1.
Como nos disse em tempos François Jacob, num texto tão excitante como de
clara feitura, “A vida é mais questão de engenhoquice do que de
engenharia”.
Referia-se, no caso vertente, à vida
carnal, material do Homem elaborada através dos séculos, mas eu estou em
crer que se referiria efectivamente à vida em geral, fôsse ela de seres
humanos ou de tigres, de lobos de Alsácia ou do nosso estimado “Ornithorhynchus
anatinus”, animalzinho estimável, protegido pelas leis
internacionais e que, a quem o viu pela vez primeira com olhos de ver,
deve ter comunicado um espanto que apenas podemos conjecturar ou inferir
a partir de relatos cabais e com chancela científica.
O mesmo se dá igualmente, arriscaria dizer, com certos livros – que
naturalmente são representação dos seus autores ou, melhor, das
congeminações dos seus autores em certa fase de vivência ou de escrita.
Livros únicos, de uma feitura que não se pode entretecer de novo sem se
correr o risco da repetição desnecessária, ainda que o que se
pretendesse fôsse o de uma mais perfeita adequação, mais exacta
preparação como uma iguaria de maestro ou de transmutador. E
livros absolutamente, felizmente compósitos, com suas diversas partes e
escaninhos, aparentemente intercambiáveis como puzzles, como
labirintos comunicacionais, como peças de um mecanismo intelectual,
literário e feito a partir de uma escrita cujo cimento mais evidente é o
que parte da memória, do como e do porquê em que tudo
surgiu e, depois, se estruturou para fazer sentido – ainda que um
sentido que a uma primeira vista (uma primeira leitura?) não é
imediatamente reconhecível ou, ia dizer, mesmo descriptável a quem dele
se aproxime sem ter tido a precaução de verificar que se está a contas
com um texto-ornitorrinco.
No
qual se mescla, como se fosse só por acaso, uma certa angústia de viver
trespassada de súbitas alegrias (ou comoções) que principalmente vêm da
infância ou da extrema juventude, que é onde as coisas todas começam
antes de termos necessidades evolutivas interiores em que a
engenhoquice a que se reportava o insigne autor de “O jogo dos
possíveis”, livro onde as hipóteses biológicas são postas em equação
(mas também de “A estátua interior”, autobiografia a que eu
melhor chamaria viagem memorialística por si mesmo e pelos outros
que lhe certificaram a existência e a permanência como pessoa em todas
as direcções) assenta arraiais de maneira significativa e incontornável.
2.
a.
Não estamos a contas com um livro ameno ou, dito de outra forma, amável.
A autora, como se fosse uma bióloga-cirurgiã, disseca o texto (a memória
dos eventos que o constroem), descarna a escrita de forma simuladamente
(mais que dissimuladamente, num jogo que nos arrasta como cúmplices para
dentro das páginas) natural, tranquila, habitual dos meios em que nos
faz excursionar: areópagos universitários, terras do (seu) estrangeiro,
entrepostos colegiais que frequentou, cidades e lugares onde residiu ou
visitou, em suma - elementos que, mais tarde, na nossa existência civil,
constituem mesmo que o não queiramos lembranças por extenso e que são,
por si sós, lugares estranhos.
Creio que me faço entender...
No entanto, não nos deixemos iludir,
pois este é também um livro vincadamente filho de uma prestidigitação
que os poetas aliás assumem sem que o mostrem excessivamente, uma vez
que isso faz parte, diria, das regras do jogo em que se cruzam
realidade e imaginação e já se sabe, desde Madame de La Fayette e do seu
canónico “A princesa de Clèves”, que há fantasias que são muito
mais reais que presumíveis realidades, ou dito de outro modo: que para
uma situação ser vincadamente real necessita do colorido da construída
fantasia, que é alma da escrita, dos relatos e das efabulações, da
célebre folha de papel branco vencida pelas palavras e as frases
organizadas de determinada feição.
Ou seja, exactamente, da Literatura.
b.
“Ninguém nunca admitiu ter feito parte
da Ordem”, diz-nos,
significativamente, a autora a dado passo ao referir-se à entidade que
consubstancia o título deste seu livro simultaneamente aberto e fechado,
convivente e provocatório, simbólico, metafísico e no entanto muito
concreto nas recorrências a que alude (da infância, dos encontros e
desencontros, mesmo da própria nomenclatura discursiva e circunstancial
dum quotidiano pós-moderno que subitamente irrompeu e riscou
transversalmente um mundo onde está mesmo presente, ainda que em
fotografia desfocada, o erotismo interactivo ou digitalizado e os sinais
de uma técnica e de uma ciência entre “a opacidade e a transparência”
(sic) e que, se têm a ver com a evolução das sociedades, muito mais o
têm com a resposta que cada um lhe possa dar, seja em escrita seja em
existência comum e de todos os dias civis.
É um livro onde as personagens, vistas ou recordadas, sentidas ou apenas
criadas para que o pensamento e o sentimento possam existir numa escrita
que incessantemente se questiona, ora se perdem ora se encontram,
revoluteando como imagens num espelho, como dizia Fulcanelli, no
espelho que é este livro onde a autora (gémea ou mulher com rabo como um
ornitorrinco? alguém pagando o pato ou madame bovary entrevistadora de
Templiakov? poetisa dando comida às plantas carnívoras ou gestora da
Coisa Perdida onde se pesquisa a língua?) se expressou.
Essa língua, afinal, que dá origem a
universos alternativos – ou seja, da escrita – que foi segundo os
cânones o princípio do Mundo e que é pelo menos, indestrutivelmente e
enquanto houver tempo, memória e terra para os conter, aquilo com que se
faz a vida passível de existir num livro, em todos os livros, neste
livro simultaneamente atormentado, complexo, sugestivo e onde, afinal e
ao cabo, se consegue aperceber uma difusa e conquistada e sentida
alegria de existir. |
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Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália,
Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter
exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris,
Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi,
Sevilha, etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio
Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor
ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro
(1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O
desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a
sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e
plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a
Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique
(2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de
Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou,
o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana
“Bichos” (2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na
Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado em
espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”,
Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”,
“Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”,
“Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de
Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”,
“Laboratório de poéticas”(Brasil)...
Prefaciou os livros
“Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas”
de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários”
de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”,
suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O
Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o
Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art
“O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na
Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de
poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no
álbum “Canciones lusitanas”.
Até se aposentar
em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos
José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município
da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e,
em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de
actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de
Mérito Municipal. |
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