NICOLAU SAIÃO

Páginas do meu diário

No meu canhenho – um Moleskine canónico que um dos meus filhos me ofereceu – vou juntando ao calhar dos dias reflexões, pequenos poemas, notulazinhas de viagens, enfim: o trivial raciocínio escrito de um convivente que, não tendo angústias de maior, tem contudo dissabores e alegrias, sucessos e congeminações próprios de quem vai existindo num mundo que ainda se não tornou supranumerário.

Correndo o risco de vos estorvar, aqui dou a lume algumas entradas desse discurso talvez dispiciendo, eventualmente dispensável, concerteza dum foro comunicacional e mesmo solidário que naturalmente me apraz.

Mas não se chama/pode chamar a isso, precisamente, a literatura...?

Depois de um passeio de automóvel pelas imediações do montado de Alpalhão, detenho-me num aprazível recanto perto da pequena vila da Alagoa. É um dia aberto de sol, as colinas para os lados dos Fortios têm uma cor violeta própria desta época do ano. Em volta, o silêncio, um desses grandes silêncios de certos lugares do nordeste alentejano, paira sobre mim.

Pego num livro de Rilke e dou-me a reler, com ripanso, certas passagens deste seu “Os cadernos de Malte Laurids Brigge: “Aprendo a ver. Não sei porquê, tudo penetra mais fundo em mim e não pára no lugar onde até agora acabava sempre. Tenho um interior de que não sabia. Tudo lá vai dar agora. Não sei o que ali acontece.”. Palavras tão sugestivas, tão adequadas, tão percucientes, que são quase dolorosas, creio, se lidas por gente que ainda sente viver nela um pouco de sagrado.

E mais adiante, já a contas com um poema de Czeslaw Milosz: “Aos vacilantes, fracos e inseguros foi dada uma tarefa:/ erguerem-se dois centímetros acima da sua própria cabeça/ e dizerem a quem desespera:/ “eu também chorava assim a minha sina”.

Depois de se lerem coisas assim como é que se pode levar a sério, se acaso ela nos caísse sob o olhar, a escrita perfunctória e pedante de um X... eivado de veneras e de pesporrente auto-suficiência, própria de um luso evanescente que de súbito se viu colocado entre os imortais por fecundo amor e esforçado trabalho da nova diplomacia? E como é que se podem continuar a ouvir, sem um esgar de vómito, os relatos das aventuras quotidianas de um tratante habilidoso ou de um habilidoso homem público fornecidos pelos telejornais?

Chego a esta terra templária (Jerez de los Caballeros) por volta das duas da tarde de um dia esplendido. O sol, por surpresa, é como um malmequer por cima da torre singular que logo me assinalaram. E me fascina de imediato mas no entanto me deixa olhar outras mais. Deambulamos um pouco até entrarmos, para uma leve colação, numa antiga taverna onde se enfileiram tonéis enormes.

Ao deixá-la olho as ruas  - e tanto me parece poder estar em fragmentos de Estremoz como em trechos de Marvão, em Montargil ou em Monforte: assim se irmanam estas terras na sua individualidade contudo muito própria, peculiar e singularmente personalizada.

Depois, quando saio de um antigo convento, é já noite. Cumpri minha tarefa, a que fôra efectuar e, satisfeito, olho da meia-lonjura as muralhas iluminadas. E sinto uma comoção que não sei explicar: e  lá fica ela, doirada - mas vi-a na sua serena  alvura; nocturna - e foi tão vesperal quão acolhedora.

Até sempre nobre Jerez, de los caballeros que garantiram o teu momento para os séculos em que perdurarás! 

Faz hoje 40 anos, contados dia por dia, que um amigo já falecido me ofereceu este livro de Albert Camus. A dedicatória e a data aqui estão, inquestionáveis. Folheio o livro com enlevo, detendo-me nesta e naquela página, de todas as frases tirando proveito e gosto num gesto espontâneo de apreço, de amor pelas obras deste escritor que sempre me fascinou e de quem me sinto um irmão espiritual. Compreendo os seus encantamentos em face de Tipasa, das colinas argelinas, do mar onde se banhava como um jovem filho desse Mediterrâneo sulcado por muitas raças e muitas gerações que lhe traçaram a legenda e lhe conferiram o poderoso apelo de região solar. Assim como sinto, de igual modo, a sua tristeza ao verificar a fragilidade analítica dos que lhe antepunham reservas, em dada época, sem atentarem no esforço de renovação da linguagem, do estilo próprio, a que ele se entregava para melhor e mais exacto testemunho do seu pensamento e da sua imaginação dar a quem o buscava como humilde ou informado leitor, de confrade na rota imarcescível da escrita.

Se sou, agora como no começo, sensível à sua filosofia toda formada nos meandros de um rasgo de ética e de justiça e de verdade, eivada de verticalidade sem sobranceria, de dignidade sem altivez, dessa modéstia varonil como só os altos espíritos são capazes, é como novelista, prosador e dramaturgo que ele preferencialmente se me impõe. O seu “O Avesso e o Direito seguido de Discursos da Suécia” é uma obra-prima comovente e exaltante. Mesmo os seus “Escritos de Juventude”, ainda que nimbados por uma, a meu ver, mais inocência que inabilidade dos inícios, encantam-nos tanto quanto nos impelem numa demanda toda feita de pureza, de justeza e de sinceridade.

Leia-se então este trecho, que depois iria constituir o prefácio daquela sua colectânea:”A pobreza, em primeiro lugar, nunca foi para mim uma desgraça: a luz derramava sobre ela as suas riquezas. Mesmo as minhas revoltas foram por ela iluminadas. Foram quase sempre, creio poder dizê-lo sem fazer batota, revoltas por todos e para que a vida de todos seja construída na luz. Não é certo que o meu coração estivesse naturalmente disposto a esta espécie de amor. Mas as circunstâncias ajudaram-me. Para corrigir uma indiferença natural, achei-me colocado a meia distância entre a miséria e o sol. A miséria impediu-me de crer que tudo está bem debaixo do sol e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo. Mudar a vida, sim, mas não o mundo de que eu fazia a minha divindade. Foi assim, sem dúvida, que abordei esta carreira inconfortável que é a minha, aventurando-me com inocência sobre um arame de equilibrista em que avanço penosamente, sem estar seguro de atingir o fim".

Também, desta maneira clara e singular, nos falava a voz de Montaigne.

Dantes, quando comentar no Portugal Diário era um exercício de cidadania, salvos os pontuais excessos de algum bisnau uma notícia como esta (Suspeitas sobre meandros familiares no caso Freeport) despoletaria um pacotão de saborosos e adequados comentários.

Ainda sou desse tempo definitivamente passado à História.

Agora é o que se vê... Nem um para amostra!

Para além de isto querer dizer que o PD já não é um lugar de debate franco, aberto, independentemente de alguns excessos de que não vinha mal ao mundo, um lugar em que os escreventes humildes confiavam, isso diz-nos mais: que o País está de facto à beira de uma explosão social, como até o duvidoso Soares se deu conta.

Que venha ela, para limpar de vez esta sujeira que se acumulou na nação.

Estes sítios, que serviam como válvula de escape para além de curioso tablado de exercício democrático, perderam a partida. Algo está definitivamente podre neste arremedo de reino da Dinamarca.

O silencio, mesclado de censura "discreta", agora é o que tipifica o dia a dia...noticioso.

Um país que, parafraseando Churchill, perdeu a honra e vai perder a liberdade e a paz, é o que é. 

Hoje choveu. Esteve frio. Um frio estranho e agressivo, como que a vingar-se da primavera que por aí desponta e cresce. Acolhi-me, na cozinha, a um aquecedor sobrevivente dos arrumos primaveris. E socorri-me, para me iluminar, de dois livros, em formato de enciclopédia, com as obras de Picasso e de Cézanne, parentes consanguíneos na pintura e, por diferença, na vida de incessantes arroladores de um universo em mutação acelerada.

Se conheço Cézanne...! Era ele o nosso pai, era ele quem nos protegia...! Se não havia de o conhecer como estas mãos!”, dizia Picasso, já dispondo de um prestígio, de uma situação, de um reconhecimento, a uma senhora que o procurara para que ele certificasse como bom um falso Cézanne, um desses falsos Cézannes que foram muito proverbiais em aparecer nos idos de cinquenta do século transacto.

Em Picasso, como em Cézanne, os traços, as cores, as formas, as incidências deste ou daquele motivo estão ali da única maneira pela qual o poderiam estar: intensa e verdadeiramente significativos, representando – ou melhor, certificando – uma situação limite ainda que de forma natural, ia dizer sem alardes, sem sequer dramas ou excessivas recorrências. Olham-se as naturezas mortas com os potes, cântaros ou canecas de barro do solitário de Aix e sente-se, mais do que se percebe, que são irmãs colaças, na sua singeleza e majestade, dos quadros de maiores dimensões em que o compulsivo trabalhador da Rua La Boétie traçava os perfis dos seus pescadores de Antibes, as suas festas arcádicas, as suas alegrias de viver e os seus minotauros plenos de cor juntando a sobriedade ao requinte.

Agradeço pois a este dia arisco e aparentemente um pouco rude, esta incursão, retintamente não-portalegrense, por um mundo encantado, amável e repleto de incontestada maravilha.  

Temos estado em plenas Europeias. Eleições. Chatas, tolas, perturbantes pelo seguinte: como é possível verdadeiros desastres como um Vital Moreira ex-estalinista, ex-cunhalista e agora independente do PS, vir proposto como cabeça de lista dum partido que, pelo respeito que devia a uma dada luta antiga e desaparecida contra o totalitarismo, devia ser sensato, inteligente e minimamente consciente?

Ouvir este Moreira que decerto pelas melhores razões nele se acolheu, é ouvir num espelho, no outro lado do espectro, em negativo clownesco, em melífluo e algo amaneirado discurso, a conversata - essa em tom martelante e ameaçador, quase grotesco – do seu patrão secretário-geral, de cabeça bicéfala e portanto também governamental, que hoje faz a chuva e o bom tempo num país à deriva, de pernas arrastadas e pescoços amarrados, de babete e olhos torcidos pelo desespero devido à falta de razoabilidade económica, de metal sonante e de esperança num futuro que se desfaz.

As conversas assentes nas mentirolas e no vazio deste cavalheiro, cuja figura caricatural é o reflexo do que decerto lhe irá/faltará por dentro, tem inteira correspondência na conversa matraqueante, angustiosa, sincopada e militantona da candidata da formação marxiana, residindo bem perto do estendal demagógico do membro bloquista, um verdadeiro entertainer da extrema trotskysta. São um contraponto ao explicitar centrista, onde um Melo em busca de dignidade de moço novo que se pretende apresentar como expedito e credível, é atingido a despeito dos seus tentames pelo estilo consabido desse excelente raposão político que é um dos irmãos em nome do outro lado do leque partidário, com a sua lábia de experiente transeunte pela estrada cada vez mais apertada da democracia representativa.

Resta Rangel. Entre os grandes – que aos pequenos nem lhes dão tempo para aparecer ou, se aparecem, é tão resumidamente que melhor lhes valera estarem mesmo inteiramente calados e denunciarem pelo silencio a real falta de democraticidade desta nação às aranhas. Homem indubitavelmente capaz, cuja performance só surpreendeu os que não tinham reparado nele em debates e intervenções já de há um bom par de anos, está no entanto bloqueado pelo que se sente ser o mais do mesmo do partidão em que se acha incrustado.

Nos longes de Bruxelas, estes operacionais pouco ou nada poderão fazer de construtivo, uma vez lá, entre os verdadeiros senhores do mundo para quem não passam de criados graves quando muito.

Mas poderão deixar, e isso é que é preocupante, tudo ainda pior – pela ilusão que, decerto, acalentam e deixam acalentar em quem os elegeu, de que algum peso têm mais do que aquele, minúsculo e titubeante - destinado a apenas fazer número - que lhe consentem os que os irão virando e revirando a seu bel-prazer como uma velha luva de respeitável madame de antanho.

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc. 

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).  

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).     

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),  “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil)...

Prefaciou os livros “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários” de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.