NICOLAU SAIÃO

O João, o Edgar e o amigo dele

O João era o mais novo dos três. O Edgar era o mais velho e o amigo finou-se nos quarenta e sete.

Sofria de muitas coisas, coitado: poiquilotermismo, que é a incapacidade de manter estável a temperatura do corpo, ficando-se precisamente ao nível da temperatura comum aos peixes e aos répteis; de prognatismo, o que lhe carregava, nas gripes, os músculos do pescoço dando-lhe aquele ar ligeiramente fantasmal; e numerosas alergias, como fossem aos pólens, às gramíneas que andam pelo mundo durante a Primavera, ao ar do mar... Meditem na pouca sorte!

Mas isso não o impedia de ser expedito, desembaraçado e verdadeiramente genial. Já vamos ver isso, mas agora deixem que, antes de me debruçar sobre o Edgar, vos diga que há no mundo gente que não gosta da inteligencia, da liberdade, do simples acto de fazer coisas salubres e “desintoxicantes”, como muito bem disse uma senhora brasileira que usa vir visitar-nos literariamente.

Daí que não seja dispiciendo falar em pessoas como o amigo dele, o Edgar e o João.

Vamos ao Edgar: deu-se com ele uma coisa curiosa - nasceu num ano terminado em 9, morreu num outro terminado em 9 (*). Até nisto os deuses, nomeadamente o Baco, o cumularam de coincidências! Gostavam de brincar e ele não lhes ficava atrás. Daí que tenha feito muita coisa: por exemplo “O Corvo”, por exemplo “Ullalume”, por exemplo “A queda da casa de Usher”. Era multidisciplinar, o nosso homem - assim como no resto da vida: scotch, brigas, amores impossíveis, viagens imaginárias. O amigo dele também alinhava nas interrogações ao destino. Antecipava factos, era como uma (sensível) máquina de raciocinar e sonhar o que viria depois, ainda que por vezes em estilo pesadelo. Aí adiante lhe lerão um par de poemas e um deles até parece talhado sobre a figura dum tal ben Laden, que bem/mal se conhece. Mas não nos antecipemos...

O João era o mais novito. E o melhor apessoado. Parece que lá na sua Irlanda natal as vizinhas do moço se perdiam de amores por ele e as suas mamãs diziam enlevadas: “O João (John) Updike era mesmo um papossêco p'ró apetite da minha filha”...(**)

Os outros seduziam menos. O Edgar (Allan Poe) era baixinho e magrito e tinha um ar de alcoólico. Mas aqueles olhos! Luziam como estrelas vindas de muito longe – e o amigo dele, o Howard Philips Lovecraft ia na mesma rota.

Estão os três mortinhos da silva – o João marchou há poucos dias, o Edgar celebram-lhe agora o aniversário do nascimento e da morte, o Howard será p'ró ano.

Agora já andam juntos, decerto, pois o João admirava muito os outros dois. Lá vão eles pelo empíreo, na mesma linha editorial...

21. Nyarlathotep

  Do interior do Egipto eis que por fim chegou
  O estranho Obscuro ante quem os felás se inclinavam;
  Silencioso e descarnado, de enigmática altivez
  Ia envolto em panos vermelhos como as chamas do sol-pôr.

  À sua volta juntavam-se multidões ansiosas p´lo seu ditame

  Mas ao deixarem-no não sabiam contar que coisas tinham ouvido;
  Entretanto, pelas nações se difundia a pavorosa notícia
  De que, lambendo-lhe as mãos, o seguiam bestas selvagens.
 
  Cedo começou no mar um daninho nascimento;
  Em terras esquecidas cúspides douradas cobriam-se de ervas ruins;
  O chão abriu-se e auroras dementes abateram-se
  Sobre as tremebundas cidadelas dos homens.

  Então, esmagando o que por pirraça ele moldou
  O Caos insensato o pó da Terra assoprou.

26. Os familiares

   John Whateley morava a uma milha da cidade,
   Lá no alto onde as colinas começavam a apinhar-se;
   Ter muito juizo era coisa que não podia pensar-se
   Vendo a forma como deixava arruinar a  herdade.

   Gastava o seu tempo a ler durante todo o santo dia
   Uns livros que num recanto do sótão da casa encontrara
   Até que rugas esquisitas se lhe marcaram na cara
   E péssimo aspecto lhe deram,  como toda a gente via .

   Decidímos,  quando de noite ele começou a uivar
   Que seria bem melhor trancá -lo a cadeados.
   Então, do hospício de Aylesbury vieram três empregados
   Que o foram lá procurar.

   Voltaram sós e espantados:
   Pilharam-no conversando com dois seres acocorados
   Que mal ouviram seus passos bem marcados
   Com enormes asas negras esvoaçaram p’lo ar.

in HP Lovecraft, “Os fungos de Yuggoth”
(Black Sun Editores)

Trad. ns

(*) E.A.Poe nasceu em Boston a 19 de Janeiro de 1809 e faleceu em Baltimore, 7 de Outubro de 1849

(**) J.Updike, notável autor americano galardoado com dois Pulitzer e dois National Book Awards, faleceu recentemente (27 de Janeiro 09 ). Nascera em Reading, (Pennsylvania, EUA) em 18 de março de 1932. Na juventude passou um ano em Inglaterra, a estudos, onde duas moças irlandesas se tonaram suas pretendentes com, parece, grande alegria das mamãs. Updike era grande apreciador de John Dickson Carr, Poe e Lovecraft, além de outros cultores da literatura de mistério.

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.

  Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc. 

   Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).  

  No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).     

  Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).

  Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.

  Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),  “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil)...

 Prefaciou os livros “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários” de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).

   Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.

  Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).

   Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.

  Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.

     É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.