NICOLAU SAIÃO

A Propósito de Gherasim Luca
(Bucareste, 1913 – Paris, 1994)

O nome de Gerashim Luca, um dos maiores poetas romenos, num olhar esvoaçante sobre as minhas recordações evoca a meus sentidos os mitos cruéis e sedutores da animalidade compósita, sensual, fascinadora e simultaneamente inocente dum mundo colocado sob a égide duma paisagem grega onde o Minotauro vivesse nas pradarias e não no labirinto, rodeado de flores campestres e de beldades dançando contra o horizonte e o azul esverdeado do mar. Como alguém disse na "Mousson de l'été":

  “La tradition poétique francophone ne possède pas, comme d'autres, la mémoire d'une foule de grands diseurs. Il faut se référer à Rictus, à Artaud ou, plus récemment, à Gherasim Luca pour trouver un équivalent de ce mode de récitation, évoquant également les vocifération mantriques d'Allen Ginsberg.”.

Modo de recitação, acentuo. E ainda: as vociferações mântricas de Allen Ginsberg. Creio que é nestes dois pontos, assim epigrafados, que reside alguma confusão, ou o equívoco,  em o quererem aproximar da corrente concreta, se não mesmo letrista. Porque Gherasim Luca, surrealista absoluto posto que viajando nas diversas direcções que os pontos cardeais da existência criadora contêm,  tem é a ver com a recitação que numa ampla linha recta, mesmo que quebrada pela raiz dos tempos, vem da Grécia e dos coros dos seus mestres teatrólogos.

Para exemplificar, mas também para ficarmos com algo de palpável e de imarcescível, deixo-vos no original este seu poema que o credita, tal como credita ainda a ideia provada de que o autor de "O vampiro passivo" foi um dos que sempre navegou na barca da imaginação e do lirismo deste lado de cada vida:

POÈME

Je te narine je te chevelure
je te hanche
tu me hantes
je te poitrine
je buste ta poitrine puis te visage
je te corsage
tu m'odeur tu me vertige
tu glisses
je te cuisse je te caresse
je te frissonne
tu m'enjambes
tu m'insupportable
je t'amazone
je te gorge je te ventre
je te jupe
je te jarretelle je te bas je te Bach
oui je te Bach pour clavecin sein et flûte

Je te tremblante
tu me séduis tu m'absorbes
je te dispute
je te risque je te grimpe
tu me frôles
je te nage
mais toi tu me tourbillonnes
tu m'effleures tu me cernes
tu me chair cuir peau et morsure
tu me slip noir
tu me ballerines rouges
et quand tu ne haut-talon pas mes sens
tu les crocrodiles
tu les phoques tu les fascines
tu me couvres
je te découvre je t'invente
parfois tu te livres

tu me lèvres humides
je te délivre et je te délire
tu me délires et me passionnes
je t'épaule je te vertèbre je te cheville
je te cils et pupilles
et si je n'omoplate pas avant mes poumons
même à distance tu m'aisselles
je te respire
jour et nuit je te respire
je te bouche
je te palais je te dents je te griffe
je te vulve je te paupières
je te haleine
je t'aine
je te sang je te cou
je te mollets je te certitude
je te joues et te veines

je te mains
je te sueur
je te langue
je te nuque
je te navigue
je t'ombre je te corps et te fantôme
je te rétine dans mon souffle
tu t'iris

je t'écris
tu me penses


in “Prendre corps - La fin du Monde” (Gherasim Luca)

***

Nasceu em Bucareste, filho de um alfaiate judeu e de uma engomadeira. Falava yiddish, romeno, alemão e francês. Em 1938 deslocou-se frequentemente a Paris, ligando-se aos círculos surrealistas. A segunda guerra mundial e o antisemitismo oficial na Roménia obrigaram-no a exilar-se. Durante o curto período pré-comunista da independência romena, fundou um grupo de  artistas surrealistas em conjunto com Gellu Naum, Paul Păun, Virgil Teodorescu e Dolfi Trost. 

Surgiram então as suas primeiras publicações, que incluíam poemas escritos em francês. Foi o inventor da chamada cubomania e, com Dolfi Trost, o autor do manifesto "Dialética da Dialética", dado a lume em 1945. Perseguido na Roménia e preso quando tentava fugir do país, o apelidado “judeu estranho” conseguiu finalmente escapar-se desse país em 1952, alcançando Paris depois de passar por Israel. 

Na capital francesa trabalhou com, entre outros, Jean Arp, Paul Celan, François Di Dio e Max Ernst efectuando numerosas colagens, desenhos, objectos e textos para instalações. A partir de 1967, as suas célebres sessões de leitura tiveram lugar em locais como Estocolmo, Oslo, Genebra, Nova Yorque e São Francisco. Em 1988 a sua prestação televisiva no programa de Raoul Sanglas, “Como safarmo-nos sem sair do lugar”, tornou-o famoso para numerosos leitores.

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.