1. ANÍBAL E AS MOSCAS
FILÓSOFAS
Estava há sete semanas
naquele quarto de hospital e principiava a chatear-se.
Todos o tratavam muito
bem - alguém lhe emprestara mesmo uma telefonia – mas o certo é que
começava a sentir-se ligeiramente aborrecido.
Não era que a
enfermeira não lhe trouxesse a comida quentinha a horas certas, nem que
o dr.Varela lhe faltasse com a sabedoria médica. Não. Toda a gente era
realmente muito simpática, mas ele principiava a ficar um bocado… frio.
A partir da terceira
semana começara a segredar para si próprio ideias que apanhava ao
calhar. E, caso estranho, pensava, pensava muito, pensava como nunca
havia pensado: pensamentos gordos, mesmo suculentos, que lhe deixavam na
boca um sabor esquisito e galopante, como se fossem comboios molengões
andando sobre carris podres. Não estava a gostar nada daquilo.
Além do mais, de noite
o quarto enchia-se de vagas correrias, vagas risadas…
Virou-se para o outro
lado.
O pára-choques
apanhara-o exactamente em cheio no sítio onde as costelas dizem adeus ao
estômago. Acordara depois, de súbito, numa cama descompassada com
formigas e abelhas a passearem para baixo e para cima a toda a altura do
esqueleto, suaves, venenosas. A cabeça muito bem entrapada repousava
virtuosamente sobre uma almofada branca. Em volta, tanto quanto se
lembrava, uns fantasmas abusadores deambulavam num leva-traz peculiar
zurzindo o ar ambiente com uma lengalenga que nem por ser em voz sumida
era menos estarrecedora.
Depois foi-se
habituando.
O dr. Varela chegava
ao crepúsculo, ou ao nascer do sol, com os óculos muito calmos e mudos a
apontar na sua direcção: pegava-lhe no pulso, rosnava sabiamente,
abanava a cabeça e, antes de sair, escrevia qualquer coisa num papel.
Ele por momentos pensava que o dr. Varela tinha um pacto secreto com o
seu aborrecimento, mas está-se a ver que era só impressão.
A enfermeira, como é
natural, vinha mais vezes. Tinha um nome impronunciável, olhava aos
ziguezagues e era magra e penugenta. Cheirava a relógios bem
lubrificados e nunca se ria. Também não devia ter de quê, pensava ele,
mas tudo aquilo lhe fazia nervos.
A enfermeira era
ferozmente cumpridora. Uma boa profissional: puxava-lhe a roupa para o
pescoço se o topava destapado, metia-lhe pastilhas entre os beiços, a
horas correctas ajudava-o a assoar-se e a fazer mais coisas. Enquanto
ele teve os braços em gesso, deu-lhe a papa com um clarão de bondade nos
sobrolhos perfeitamente assustador.
O termómetro que
sempre transportava no bolsinho da bata constituía uma realidade
imprópria.
Saía depois de o olhar
com satânico interesse enfermeiral. Antes de fechar a porta a sua mão
traçava no ar um círculo cinzento e agressivo
A esposa visitava-o
três vezes por semana, mas isso já não o arreliava por aí além. Ficara
imunizado por dezassete anos de matrimónio. Já estava mais que
familiarizado com o seu narizinho de coruja egoísta e com a sua voz que
a passagem do tempo tornara rascalhante. Limitava-se a ficar calado, com
os olhos bem fixos no meio do tecto. Às quatro da tarde a esposa
abandonava a partida e ia-se com o seu passo de flamingo de noventa e
oito quilos. Ele fingia que não era nada com ele.
Foi no dia em que lhe
tiraram as últimas ligaduras que ele viu as moscas.
Eram duas, esvoaçando
solenemente na meia sombra com um ar tranquilo e respeitável. Tinham o
aspecto de moscas de sociedade, talvez já grisalhas dos anos e ele por
uns segundos raciocinou que até nem se espantaria se lhes visse bengala
e gravata.
Durante vários dias as
moscas não lhe largaram o quarto.
Eram moscas filósofas.
As suas conversas, num tom muito fino e discreto, eram do mais alto
interesse e centravam-se sobre os grandes temas do universo: o Homem, o
Tempo, a Infância, todas as coisas – enfim – que horrorizam ou causam
prazer, o Mundo, o Amor e a Morte. Um nunca mais acabar de problemas
maravilhosos e inextrincáveis.
A ele o que mais o
danava era o seu arzinho superior, como fingindo que nem por ele davam:
como se ele fosse um retrato decrépito que para ali estivesse. E, no
entanto, elas bem sabiam que ele não perdia pitada das conversas, com os
punhos o mais possível cerrados.
Começou a detestá-las.
Precisamente no dia em que lhe tiraram o gesso da perna direita.
No entanto, por
orgulho, nunca tentou imiscuir-se nas suas conversas. Ainda não descera
tão baixo.
Na tarde seguinte,
tarde de visita conjugal, as moscas falaram do Ser e das metafísicas,
Falaram também das estrelas e seus prestígios, dos barcos à deriva nos
mares antigos, dos astrónomos e dos reis dos países afastados. Ele
sofria tanto que foi com renovado alívio que viu a cara-metade abandonar
a cena da sua tortura.
Com pasmo e raiva
estendeu o braço e abriu a telefonia. Adormeceu ao som dum fadinho
picado em surdina.
E sonhou sonhos
esquisitos de defuntos e bosques imensos, de catedrais e aranhas.
Acordou ao crepúsculo.
Em cima da mesa estava uma bandeja com vitualhas. Nada se ouvia. Nem…o
voar de uma mosca.
As moscas tinham
partido. Durante o seu sono pela tarde fora, tinham decerto voado
através da janela entreaberta buscando diverso poiso, concerteza sempre
debatendo entre si as coisas belas e incríveis. E ele sentiu de súbito
vontade de partir tudo, pois já lhes havia jurado p’la pele: quando
estivesse de posse de todos os seus meios físicos, ele lhes diria.
Haveria de as ensinar com decisão: ficariam, até, sem vontade de
tasquinhar o mais apetitoso bocadinho de excremento!
Mas o certo era que
haviam partido. Inexoravelmente. E nada, pensou, poderia fazer!
O crepúsculo,
cinematográfico e devorador, entrava aos gargarejos para dentro do
quarto. Do outro lado da porta uns passos conhecidos crepitaram com
energia.
O dr. Varela entrou,
com os óculos muito serenos.
Com uma branda emoção
a palpitar progressivamente na garganta ele deu por si a notar, cheio de
deliciosas comichões, que a cara do dr.Varela era mesmo, mesmo parecida
com a da mosca mais faladora.
2. HISTÓRIA NATURAL
Quando a tia pobre e
amada lhe morreu espapaçada, como um figo podre, debaixo dum camião de
transportes, Hipólito disse com as lágrimas a escorrer pelas bochechas:
“É chato e dramático. É triste! Mas, se pensarmos bem… é natural. Sim, é
natural!”.
Olhei-o sem muito
espanto. É que eu já conhecia, desde os bancos da escola, o espírito
eminentemente positivista do meu amigo, a sua visão racional. Hipólito
era um verdadeiro realista e eu peço licença para dizer que filosofava
como poucos. Como muito poucos.
A firma de que era
sócio, num dia enevoado de Maio faliu com todos os matadores. Tal
acontecimento causou nos meios apropriados um pânico considerável.
Hipólito, contudo, limitou-se a franzir o cenho ao de leve: “É trágico.
É mesmo perturbador! – disse – Mas, se pensarmos bem…é natural. Sim, é
natural!”.
Estávamos, nessa
altura, no seu gabinete de administrador. Hipólito, pensador de fino
quilate, cérebro privilegiado, dava-me a honra de muito me considerar,
embora eu fosse um simples empregadote sem mais valia. Foi então,
recordo-me, que ouvimos um súbito alarido. Eu precipitei-me para o
corredor. Hipólito seguiu-me calmamente. Fora o comendador Branco
Madeira, presidente da Assembleia Geral da empresa. Caíra pela janela.
Se calhar de propósito. Do décimo segundo andar.
Olhei lá para o solo,
com os olhos arregalados. O comendador jazia como jazem os que se piram
pelo décimo segundo piso: parecia uma mosca esfrangalhada e nojenta. Já
o rodeavam muitas pessoas.
Por detrás de mim,
Hipólito resmungou mansamente: “Que coisa! É extremamente constrangedor.
Mas…é natural. Penso que é natural!”. Limpou uma lágrima furtiva,
rápida, com a ponta do dedo mindinho. Ofereceu-me um cigarro, que
aceitei ainda com as mãos a tremer.
Passados quatro dias,
o seu filho mais novo ao praticar alpinismo numa montanha dos arredores
caiu para dentro dum rio que lhe ficava na base e engoliu cerca de
oitenta litros de água. Calculei eu. Finou-se, evidentemente. Senti
muito a morte do moço.
Hipólito, de negro
vestido, atrás do caixão inclinou-se levemente e rosnou para a minha
orelha. Baixinho, mas eu ouvi bem o que sensatamente me disse. Inclinei
a cabeça e continuámos a participar sem mais alardes naquele acto
tristíssimo e trágico mas, como o meu amigo referira, perfeitamente
compreensível. Hipólito era assim. Lógico, um matemático ou um
astrónomo em potencia. Eu apreciava-o muito.
Em Agosto fomos
passar as férias, juntos, para uma praia elegante. A mulher de Hipólito
e o filho que lhe restava foram juntar-se a nós três dias mais tarde. Ao
quarto dia, depois de ter levado a banca do casino à glória, a excelsa
senhora defuncionou-se sem o querer, abatida a tiro por um croupier de
maus bofes e nervoso.
Quando lhe levaram a
notícia, Hipólito ergueu-se de repelão da cadeira de verga onde
repousava. Tremia ligeiramente. Respirava um pouco apressadamente.
Pouco a pouco foi-se
acalmando. Um véu de tristeza – eu acho que era um véu – nublava-lhe
viuvamente o olhar cinzento. “Ora que maçada! É um problema chatíssimo!
No entanto, no entanto…pensando bem, foi natural! – disse com
inteligência.
Olhei-o com admiração.
O espírito e a calma filosófica de Hipólito cada vez me atraíam mais
inapelavelmente.
Ao voltarmos para
casa, num carro funerário, o filho de Hipólito teve um percalço: chorava
desabaladamente, contorcia-se, gemia duma forma que metia pena. Ao
estorcer-se num gesto mais largo, sem que o pudéssemos deter saiu pela
porta de vidraça descida (fazia cá um calor!). Dei um grito! Que querem,
não me contive. O carro funerário parou, toda a gente desceu.
Hipólito, por uns
momentos breves, contemplou longamente o que restava do filho como se
acreditasse poucochinho. Eu mordia os dedos e as unhas.
Um largo suspiro se
escapou do peito largo, profundo, de Hipólito enquanto ele com bondade
me ajudava a afastar dos despojos. “Já é azar! É um azar tremendo! Mas,
vendo bem as coisas, sopesando o caso…não deixou de ser natural!”.
Olhei-o mais uma vez
com admiração fraterna.
Passou-se uma semana.
Durante esse tempo não vi o meu velho companheiro de infância. Aliás,
desempregado, passei o tempo a ler. Filosofia. De vez em quando tomava
um cálice de conhaque. A bebida, segundo ouvi dizer, dos fortes e dos
sabedores.
Ao oitavo dia,
biblicamente, vi Hipólito. Tinha ido visitar-me. Demos um longo,
cordialíssimo aperto de mão. Hipólito vinha anunciar-me que eu fora
colocado por sua intercessão num emprego de futuro. “Com calma, Jagodes,
tudo se consegue. Tudo se compõe naturalmente!”. Acenei que sim,
emocionado. Entretanto, dirigimo-nos ao elevador.
Hipólito foi o
primeiro a entrar. Azar dele. O primeiro e o último, aliás. Eu não
entrei, pude aperceber-me que o elevador não estava lá! Só o buraco,
negro e misterioso, esperava com maldade. Hipólito despenhou-se,
soltando um grito em estilo “terror inglês”. Um grito meio grasnado.
Com o coração a bater
um pouco desci as escadas, devagarinho e com cautela. Muitas escadas.
Abri a porta do elevador, na cave e contemplei o Hipólito.
Hipólito gemia
suavemente. Quando deu por mim, quando os sentidos algo abalados lho
permitiram, começou a gemer mais alto. Quase a gritar!
“Socorro, Jagodes! Vai
chamar um médico depressa…senão morro. Sinto-me já a morrer. Chama-me um
médico, um sacerdote… Jagodes!”.
Perdera a calma. Até
suava. Tinha um bocado de espuma no queixo.
Dei uma gargalhadinha.
Desatei mesmo a rir em pequenos solavancos. Filosoficamente.
Que querem? Estava a
achar tudo naturalíssimo. |