aterrorizados

como o senhor amável que todas as manhãs delicadamente

nos saúda à esquina do prédio

em aramaico, em latim, ou numa língua maldita.

 

Claro, Rockdrill existe   e sempre existirá.

 

Que ninguém esqueça, por caridade, o aquecimento central.

E as torneiras cromadas, seria imperdoável.

Toda a gente, meus senhores, vai quando pode à consulta: de dentes,

de fígado, de circulação sanguínea.

É para isso que há especialistas dos mais diversos ramos.

E os telefones, não esquecer os telefones.

Mas sede por vezes sonhadores, como astrónomos,

pois sem piedade Rockdrill vai existindo.

 

Rockdrill, ó céus, existe e existe o vidro fosco

e os netos que tomam banho enquanto esperam quem os vista.

E gargantas que nos repetem coisas inesgotáveis.

E mortes mortes mortes rolantes e aflitivas.

 

Tiram-nos coisas dum lado põem-nos coisas noutro

anos e anos   e dias   de convulsionada ansiedade.

Em todos os países portos e pátios da História.

Por isso Rockdrill é uma presença palpável

nem vegetal nem astro excessivamente terreno.

Por isso Rockdrill nunca desaparecerá

pois conta-nos reconta-nos retalha-nos devora-nos

 

que ainda somos, aqui, o filamento mais excelente.

 

Antígona vive agora entre Sírius e Altaír.

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.