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NICOLAU SAIÃO |
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NATAL 2009
“À HISTÓRIA ELES NÃO ESCAPAM” |
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Começo este mínimo (e heterodoxo) texto
de Natal e Ano Novo, que por vossa estima e aceitação de MEG se tornou
em mim proverbial, com esta frase da autoria de Amadeu Carvalho Homem –
homem de bem e historiador pundonoroso, um dos mestres de Coimbra que,
por acasos filiais (digamos com algum humor, já que por essa altura um
filho meu terminava a sua jornada universitária coimbrã) pude conhecer
nos idos de 92/93.
Alguns anos depois, por coincidência em
meados do mês de Dezembro, tive ensejo de o trazer à Rádio da cidade em
que ainda habito e onde eu então realizava um programa (“Mapa de
Viagens”) que ia para o ar todos os sábados das vinte e duas às vinte e
quatro e se manteve no ar durante 36 emissões.
Estive anteontem a reviver esse momento
mediante a audição, nas velhinhas cassetes áudio que pude conservar, do
“Uma noite com a História”, assim o intitulara sem alarde pois já
antevira que seria uma jornada memorável.
Não preciso de vos dizer que durante
aquelas duas horas ficámos (tanto os ouvintes como eu) suspensos do
saber e da maneira de o exprimir do autor de, entre outros, “A Ideia
Republicana em Portugal – O contributo de Teófilo Braga”.
Se bem se lembram, aqueles anos da
década de 90 andavam pouco salutares (sem contudo terem a gravidade dos
de agora!), o que ficou também expresso, de passagem e apropriadamente,
no que se foi dizendo – aliás com ponderação mas firmeza. E foi a certa
altura, comentando factos gerais, que o Professor proferiu a frase em
epígrafe – que por tão justa e adequada, e certeira, fixei e tenho
reproduzido quando faz sentido em palestras cá e lá fora.
Sim, à História eles não escapam.
Entendendo-se este “eles” por aqueles (sejam eles quem forem,
geralmente os que todo lo mandam, como sói dizer-se) que quer nos
dias mais vulgares quer nas Quadras mais marcantes, transformam os
tempos em algo de penoso, de constrangedor – e fazem dos tempos de Natal
horas negras e inquietantes.
Como as que ficaram expressas, ontem,
nas indignadas declarações televisivas de uma senhora, depositante numa
entidade bancária destroçada alegadamente pelas gerências e, o que é
igualmente grave, pela incapacidade (pela incúria?) dos governantes em
devolverem algum dinheiro que a essas pessoas outrora confiantes
permitisse passar um Natal mais afoito. Menos angustiado!
Resta-nos a consolação de que, pelo
menos, à História eles não escapem.
A finalizar, aqui vos deixo o poema que
fui dizendo no decorrer desse programa quase natalino e que de uma forma
desconstruída, vincadamente inconvencional, aponta para uma figura
retintamente histórica, o perspicaz Ulisses que soube reptar as
manigâncias dos deuses nefastos e vencer as urdiduras dos humanos
desumanizados, como nos conta o prudente Homero e que dei a lume
pelas minhas horas nessa Quadra que tenho por tão sugestiva.
…E tanto quanto possível – Bom Natal! |
U L I
S S E S |
I |
A minha
saudade, disse o velho, é como um sonho
e o meu
sonho, por seu turno, faz aparecer o vento.
Nos meus
antigos rastos há um vestígio que não reconheço
de coisas
que toquei ao acaso e que eram simples como uma planta
ressequida
e posta junto ao meu leito
(Leito
onde não repousei
onde eram
exíguas as presenças da morte
onde havia
pássaros como em gaiolas familiares
com
estranhos roteiros e silhuetas
tal qual
os passos que alguém deixa
inscritos
na terra húmida
ou nos
ladrilhos do chão duma casa devastada).
No
primeiro andar daquele prédio além
sente-se
tenuemente um vago odor de corpos
de gente
vestida como para uma festa
que não
chegará nunca (bonecos de porcelana quebrados
e cobertos
de pó, ao lado
de um copo
sujo de café) - assim o velho, agora definitivamente desperto
continuou,
como se as palavras existissem -
O fogo e o
suor geram nas suas entranhas o momento
de andar
por estas ruas como por país conquistado.
O orvalho
é como uma gota de vinho sobre o tampo da mesa
e não há
por detrás nem espírito nem melancolia. Era já noite quando alguém
andrajoso
foi pé ante pé junto da porta
a segunda
porta, onde os retratos reluzem
entre os
breves fulgores da aurora. |
II
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Abre-te ao
meu desgosto, acolhe
em tuas
mãos sarcasmo e incerteza. É necessário
saber que
o horizonte nestas montras
é o mesmo
que paira sobre esqueletos e corpos vivos
- o
horizonte impreciso aonde o sol
traça como
que a linha já desfeita
dum rosto,
frutos, mistérios. Que esta manhã, ao menos
oferte a
quem a busca
outras
recordações.
O vento
está em ti como um soluço
As ramadas
das árvores, no parque
são como a
geometria que esquecêmos
de
diferentes lugares, de quartos que habitámos
e que
vivem em nós como sementes
crescendo
no negrume. Ficaremos aqui
nas
veredas percorridas em silêncio
olhando ao
longe pinhais e nuvens errantes
retocadas
a lápis, vagamente
como
laranjais ao crepúsculo
E mil
bocas serão a nossa boca
além do
muro de pedra onde a nossa mão repousou
ou apenas
ficou por um minuto
como dedos
dobrados
sobre
amarfanhados tecidos. Como a escrita
de alguém
já morto já transformado em nome. Ninguém
semeou o
trigo que comeste
o pão já
ressequido, já esquecido
em
momentos de febre ou de amargura
em horas
abandonadas, sobrepostas
e em
repouso e de novo abandonadas
- imagem
que incansavelmente se procura
em pessoas
e coisas, em instantes
perdidos
para sempre. Refaz de novo o tempo
que
humildemente foi
raiz,
montanha o vácuo. |
III |
Convosco
se divide não apenas a alegria
mas também
o que perdura em quanto se acha
e é
pequeno ou talvez iluminado -
a fruta
devorada em tempo vário
ou apenas
tabaco, fina ardósia
da memória
deposta em estranhos dias
alheias
algibeiras. Chorando
ora na
manhã, ora na noite
(a
noite e a manhã palavras
que nada
dizem, nada significam
entre ilha
e ilha
onde as
flores de acanto equivalem perfumes mais terrenos
Maderas
del Oriente brise de soie palmolive)
gemendo
se não
vinha a frase mais certeira
- um tanto
ao norte um tanto ao sul -
do teu
para o meu rosto. Mansamente
ali
rejuvenesce a nossa voz
Sob os
ramos da casa, junto à triste
lembrança
olhada a medo, mal rompera
a luz
cruzada na colina.
Mãe
ou pai -
em todo o
caso pessoas que não esquecem
agora que
sussurra contra o leme
este vago
Oceano -
iria ser,
de brancos cabelos tecendo
ora a
ternura ora um fino tédio. Garatujas
numa pedra
ou numa parede suja
Momentos
que gravaram dentro em nós
se este
afinal dizer não é algo excessivo
na saleta
em penumbra ante as imagens que dançam
pranto,
riso, ciúme ou fria chuva. |
IV |
Esta foi a
casa que sempre procurei
Nela
coloquei minha memória, os livros, duas camisas
velhas
Nela irei aguardar os símbolos zodiacais
visitas de
família, um gato. Sem veredas em torno
- sem
vento, inda p’ra mais, que a vela enfune -
acharei no
Inverno seu perfil
de manhã
solitária, enevoada
pela
figura cujos passos soam
como que
pressentidos. Aqui e ali porei
resíduos
de conversas, a sombra da mão
dum
cadáver que vi na infância - primeiro cadáver
como uma
ferida fumegante, corpo morto farol
de
incontáveis navegações -
tronco ou
cabeça, sovaco, perna, pé
que nunca
pude esquecer
E luzes,
luzes como reflexos numa janela fechada
(No páteo,
entre os cavalos de Heliodoro
Manuel da
Silva Pericão os lençóis ondulavam
porque era
sua Mãe estalajadeira
também
servia refeições para fora)
solene,
tumultuosa, às vezes aberta
para as
meninas verem a procissão
dos que a
Creta voltavam os que aprendiam a morrer
quem sabe
por vezes numa auto-estrada
E será
como um grande mundo atravessando os minutos
de par a
par, perenemente reconhecível.
Aqui e ali
um bicho um coelho, um retrato
de um
primo montado num burro, um banco de madeira
perdido há
muitos anos e de repente o som dum objecto partindo-se
sozinho, e
em meu redor nem sonhos nem temor.
No quarto
mais sombrio, ou seja
mais
tranquilo
entre a
espada que protegeu as minhas treze viagens
e um
boneco de pano oferta da TWA
um odor
bem diferente: as velhas flores do quintal abandonado
e uma
cadeira com cadernos em cima, um som de água repentino.
Vale
dizer: aqueles que à beira do Outono morrem
têm,
presume-se, a tarefa facilitada -
quietude,
doce lembrança para anos de fome
mágoa,
página tão profunda, tão maneirinha
silêncio,
bússola para todos os instantes
Serenas
companhias envolvendo a nossa fadiga
presenças
que o nosso amor forçou a adormecer.
O pasmo
há-de envolver as ramagens em torno das paredes
há-de, no
tecto, brilhar qualquer coisa fugidia.
Há-de
haver, ao largo de Corinto, um som de sino rachado.
A noite, a
noite que é fria, que fende com seu lume profundo
há-de
encontrar-me algures, com velhas palavras caindo
como
flocos de neve ora azuis, ora vermelhos.
Em Dezembro
ns |
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Nicolau
Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou
em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália,
Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter
exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris,
Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi,
Sevilha, etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio
Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor
ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro
(1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O
desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a
sair).
No Brasil
foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e
plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a
Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique
(2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a
“Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os
fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e
ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato
Suttana “Bichos” (2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na
surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na
Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.
Tem
colaborado em espaços culturais de vários países: “DiVersos”
(Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”,
“Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil),
Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),
“Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”,
“Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”,
“Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista
365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires”
(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...
Prefaciou
os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de
portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do
Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno
Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros
Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural
publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de
Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.
Organizou,
com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o
Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O
futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na
Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de
poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no
álbum “Canciones lusitanas”.
Até se
aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de
Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município
da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e,
em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de
actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de
Mérito Municipal. |
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