Na sala ligeiramente
silenciosa
frente a mim e a oeste de
toda a luz solar
há dois homens sentados.
Um deles é barbudo
e ambos são infelizes
estúpidos e feios
mas duma infelicidade e
duma feiura de homens
que são barbudos feios
sob tudo o que a manhã pede
de húmido e habitual,
histórico e quotidiano.
São infelizes e vão durar
muitos anos
pois ambos se agarraram
desesperadamente à vida
como se a vida – sem
símbolos – fosse
em tamanho superior ao
volume normal.
São homens que bebem
comem e acham certo
que dormem e acham
perfeitamente certo
que defecam caminham
sorriem bocejam e acham
mais do que certo
que não concebem nada de
equivalente ao voo sinistro
de borboletas verdes
sobre o mar
ou duma faca cravada no
pescoço queimado
dum aborígene, dum
alfaiate qualquer ou dum
habitante desconhecido
duma cidade inominada
Que num domingo sem
maldade colocam entre parêntesis
algum espanto petrificado
em horas, em minutos
até chegar o crepúsculo
com o seu barulho encantador
com os seus pobres rostos
vidrados de dois mil anos de civilização
principalmente nas
infrenes segundas-feiras
e vão olhando um pouco
atónitos o existir nuclear das cerejeiras
das flores sublunares
que é o que lhes resta
fazer, especialmente neste poema.
Coitados, não estiveram
em Hiroxima
em Belsen, em Lisboa
- até isso lhes foi
negado –
são, por estranho que
pareça
habitantes do sétimo
círculo paralelo à Ursa Maior
homens enfim do tempo do
pepsodent e das canções ligeiras
das herdades antigas de
súbito reconfiguradas
e da saudade, da mansa e
dolorosa agonia dos pintores de Altamira
em postais pro bono
hoje viajantes perplexos
junto ao túmulo de alumínio dos seus descendentes
enquanto lá fora os cães
citadinos ladram debaixo da brisa que a tarde dá
e angustiadamente rolam
pela relva, eles lá sabem
com os olhos postos num
esquisito embrulho que ali ficou por esquecimento
- os seus olhos pacíficos
onde parecem esvoaçar fantasmas.
Rockdrill Rockdrill
existe
digamos mesmo em coro
e paz aos homens de boa vontade.
Minha pequena Antígona,
tu que com esse nome te autoliquidaste
e hoje mais não fazes que
buscar sem repouso a caixa azul
levemente amachucada pelo
tombar das vigas
tens, pois quem dúvida,
um gafanhoto no teu sapato amarelo
douradamente grego ou
mesmo dior 37
prático, funcional mas
elegante
com um bem esgalhado
revólver de um designer de fama
apenas para assustar quem
nos aborde na rua
com o pretexto de nos
mostrar uma escultura moderna
um relógio de marca
muitíssimo barato
um in-fólio iluminado por
pontas-secas de Durer
e certamente uma ilusão
abandonada
toda feita de palavras
supostamente simples
nessas localidades
inquietantes a que a tradição deu singeleza
e em cujos recantos caiem
de tempos a tempos flores meio calcinadas
apontando sabe-se lá para
continentes múltiplos.
Tu minha redôce Antígona,
cinderela de papel normalizado
- e que bonito é ler,
saber pintar, contar
histórias de estarrecer –
nos teus dias de volúpia
como segredos contados
pelas aias meio-surdas
desaparecidas, de balbuciados bons-dias
de guerreiros descritos
entre o não e o talvez
procuras muita coisa
essencial
quando o teu rosto ameno
e comum irrompe em reflexo entre os drops das montras quando encostada
ao vidro a tua infância sonhava
tentando ver o destino
que adivinhavas sem escolha.
Sim Rockdrill existe
quer o queiramos ou não
Que pensariam de nós os
celtas, os aztecas
e os tais que devolviam
os presentes que lhes eram atirados
enquanto um que outro
gemido se ia ouvindo
à luz dum candeeiro de
petróleo, provavelmente
se meditassem nos
enforcamentos que o inverno nos concede
aqui, ali, acolá
quando à nossa volta
crescem as velhas plantas tuberosas
de que já o Hispano
falava com os lábios a tremer
se pensassem que nas
mesas podem de repente surgir
uns quantos insectos
mortos, vindos de parte ignota
alguns lápis roídos
ou uma pedra pequena
desenhada ou esculpida
com um amor temeroso?
Todos irão ficar, não
duvidemos, sem um ou dois
lugares onde estiveram
tenuemente.
Não brincar, ou brincar,
é o primeiro mandamento
já que os deuses nos
facultam certos momentos de repouso.
E é então que se
pergunta: que faz este copo sobre a toalha? Como
te chamas tu? E se
pergunta ainda: somos candidatos ao recomeço?
Onde pousar
este cinzel tão velho,
este bisturi rombo
com que matei o princípio
que a todos foi comum?
Mas mais provável é que a
resposta não venha
e que no átrio deserto e
mesmo assim familiar
surjam de repente outros
vultos barbados, de bocas
muito abertas, de
silhuetas limpas mas aterrorizados
como o senhor amável que
todas as manhãs delicadamente
nos saúda à esquina do
prédio
em aramaico, em latim, ou
numa língua maldita.
Claro, Rockdrill existe
e sempre existirá.
Que ninguém esqueça, por
caridade, o aquecimento central.
E as torneiras cromadas,
seria imperdoável.
Toda a gente, meus
senhores, vai quando pode à consulta: de dentes,
de fígado, de circulação
sanguínea.
É para isso que há
especialistas dos mais diversos ramos.
E os telefones, não
esquecer os telefones.
Mas sede por vezes
sonhadores, como astrónomos,
pois sem piedade
Rockdrill vai existindo.
Rockdrill, ó céus, existe
e existe o vidro fosco
e os netos que tomam
banho enquanto esperam quem os vista.
E gargantas que nos
repetem coisas inesgotáveis.
E mortes mortes mortes
rolantes e aflitivas.
Tiram-nos coisas dum lado
põem-nos coisas noutro
anos e anos e dias de
convulsionada ansiedade.
Em todos os países portos
e pátios da História.
Por isso Rockdrill é uma
presença palpável
nem vegetal nem astro
excessivamente terreno.
Por isso Rockdrill nunca
desaparecerá
pois conta-nos
reconta-nos retalha-nos devora-nos
que ainda somos, aqui, o
filamento mais excelente.
Antígona vive agora entre
Sírius e Altaír. |