No meu canhenho – um Moleskine canónico
que um dos meus filhos me ofereceu – vou juntando ao calhar dos dias
reflexões, pequenos poemas, notulazinhas de viagens, enfim: o trivial
raciocínio escrito de um convivente que, não tendo angústias de maior,
tem contudo dissabores e alegrias, sucessos e congeminações próprios de
quem vai existindo num mundo que ainda se não tornou supranumerário.
Correndo o risco de vos estorvar, aqui
dou a lume algumas entradas desse discurso talvez dispiciendo,
eventualmente dispensável, concerteza dum foro comunicacional e mesmo
solidário que naturalmente me apraz.
Mas não se chama/pode chamar a isso,
precisamente, a literatura...?
Janeiro, 7
Depois de um
passeio de automóvel pelas imediações do montado de Alpalhão, detenho-me
num aprazível recanto perto da pequena vila da Alagoa. É um dia aberto
de sol, as colinas para os lados dos Fortios têm uma cor violeta própria
desta época do ano. Em volta, o silêncio, um desses grandes silêncios de
certos lugares do nordeste alentejano, paira sobre mim.
Pego num livro
de Rilke e dou-me a reler, com ripanso, certas passagens deste seu “Os
cadernos de Malte Laurids Brigge”:
“Aprendo a ver. Não sei porquê, tudo penetra mais fundo em mim e não
pára no lugar onde até agora acabava sempre. Tenho um interior de que
não sabia. Tudo lá vai dar agora. Não sei o que ali acontece.”.
Palavras tão sugestivas, tão adequadas, tão percucientes, que são quase
dolorosas, creio, se lidas por gente que ainda sente viver nela
um pouco de sagrado.
E mais adiante,
já a contas com um poema de Czeslaw Milosz: “Aos vacilantes, fracos e
inseguros foi dada uma tarefa:/ erguerem-se dois centímetros acima da
sua própria cabeça/ e dizerem a quem desespera:/ “eu também chorava
assim a minha sina”.
Depois de se
lerem coisas assim como é que se pode levar a sério, se acaso ela nos
caísse sob o olhar, a escrita perfunctória e pedante de um X... eivado
de veneras e de pesporrente auto-suficiência, própria de um luso
evanescente que de súbito se viu colocado entre os imortais por fecundo
amor e esforçado trabalho da nova diplomacia? E como é que se podem
continuar a ouvir, sem um esgar de vómito, os relatos das aventuras
quotidianas de um tratante habilidoso ou de um habilidoso homem público
fornecidos pelos telejornais?
Fevereiro, 24
Chego a esta
terra templária (Jerez de los Caballeros) por volta das duas da tarde de
um dia esplendido. O sol, por surpresa, é como um malmequer por cima da
torre singular que logo me assinalaram. E me fascina de imediato mas no
entanto me deixa olhar outras mais. Deambulamos um pouco até entrarmos,
para uma leve colação, numa antiga taverna onde se enfileiram tonéis
enormes.
Ao deixá-la
olho as ruas - e tanto me parece poder estar em fragmentos de Estremoz
como em trechos de Marvão, em Montargil ou em Monforte: assim se irmanam
estas terras na sua individualidade contudo muito própria, peculiar e
singularmente personalizada.
Depois, quando
saio de um antigo convento, é já noite. Cumpri minha tarefa, a que fôra
efectuar e, satisfeito, olho da meia-lonjura as muralhas iluminadas. E
sinto uma comoção que não sei explicar: e lá fica ela, doirada - mas
vi-a na sua serena alvura; nocturna - e foi tão vesperal quão
acolhedora.
Até sempre
nobre Jerez, de los caballeros que garantiram o teu momento para os
séculos em que perdurarás!
Março, 14
Faz hoje 40
anos, contados dia por dia, que um amigo já falecido me ofereceu este
livro de Albert Camus. A dedicatória e a data aqui estão,
inquestionáveis. Folheio o livro com enlevo, detendo-me nesta e naquela
página, de todas as frases tirando proveito e gosto num gesto espontâneo
de apreço, de amor pelas obras deste escritor que sempre me fascinou e
de quem me sinto um irmão espiritual. Compreendo os seus encantamentos
em face de Tipasa, das colinas argelinas, do mar onde se banhava como um
jovem filho desse Mediterrâneo sulcado por muitas raças e muitas
gerações que lhe traçaram a legenda e lhe conferiram o poderoso apelo de
região solar. Assim como sinto, de igual modo, a sua tristeza ao
verificar a fragilidade analítica dos que lhe antepunham reservas, em
dada época, sem atentarem no esforço de renovação da linguagem, do
estilo próprio, a que ele se entregava para melhor e mais exacto
testemunho do seu pensamento e da sua imaginação dar a quem o buscava
como humilde ou informado leitor, de confrade na rota imarcescível da
escrita.
Se sou, agora
como no começo, sensível à sua filosofia toda formada nos meandros de um
rasgo de ética e de justiça e de verdade, eivada de verticalidade sem
sobranceria, de dignidade sem altivez, dessa modéstia varonil como só os
altos espíritos são capazes, é como novelista, prosador e dramaturgo que
ele preferencialmente se me impõe. O seu “O Avesso e o
Direito seguido de Discursos da Suécia” é uma obra-prima
comovente e exaltante. Mesmo os seus “Escritos de Juventude”,
ainda que nimbados por uma, a meu ver, mais inocência que inabilidade
dos inícios, encantam-nos tanto quanto nos impelem numa demanda toda
feita de pureza, de justeza e de sinceridade.
Leia-se então
este trecho, que depois iria constituir o prefácio daquela sua
colectânea:”A pobreza, em primeiro lugar, nunca foi para mim uma
desgraça: a luz derramava sobre ela as suas riquezas. Mesmo as minhas
revoltas foram por ela iluminadas. Foram quase sempre, creio poder
dizê-lo sem fazer batota, revoltas por todos e para que a vida de todos
seja construída na luz. Não é certo que o meu coração estivesse
naturalmente disposto a esta espécie de amor. Mas as circunstâncias
ajudaram-me. Para corrigir uma indiferença natural, achei-me colocado a
meia distância entre a miséria e o sol. A miséria impediu-me de crer que
tudo está bem debaixo do sol e na história; o sol ensinou-me que a
história não é tudo. Mudar a vida, sim, mas não o mundo de que eu fazia
a minha divindade. Foi assim, sem dúvida, que abordei esta carreira
inconfortável que é a minha, aventurando-me com inocência sobre um arame
de equilibrista em que avanço penosamente, sem estar seguro de atingir o
fim".
Também, desta
maneira clara e singular, nos falava a voz de Montaigne.
Abril, 6
Dantes, quando
comentar no Portugal Diário era um exercício de cidadania, salvos
os pontuais excessos de algum bisnau uma notícia como esta (Suspeitas
sobre meandros familiares no caso Freeport) despoletaria um pacotão
de saborosos e adequados comentários.
Ainda sou desse
tempo definitivamente passado à História.
Agora é o que
se vê... Nem um para amostra!
Para além de
isto querer dizer que o PD já não é um lugar de debate franco, aberto,
independentemente de alguns excessos de que não vinha mal ao mundo, um
lugar em que os escreventes humildes confiavam, isso diz-nos mais: que o
País está de facto à beira de uma explosão social, como até o duvidoso
Soares se deu conta.
Que venha ela,
para limpar de vez esta sujeira que se acumulou na nação.
Estes sítios,
que serviam como válvula de escape para além de curioso tablado de
exercício democrático, perderam a partida. Algo está definitivamente
podre neste arremedo de reino da Dinamarca.
O silencio,
mesclado de censura "discreta", agora é o que tipifica o dia a
dia...noticioso.
Um país que,
parafraseando Churchill, perdeu a honra e vai perder a liberdade e a
paz, é o que é.
Abril, 17
Hoje choveu.
Esteve frio. Um frio estranho e agressivo, como que a vingar-se da
primavera que por aí desponta e cresce. Acolhi-me, na cozinha, a um
aquecedor sobrevivente dos arrumos primaveris. E socorri-me, para me
iluminar, de dois livros, em formato de enciclopédia, com as obras de
Picasso e de Cézanne, parentes consanguíneos na pintura e, por
diferença, na vida de incessantes arroladores de um universo em mutação
acelerada.
“Se conheço
Cézanne...! Era ele o nosso pai, era ele quem nos protegia...! Se não
havia de o conhecer como estas mãos!”, dizia Picasso, já dispondo de
um prestígio, de uma situação, de um reconhecimento, a uma senhora que o
procurara para que ele certificasse como bom um falso Cézanne, um desses
falsos Cézannes que foram muito proverbiais em aparecer nos idos de
cinquenta do século transacto.
Em Picasso,
como em Cézanne, os traços, as cores, as formas, as incidências deste ou
daquele motivo estão ali da única maneira pela qual o poderiam estar:
intensa e verdadeiramente significativos, representando – ou melhor,
certificando – uma situação limite ainda que de forma natural, ia dizer
sem alardes, sem sequer dramas ou excessivas recorrências. Olham-se as
naturezas mortas com os potes, cântaros ou canecas de barro do solitário
de Aix e sente-se, mais do que se percebe, que são irmãs colaças, na sua
singeleza e majestade, dos quadros de maiores dimensões em que o
compulsivo trabalhador da Rua La Boétie traçava os perfis dos seus
pescadores de Antibes, as suas festas arcádicas, as suas alegrias de
viver e os seus minotauros plenos de cor juntando a sobriedade ao
requinte.
Agradeço pois a
este dia arisco e aparentemente um pouco rude, esta incursão,
retintamente não-portalegrense, por um mundo encantado, amável e repleto
de incontestada maravilha.
Maio, 24
Temos estado em
plenas Europeias. Eleições. Chatas, tolas, perturbantes pelo seguinte:
como é possível verdadeiros desastres como um Vital Moreira
ex-estalinista, ex-cunhalista e agora independente do PS, vir proposto
como cabeça de lista dum partido que, pelo respeito que devia a uma dada
luta antiga e desaparecida contra o totalitarismo, devia ser sensato,
inteligente e minimamente consciente?
Ouvir este
Moreira que decerto pelas melhores razões nele se acolheu, é ouvir num
espelho, no outro lado do espectro, em negativo clownesco, em
melífluo e algo amaneirado discurso, a conversata - essa em tom
martelante e ameaçador, quase grotesco – do seu patrão secretário-geral,
de cabeça bicéfala e portanto também governamental, que hoje faz a chuva
e o bom tempo num país à deriva, de pernas arrastadas e pescoços
amarrados, de babete e olhos torcidos pelo desespero devido à
falta de razoabilidade económica, de metal sonante e de esperança num
futuro que se desfaz.
As conversas
assentes nas mentirolas e no vazio deste cavalheiro, cuja figura
caricatural é o reflexo do que decerto lhe irá/faltará por dentro, tem
inteira correspondência na conversa matraqueante, angustiosa, sincopada
e militantona da candidata da formação marxiana, residindo bem perto do
estendal demagógico do membro bloquista, um verdadeiro entertainer
da extrema trotskysta. São um contraponto ao explicitar centrista, onde
um Melo em busca de dignidade de moço novo que se pretende apresentar
como expedito e credível, é atingido a despeito dos seus tentames pelo
estilo consabido desse excelente raposão político que é um dos irmãos em
nome do outro lado do leque partidário, com a sua lábia de experiente
transeunte pela estrada cada vez mais apertada da democracia
representativa.
Resta Rangel.
Entre os grandes – que aos pequenos nem lhes dão tempo para aparecer ou,
se aparecem, é tão resumidamente que melhor lhes valera estarem mesmo
inteiramente calados e denunciarem pelo silencio a real falta de
democraticidade desta nação às aranhas. Homem indubitavelmente capaz,
cuja performance só surpreendeu os que não tinham reparado nele
em debates e intervenções já de há um bom par de anos, está no entanto
bloqueado pelo que se sente ser o mais do mesmo do partidão em
que se acha incrustado.
Nos longes de
Bruxelas, estes operacionais pouco ou nada poderão fazer de construtivo,
uma vez lá, entre os verdadeiros senhores do mundo para quem não passam
de criados graves quando muito.
Mas poderão
deixar, e isso é que é preocupante, tudo ainda pior – pela ilusão que,
decerto, acalentam e deixam acalentar em quem os elegeu, de que algum
peso têm mais do que aquele, minúsculo e titubeante - destinado a apenas
fazer número - que lhe consentem os que os irão virando e revirando
a seu bel-prazer como uma velha luva de respeitável madame de
antanho. |
Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália,
Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter
exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris,
Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi,
Sevilha, etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio
Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor
ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro
(1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O
desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a
sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e
plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a
Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique
(2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de
Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou,
o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana
“Bichos” (2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na
Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado em
espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”,
Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”,
“Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”,
“Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de
Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”,
“Laboratório de poéticas”(Brasil)...
Prefaciou os livros
“Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas”
de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários”
de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”,
suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O
Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o
Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art
“O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na
Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de
poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no
álbum “Canciones lusitanas”.
Até se aposentar
em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos
José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município
da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e,
em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de
actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de
Mérito Municipal. |
|
|