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NICOLAU SAIÃO |
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INCURSÃO PELO IMAGINÁRIO
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1 |
Há um imaginário rural, assim como
há um imaginário citadino.
Esta diferenciação, que poderia
parecer estranha a observadores menos precavidos, articula-se de forma
própria.
Com efeito, até há bem pouco tempo –
e, em certos lugares, a situação dada é ainda manifesta – o meio rural
estava bastante separado do acesso aos mass-media mais
qualificados, que são os que com maior relevo difundem, controlam,
sustentam e forjam um certo imaginário padronizado.
É pacífico que o imaginário citadino
é extremamente condicionado pela televisão, a rádio, os jornais e os
espaços interactivos a que os meios rurais tinham e têm ainda um acesso
relativamente precário ou flutuante.
Posto isto, debrucemo-nos agora
sobre o imaginário rural.
Com uma carga muitíssimo específica
e bem caracterizada, ele está profundamente ligado ao ritmo das
Estações, ao perfume do solo, às reuniões de famílias, de vizinhos, de
maiores ou menores fragmentos da comunidade para o qual frequentemente
os ritmos citadinos existem mais como figurações alheias, como
verdadeiras paisagens exteriores. Pode dizer-se, assim, que o
imaginário tradicional se radica e está entranhado, na sua pureza,
principalmente nas regiões campestres. E são os núcleos que se mudaram
para as povoações maiores que, em geral, o levam consigo e o vão
preservando como se uma vivaz nostalgia os acompanhasse. |
2 |
No seu livro “A
arte e a literatura fantásticas”,
texto canónico a muitos títulos, diz-nos acertadamente Louis Vax a dada
altura: “O arrepio que as narrativas fantásticas, a literatura de
imaginação científica, os quadros surrealistas provocam no leitor
moderno, já o povo o conhecia graças às lendas que se transmitiam de
geração em geração. As histórias de almas do outro mundo, de lobisomens,
de vampiros e de maus olhados, causaram outrora a angústia e as delícias
dos aldeões reunidos à volta do lume”.
Pelo que me diz parte, posso
confirmá-lo.
Na minha infância vivi algum tempo
no campo, campo esse por onde continuo a jornadear e que, sob certos
aspectos substanciais, muito pouco se modificou (não devemos
esquecer-nos que a região a que aludo, a da Serra de São Mamede, é um
dos lugares mais isolados do País, sendo de igual modo um dos mais
atraentes para quem goste da ruralidade). E recordo com grande prazer,
forte emoção e bastante saudade aquelas vezes em que, depois do jantar e
antes da deita (que naqueles rincões alentejanos das Covas de
Belém e do Chancrão costumava suceder cedo) um grupo de vizinhos
chegavam para o serão.
Para além das conversas sobre os
respectivos animais das quintas, o sucesso do que se semeava e colhia
(as novidades, como se lhes chamava) a certa altura era
proverbial alguém puxar a parlenga noutra direcção: e eram contadas
histórias, provindas da imaginação tradicional ou do quotidiano
elaborado com certos requintes de invenção ou garantidamente reais.
Estorietas de “medos” e de aventuras perturbantes, vivências
transfiguradas e espantações onde não deixava de assomar o espectro da
malina que punha tremores e suspensões na alma de pequenos e
grandes...
Aprendi na altura canções ligadas às
Estações e aos seus eventos próprios e típicos. Se
trovejava, sabia-se bem como esconjurar
o mau-jeito: “Santa Bárbara bendita/ que no céu está escrita/ com
papel e água benta/ livrai-nos desta tormenta./ Levai-a lá p'ra bem
longe/ levai-a lá p'rá moirama/ onde não haja pão nem vinho/ nem flor de
rosmaninho/ nem se oiça cantar o galo/ nem repenicar o sino”.
Como se verifica pelo simples
enunciado, a tradição pagã, ou mesmo mágica, cruza-se com o assimilado
da missionação cristã: a flor do rosmaninho e o galo são a
caução arcaica do sino, do vinho e do pão.
O próprio facto de o recitante se
dirigir a Santa Bárbara – há outra versão, com ligeiras variantes,
dirigida a São Jerónimo – indica uma forte implicação que tem a ver com
a feição mágica. Com efeito, a santa aparece nela mais como
interlocutora directa do que como intercessora.
Esta pequena incursão à guisa de
parêntesis permite-nos exemplificar, na verdade prática, o seguinte
considerando: o rico imaginário rural, que sempre teve mais a ver com a
poetização que com a sacralização, foi durante os séculos
sempre fortemente pressionado pela presença obcecada da propaganda
eclesial, com o seu cortejo de interdições, de recomendações
imperativas, de histórias de proveito e moralidade geralmente
mais retiradas ou vindas do preconceito do residente e da sua forma
específica de encarar a mensagem de Roma, que da religião (religare)
como factor de interligação entre os mundos de baixo e de cima, do
espírito e da carne salutarmente postos em cena por uma harmonia
cósmica. Não é, assim, de estranhar que em paralelo com a figuração
fideísta muito se contasse com as capacidades das mulheres ou homens
de virtude que, no plano da “possibilidade de manobra”, da
“capacidade operativa” além do quotidiano simples, estavam naquele
espaço ao nível do médico ou do sacerdote qualificados.
É fácil verificar, pela análise das
histórias tradicionais do Ocidente e que na contemporaneidade
encontraram a sua mais ampla divulgação, que existe nelas, subjacente ou
mais expressa, uma forte carga sentimental-sexual inerente ao ser
humano, por vezes transparecendo sob o hábito ou o véu duma escamoteação
cristã (como os templos sob as ermidas...). |
3 |
O maravilhoso é a face feérica do
fantástico. O fantástico, por seu turno, gere as dúvidas dum real
subitamente colocado frente a factos que ultrapassam o entendimento
linear. A sua pátria é o medo que de repente cobra existência saltando
para os interstícios que vão do concebível ao possível. Como estranhar
pois que o imaginário rural fervilhe de animais embruxados, seres
vagueantes por pinheirais e por colinas onde, nos tempos idos, com
frequência se ia colher a mandrágora, o heléboro e a camomila?
Profundamente ligados à terra, é daí que os rurais retiram as suas
melhores horas, ultrapassadas que foram pela modernidade e a
contemporaneidade as dominações espúrias da opressão anciã. As quais se
espelham em contarelos, recitações e cantares. O cancioneiro português
popular tradicional – que nada tem a ver com o pacóvio ou pedante
cançonetismo da massificação, pimba ou nem tanto – é extremamente
valioso e, mesmo ao nível do que as canções ligeiras lhe foram buscar,
muito rico e sugestivo. Há todo um sector que utiliza da melhor forma os
temas rurais e campesinos: cantares sobre a macela, o cuco, os namoros
junto à madressilva que ornava os logradouros, a ida às fontes
vicinais, as desfolhadas e as ceifas, as manhãs de neve dos dias
invernosos ou as longas tardes de calor no pino do Verão – tendo em
alguns casos transbordado para a canção mais culta ou mesmo
superiormente elaborada (trago ao de leve Schubert à colação, com o que
no seu país ao tema diz parte).
Os próprios factos e sucessos do
imaginário citadino, científico ou apenas de relação quotidiana (a ida à
Lua e a existência de casos que tais, mas também a realidade de
comboios, de carros, de arranha-céus, os aprestos das casas e até os
electrodomésticos) são transfigurados até com ironia, ficando então a
pertencer ao imaginário rural enroupados embora com outro tipo de
indumentária...
Se me observarem que esse
cancioneiro rural é muito mais rico em Espanha, França, Inglaterra,
Europa Central ou do Sul, etc. - concordarei de imediato. Isso deve-se a
dois factores principais: a maior qualificação cultural daqueles lugares
e a sua esquiva, mais eficaz que neste pequeno país, ao caciquismo
vivificado pela beatice e o atraso existencial. |
4 |
Exemplifiquemos com uma pequena
recitação que claramente aponta já para uma miscigenação de imaginários
(o que pode aliás ser um firme progresso e um sinal de permanência
salubre) e que me foi dada a conhecer numa região norte de Espanha: “Menina
de olhos risonhos/ aqui lhe deixo uma papoila/ para prender no
casaquinho/Se andar de carroça não a perca/ se andar de carro segure-a
bem/ que o meu amor não a falseia/ E todos os anos renasce/ como a água
dos ribeiros/de manhã ou ao sol-pôr”.
Atente-se que em certas regiões da
Europa Central as moçoilas são instadas a que não tragam flores
vermelhas nos vestidos, pois isso podia acarretar-lhes as miradas
voluptuosas e devoradoras de vampiros e assombrações semelhantes. Também
é conhecido o facto de, nas noites de lua cheia, se dever fazer boas
provisões de flores do alho – que são brancas com afloramentos amarelos
– para manter afastados os fantasmas.
A literatura recolheu muitas destas
tradições, glosando-as mediante contos e novelas universalmente
conhecidas. A poética, por seu turno, uma vez que lida intensamente com
as funduras inconscientes do ser humano, realiza em múltiplas direcções
o mistério e os enigmas do mundo, tanto nas cidades como nos meios
rurais. Aí, dá-se com frequência uma interpenetração dos signos,
utilizando o artista símbolos comuns ao rural e ao citadino.
Deixemos agora, por alguns momentos,
o nosso espírito vaguear um pouco pelos bosques e pelas ruas. Pelos
campos abertos ou pelos bairros de apartamentos e vivendas.
Aqui, encontramos os animais das
quintas ou dos terrenos livres entregues à sua existência peculiar entre
as árvores e os arbustos ou nos cercados dos casais, tendo contudo
sempre, de longe ou de perto, a presença imanente do bicho-homem.
Ali, vemos gente que de dia ou de
noite, a pé ou em transportes próprios ou comuns, segue o seu destino
entre casas ou, até, entre parques normalizados, rodeados pelo estridor
dos automóveis e das outras presenças humanas.
O imaginário é o que resulta de
tudo isso e de tudo o que advém ou provém dos ritmos que esses universos
conformam, materiais ou espirituais. O rural encontra a estranheza e a
aventura nas luzes da cidade, para falarmos simbolicamente,
enquanto o homem citadino se descomprime e recreia excursionando pelo
lugar quotidiano do outro. (Não é por acaso que nos últimos tempos os
operadores, sempre atentos, têm incrementado o turismo rural bem
como o turismo de aventura, ainda que este tenha especificidades
e decorrências que não iremos agora abordar). Se formos um pouco mais
fundo, para além do óbvio, verificaremos que havendo pontos de
contacto existem igualmente, e bem marcados, pontos de ruptura
que podem inclusivamente transformar-se em pontos de transgressão
de determinados limites lúdicos. Constitui, a nosso ver, um índice de
má-consciência da parte de certos operadores públicos não se admitir que
existem efectivas diferenças sensíveis entre os mundos do campo e da
cidade que os obrigam a terem um lebensraum (na acepção de
Friedrich Ratzel e não dos que depois viriam) que lhes determinam
enfoque singularíssimo e que deve encarar-se seriamente.
Giovanni Papini referiu mesmo, num
dos seus textos teóricos/ensaísticos, que “A cidade é uma represália
à natureza selvagem”, entendendo-se como tal a tentativa de
separação que subjaz ao acto de concentrar em vastos aglomerados
milhares senão milhões de seres, quantas vezes absurdamente
desconhecedores do que sejam os reais ritmos do dia e da noite – para
alguns citadinos mera passagem de luz a sombra e de sombra a luz – com
todos os seus prestígios seculares. “E foi então, enquanto descia a
colina com a bicicleta rodando serenamente debaixo do céu de Agosto, que
me apercebi de quanto tinha esquecido as estrelas que o enchiam desde os
meus tempos de rapazinho”, para citarmos um fragmento de um livro do
escritor americano Ron McLarty. |
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Não estamos, é evidente, a propor
uma opção que privilegie o campo em detrimento da cidade, mas a acentuar
a necessidade de se ter a noção clara de que é nos campos que, como o
Anteu da mitologia, podemos colher o que de mais salubre e plásmico vive
em nós, no nosso relacionamento com os tempos e a natureza das coisas
vivas. E, dado que nos mantemos apenas e só no plano da escrita, vejamos
como um Almanaque – que durante anos e anos foi a principal fonte de
leituras do meio rural e ainda tem uma larga difusão – se refere aos
meses. Em relação a Janeiro, que é o mês em que se semeia o agrião
mastruço, a alface de cortar e os rabanetes de Inverno, reza assim: “Indo
para Norte passam os bicos cruzados e os estorninhos. Floresce a maonia
e o heléboro negro. Em Stº António os dias crescem a passo de monge. Dia
de S.Mauro gelado, metade do Inverno está passado”. E em relação a
Agosto, mês correspondendo na esfera astrológica ao tempo dos mistérios
dos assírios e caldeus, quando no céu cintila a Vega inspiradora de
magos e arquitectos, diz-nos assim: “Passam voando em direcção ao Sul
a galinhola, a cegonha, o maçarico real, a poupa, o cartaxo, a narceja e
a becoínha. Floresce o sol radioso. As avelãs estão boas. Quando chove
em Agosto chove mel e mosto. Agosto amadurece os frutos, Setembro
colhe-os”.
Desnecessário é, creio, acentuar
toda a beleza destas linhas simples e tão claras, verdadeiros poemas
involuntários contendo toda a carga inerente à simbiose homem-terra da
tradição, que vive em nós ainda que inconscientemente.
A imaginação, seja no campo ou na
cidade, refuta exemplarmente a rotina e o hábito que podem limitar a
existência em plenitude. A poesia – que, não o percamos de vista –
começou por ser um acto de incursão e de reflexão sobre o sagrado e a
natureza naturante (desde o “Cântico de Gilgamesh” às “Geórgicas”,
desde o códice maia do “Popul Vuh” quíchua ao “Os trabalhos e
os dias” - na verdade transtorna os tempos ao acrescentar-se ao
imaginário, pois mescla fórmulas de existência tanto no campo como na
cidade. Os imaginários são uma resultante do espírito do lugar
ou, como queria Marc de Boislevy, “O nosso ser interior depende não
só da herança física dos nossos ancestros mas também do ar das moradias
que eles habitaram, dos rios que transpuseram e dos caminhos por onde
viajaram quer o quisessem ou não”.
É
a poesia das coisas que nos rodeiam, somada à que se põe em letra de
forma, dispersa nos quotidianos, que constitui a ponte entre os dois
mundos, fazendo a juntura tão cara, por exemplo, aos filósofos per
ignem.
A este propósito, convirá dizer – e
ressaltar com a justa vivacidade – que muito do que nos é apresentado e
proposto como poesia popular e poesia popular rural não é
mais que produto delido e incaracterístico provocado por décadas de
aculturação, de submissão induzida ardilosamente a estuários poluídos
que nada têm a ver com a forte, poderosa, cintilante poesia das gentes
não manipuladas. É frequente ver-se, em poetas pretensamente
populares – muito acatitados por certos autarcas maganões e de
olho-vivo... - inflexões espúrias provindas e incentivadas ou pelos
moralismos de recurso (fideístas e outros de igual coturno) que nada nos
dizem sobre a agilidade, a graça, o perfume da grande tradição cravada
nas pautas campesinas e aldeãs. Nelas, frequentemente, se vê espalhada
não a religação mas a beatice, não o lirismo mas o
casca-grossismo pindérico de arrivistas de mau tom. Digamos, que
não diremos mal, que é uma versejação visitada pelo piscar-de-olho
reducionista de citadinos que episodicamente trocaram a calça de ganga
pela de surrobeca dos caminhos secundários – até que de novo, enjoados
da experiência, reentram na autoestrada. |
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Os provérbios populares, com tantas
ligações ao solo campestre, também nos dizem muito sobre o como
dos imaginários, sendo de notar que certos ditados com clara
origem camponesa passaram posteriormente, com alguma velocidade, para o
outro imaginário: “Ao homem farto até as cerejas amargam”, “Semeia-me
na lama mas faz-me boa cama – diz o trigo”. E a viagem também pode
ser inversa: “Em sua casa governa o carvoeiro como galo em seu
poleiro”, “Redes no mar, moinhos de vento, benesses de padres, pomares
de pessegueiros, bens de rendeiros – chegam a segundos mas não chegam a
terceiros”.
Repare-se que a denominada “sabedoria
das nações” é simultaneamente constatação e proposta, pelo
que o seu percurso tem a ver tanto com as conclusões a que os
séculos chegaram como com aquelas a que alguns pretendiam fazê-los
chegar imperativamente...
Temos pois que há um fundo comum aos
dois imaginários que, a dada altura, se separa. No espaço intestercial
entre um e outro é que actua (quando não nasce mesmo) o imaginal,
assim encarado por Gilbert Durand. Este é, portanto, uma sequência
mais profunda, aritmética para além dos limites, completamente
estruturante e vivificadora. As vivências são diferentes bem como
diferentes são os enfoques, logo os resultantes que deles partem. E se é
verdade que em boa medida vivemos numa aldeia global, no fundo ainda
persistem no Homem os ruídos nocturnos dos grandes espaços sob a Lua
silenciosa. A assumpção da cidade não pode nem deve ser a recusa da
Natureza sob o pretexto de que é nas cidades que reside a mais alta
civilização. A proceder-se assim haverá cortes bruscos no imaginário,
separado de si-mesmo por via dum recalcamento societário que tenta
recusar a multiplicação dos signos legítimos a que só os grandes ritmos
da Terra têm acesso. É desta autêntica supressão imaginal que
provêm as disfunções, como sejam por exemplo os selvagens ritos de
passagem que consistem ora no massacre sobre golfinhos, havida
ciclicamente nas Ilhas Faroe da civilizada Dinamarca, ora de
jericos da orla desértica efectuada por povos islâmicos barbarizados.
Embora na hora actual as gentes do
campo sejam, como maioritariamente as das cidades, atingidas pela
protérvia primarizante dos mídias, a proximidade da terra e do ritmo bem
marcado das Estações permitem-lhes raciocinar o mundo duma forma mais
plástica, mais povoada de elementos reconhecíveis como estrelas e sóis.
O que se lamenta, portanto, é que a
cidade – tão gratificante a vários títulos - encarada como concentração
abstrusa de seres e não como um agregado de humanizados, de pessoas
unidas para um fim comum de maior capacidade intelectiva, criativa e
imaginativa, integre e propague tão mal um imaginário crivado de
sedimentos, fracturas, frustrações e, nos casos limites, criminosas
infelicidades. Há um imaginário citadino de forte poder criativo (mas
atente-se no que se passa em certas áreas de Madrid, de Paris, Sevilha
ou Bruxelas, para citarmos apenas estas que conhecemos e que muito
estimamos; não falando noutras como S. Paulo, Calcutá ou Teerão - nestas
duas últimas, para tal concorrem coordenadas provindas do fanatismo
extremo e de reclusão existencial e governativa).
Claro que em tudo isto têm parte
fundamental os desvigamentos sociais oriundos da modernidade mal
articulada por uma economia egoísta e cínica ou pelo império das
religiões (mal) reveladas
Como exemplo mínimo, na área do
desporto-espectáculo (haverá algum elemento mais citadino do que o
futebol?) cada vez mais se acumulam - depois de despertados por um
ambiente de inércia propositada do eticamente desqualificado sistema
judicial - os tiques violentos expressos, que têm a ver com um ambiente
cuidadosamente construído por operadores de tendência ideológica
intrinsecamente totalitária, os quais repescam dados dum passado
sinistro (como os grupos de ginástica e desporto do regime
pré-nazista) para os aplicarem de maneira actual e contundente (as
célebres pandilhas de hooligans ou das claques clubistas
adeptas da brutalidade codificada). |
7 |
Grosso modo, mas de forma adequada,
poderíamos definir os imaginários como activos e reactivos.
O imaginário rural é mais activo que reactivo, pois tem a ver
principalmente com a maior proximidade da natureza da qual tudo parte
basicamente. O imaginário citadino será reactivo na medida em que é,
em grande parte, produzido pela opinião pública e as relações
intrincadamente sociais.
É isto que produz frequentemente a
ideia, aliás errónea, de que as gentes do campo seriam incultas, uma vez
que o imaginário corrente ou dominante, nos locais expressos das
instituições, é genericamente de origem citadina. (Estamos a lembrar-nos
de uma comédia australiana, muito famosa há uns anos, protagonizada por
um bushman branco que, transplantado por uns tempos para a
cidade, choca a sua sabedoria “primeva” mas eficaz com a sofisticada
parolice dos metropolitanos).
O imaginário rural depende de outros
factores, o que não o torna mais nem menos valioso que o outro, a nível
comparativo, sendo a inversa igualmente verdadeira. É curioso e muito
instrutivo, salientemo-lo, verificar que os pintores impressionistas,
vincadamente citadinos e com os quais nasce a modernidade nas artes
plásticas e, mesmo, a tradição da pintura como tal, como
Jean-Dominique Rey assinalaria, conseguiram mesclar cidade e campo ao
procurarem uma mais adequada solução para o problema posto pela evolução
da pintura: lembremo-nos de Renoir com as suas telas fixando os bailes
citadinos populares e, paralelamente, aquelas em que nos dava trechos de
caminhos boscosos subindo entre ervas altas ou as florestas e parques
vicinais nos limites de Paris. Ou de Van Gogh e os seus cafés e ruas de
Arles ou Sain-Rémy, as herdades jucundas de Crau, as ceifas em
Auvers-sur-Oise. Ou de Cézanne com a sua montanha de Sainte Victoire a
par do casario de Aix-en-Provence.
Um dado importante e significativo,
que aqui deixamos ao leitor: as histórias fantásticas são em
geral situadas no campo ou nos solares da periferia. Por seu turno, são
raras as histórias policiais ou de terror ambientadas no
campo. Evidentemente que há algumas excepções, que canonicamente
confirmam a regra. Contudo, podemos afirmar sem exagero que os
monstros sociais (serial-killers, endemoninhados e criminosos)
pertencem ao imaginário e ao universo das cidades, ao passo que os
monstros fantásticos pertencem ao campo ou têm nele a sua origem (Drácula,
Frankenstein, Werewolf, os Vrucalacks).
Serve dizer: o mundo rural excursiona
primeiro pelo feérico e só depois pelo fantástico e o inquietante; o
citadino pelo inquietante, o fantástico e finalmente pelo feérico (Walt
Disney, citadino perfeito com os seus encantadores animais
antropormofizados, até tem um enorme e significativo parque temático na
cidade mais cidade conceptual que há – Paris). |
8 |
Para finalizar convirá assinalar,
ou recordar, que ultimamente se tem perfilado na grei uma certa
movimentação de “regresso à natureza”. Evidentemente que é a nostalgia
que fala e não procurarei agora saber se tal é bom ou mau ou se
corresponde a sentimentos verdadeiros ou a simples moda. A tendência,
corroborada por propostas de especialistas, é para os agregados humanos
se tornarem mais fluidos, mais soltos e agilizados. Há muitos pensadores
e publicistas, desde os tempos de Georges Simmel até ao mais chegado
George Pérec, que contemplaram o facto de que se caminha para uma
recuperação da existência campestre, através da análise exaustiva da
vida na cidade.
O que arrasta a construção de outras
inflexões na estruturação do imaginário.
No fundo, dentro dos de maior
qualidade, ou exigência se se quiser, agita-se uma clara possibilidade
de interpenetração dos dois imaginários, o que corresponde a uma
interpenetração das duas vivências, cada um possibilitando novas
possibilidades, fornecendo novas virtualidades que devem encarar-se com
perspicácia. Dizia Fernando Batalha, nos tempos em que apoiou o célebre
humorista Coluche que até efectivou uma sensacional candidatura à
presidência da República francesa, que “vivo no campo como se vivesse
na cidade e vivo na cidade como se estivesse no campo”.
Em todo o caso, ambos podem fornecer
uma certa herança que seria estulto desperdiçar. Na forma de articular
esses dados é que o caso fia mais fino, mas há ainda um vasto campo de
afirmação que, esperamo-lo e desejamo-lo firmemente, não tornará
invisível o que de melhor e mais salubre os dois imaginários possuem.
Diferentes, com pontos de contacto
que não anulam essa mesma sensível diferença, é preciso que se deixem
vivificar pelo livre sinal da mão daqueles em quem a imaginação é uma
chama que continua a tremular, ainda que com altos e baixos, no escuro
da noite - no meio duma floresta ou entre casas que poderão até ser de
renda económica... |
Setembro de 2009
ns |
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Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália,
Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter
exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris,
Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi,
Sevilha, etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio
Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor
ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro
(1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O
desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a
sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e
plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a
Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique
(2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de
Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou,
o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana
“Bichos” (2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na
Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado em
espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”,
Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”,
“Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”,
“Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de
Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”,
“Laboratório de poéticas”(Brasil)...
Prefaciou os livros
“Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas”
de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários”
de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”,
suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O
Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o
Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art
“O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na
Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de
poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no
álbum “Canciones lusitanas”.
Até se aposentar
em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos
José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município
da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e,
em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de
actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de
Mérito Municipal. |
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