Maria Estela Guedes – Ouvi dizer que o Nicolau pertenceu ao grupo do café MonteCarlo. Que grupo era esse? Parecido com o do Café Gelo?
Nicolau Saião - Creio que sim, embora pelos relatos que tenho lido em revistas e livros de mais ou menos memórias o do Gelo tivesse características que lhe advinham, obviamente, da maior juventude das personagens envolvidas... Ali, naquele círculo, só havia dois mais novitos: o Martins e eu, os outros eram mais velhos, alguns beiravam mesmo a meia-idade.
Nós chegáramos da Guiné, ainda vínhamos frescos e treinados da barafunda. Iniciávamos - ou reiniciávamos, pois a guerra cortara os nossos primeiros tentames artísticos - a guerrilha com as artes & letras...
Os convivas que ali viémos encontrar, ainda que pertencessem a um sector que não estava em grande “cheiro de santidade” no milieu literário (eram todos para-surrealistas ou surrealistas mesmo, em todo o caso remando contra a corrente de conformismo que ontem como hoje ainda tentava fazer da actividade artística uma coisa compenetrada e enquadrada por áulicos e não políticos) tinham já o reconhecimento pelo menos dos intelectuais atentos e, nalguns casos, mesmo do sector cultivado das gentes.
Havia convivas de todas as noites e outros que chegavam, passavam e demandavam diferentes paragens.
Os primeiros, proverbiais, eram o Herberto Helder, o Virgílio Martinho, o Ernesto Sampaio e a Fernanda Alves, o Pedro Oom, o Ricarte-Dácio, o Miguel Erlich, o Eurico Gonçalves... Frequentemente o Barahona e a Eunice Muñoz, o Rui Mário Gonçalves, a Luiza Neto Jorge, o Luiz Pacheco, o Vítor Silva Tavares... Lembro-me de outras presenças, algumas já difusas: o Escada, o Valente da Fonseca, o João Vieira, o Mário Viegas, o Camacho Costa, mas também o Manuel Gusmão e o João César Monteiro, críticos de várias traças e gente ligada ao cinema, uma declamadora alourada com o seu marido baixito (daí que a esse acervo de convivas lhe chamassem o “Grupo dos Gnomos”, pois curiosamente eram todos de pequena estatura)... Ah, sim, aparecia também o António José Forte...
MEG - O Herberto Helder escreveu o prefácio de "Uma faca nos dentes", de António José Forte. Tenho-o aqui ao pé, a distinguir a inspiração da escrita automática e a falar de surrealistas e barrocos... Então o António José Forte também frequentava o MonteCarlo...
NS - O MonteCarlo era um entreposto onde se cruzavam autores de diversas expressões, cada um tinha o seu círculo de relações quer literárias quer pessoais... Em outras mesas lembro-me de ver por vezes o José Gomes Ferreira, o Vasco de Lima Couto, o Mário Castrim...
De vez em quando partíamos para outras rotas: íamos jantar a tasquinhas/restaurantes com boa pinta, visitávamos por vezes a casa de alguns confrades... Recordo-me que certa noite fomos ao apartamento de um casal próspero de autores-pintores-editores e, acarinhados com boas doses de uísque pelo anfitrião - o Miguel Erlich, que era mais ou menos atleta, resolveu experimentar os músculos dependurando-se da parte de fora da janela...que ficava ao que creio num quarto andar ou assim! A seguir houve concurso de beleza: os cavalheiros tiraram a camisa para as senhoras aquilatarem da pureza varonil do torso... Fiquei em terceiro lugar ex-aequo com o Martins... não foi mau... O prémio foi atribuído por unanimidade ao António Barahona, que as senhoras tinham em muita conta! O Herberto - nunca mais me esqueci do desabafo dele, assim como nunca me esqueci da primeira frase que me dirigiu quando na noite inicial chegou ao MonteCarlo (“São vocês os que escreveram ao Pacheco? Pode dar-me um cigarro dos seus? Estes não têm filtro e tenho a boca um pouco amarga”) - comentou: “Que coisa, estavam a pôr-me lá pró fim, até atrás do Eurico...”. Terá ele destes tempos/destes sucessos alguma lembrança?
MEG – E mesmo ao pé, na rua de cima, Avenida Praia da Vitória, havia outra tertúlia, a do Toni dos Bifes… Era onde se reuniam o Carlos de Oliveira, o Herberto Helder, ali ou ao Montecarlo ia também a Margarida Gil... Apareciam pelo Saldanha artistas de vários quadrantes, cinema e televisão também…
NS – Em certas noites, principalmente devido ao Ernesto Sampaio e à Fernanda Alves, transpunhamo-nos para o vizinho-do-lado café Saldanha, que era o que os actores e actrizes mais frequentavam. Gente que tinha boa aparência... e nós éramos jovens e galhardos...
Conversava-se, flirtava-se eventualmente... Dali íamos a seguir, por vezes e pela noite bem entrada, ao mercado intramuros um pouco mais abaixo, do outro lado da rua, à massa-frita, às chávenas de cacau e a jogar aos matraquilhos! Não me desenrascava mal, vinha ainda bem jogado das mesas da cantina do quartel em Bissau...
MEG – Vou dizer algo sobre mim que ninguém sabe: eu também frequentei esses cafés, ocasionalmente as conversas cruzavam-se de mesa para mesa, mas o grupo em que nessa altura eu estava inserida era o dos jogadores de poker…
NS – De poker...?! Mas também se entregava a essa salutar disciplina (dizem que é muito boa para o bestunto, que desenvolve a agilidade mental e a sagacidade – é, segundo parece, o jogo preferido dos agentes secretos e outra malta de cloak and dagger) ou era só membro platónico, de conversar?
MEG - Não sendo jogadora, joguei uma vez ou duas... Não tenho perfil para o poker, não aguento a máscara do bluff... Eram só as más companhias da época...
NS - No MonteCarlo também havia um grupo, que geralmente chegava bastante tarde, que às vezes cumprimentava o Dácio (e a quem ele cumprimentava... vi-o uma noite, a um deles, cravar-lhe um par de notinhas) que eram gente das cartas ou do jogo por extenso. Recordo-me dum, pequenito e muito aprumado, de sua graça ou de seu anexim Feijão. Elegante, parecia o Peter Lorre... E dum Cabeça de Vaca, este devia ser mesmo anexim a não ser que tivesse ascendencia espanhola... um encorpado e parece que dado às artes da porrada, que se queixava ao Virgílio, com amargura, porque andava em maré de azar... Tempos curiosos!
MEG – Mundo machista, em que o homem precisava de demonstrar que era homem, de um lado e do outro, apesar da revolução cultural… Discorda?
NS – Nem por sombras! Sei do que fala... Escritores, artistas, malta do pensamento presumivelmente – mas alguns uns belos cavalões alfacinhas. Ontem como hoje, infelizmente.
Olhe, até uma vez tive que fazer o meu tirocínio como tipo varonil numa rua adjacente: um comparsa eventual que me começou a xingar, alentejano práqui... magano práli... Creio que se especializara em derribar o oponente com uma súbita cabeçada. Mas eu estava prevenido e como andara no pugilismo, resolvi a questão expeditamente. Adiante!
MEG – O Nicolau assistiu à cena em que o Herberto Helder e o Luiz Pacheco se pegaram à pancada, no MonteCarlo? Uma guerra em que também eu andei metida… Alguém fez uma reedição pirata de um livro do Herberto, na Contraponto, editora do Luiz Pacheco, e pôs-lhe em prefácio um texto meu que tinha saído no Diário Popular. Devia ser “O corpo O luxo a Obra”, lembro-me de que o meu ensaio tinha sido impresso em papel de seda amarelo… Depois o Vítor Silva Tavares, da & etc., editora original, ficou furioso, o Herberto, ainda mais, mas eu nem tinha sido consultada…
NS – Ná, não assisti a essa festarola – foi na época, decerto, em que eu já empregado na meteorologia como ajudante-de-observador na Estação Meteorológica do Atalaião (foi a única profissão que de facto tive, o resto foram eventualidades de cidadão luso), ia a Lisboa já só em fins de semana, de quinze em quinze dias, ou assim. Tenho vagas referências desse vigoroso combate... que não deve a meu ver ter tido consequencias graves, vencedor nem vencido (a esquelética robustez do Pacheco estava mais vocacionada para fastos menos marciais... e o Herberto sempre me pareceu pessoa deveras pacífica). Bom, mas na Lisboa provinciana da época deve ter sido um pratinho...
MEG – Como via o Herberto nessa época, Nicolau? Como o lê agora?
NS – Quando o conheci - naquela noite que conferia a carta que escrevêramos ao Pacheco (só porque soubéramos onde o poderíamos apanhar, o nosso fito era contactar o Grupo da Grifo) endereçada à Ed. Estampa, onde HH trabalhava e por isso lha entregou – impressionou-me o seu aspecto simultaneamente austero e, afinal, muito cordial e... digo-o marcadamente... solidário e mesmo bondoso. Bondoso, sim. Debaixo daquele ar talhado a granito, que umas barbas à Zeus grego acentuavam, eu sentia uma sensibilidade poderosa e um pouco sonhadora, uma discreta limpeza de caracter que muito me agradava e comprazia. Tive, com outros confrades /convivas mais lidação... mas isso foram coisas da vida vidinha, apenas.
A última vez que o vi e contactei, foi num outro café, anos depois daqueles tempos (e já há décadas). A saudação que me dirigiu ao cumprimentá-lo revelou genuíno gosto, senti-o: ”Você por aqui?! Está mais gordo!”, disse com uma bacaulhauzada. “E você está mais magro", revidei eu com certa maldade, pois isso de nos atribuírem mais uns quilitos... faz um pouco de mossa, saudosa dos tempos da grande elegância. “Mais magro? Pois ainda bem!”, respondeu logo mas sem azedume, inteligente como é percebera de imediato a minha leve ferroada de esgrimista sem emenda...!
Trocámos mais umas palavras, disse-lhe ao que viera... e até à próxima (que, mesmo só em evocação, durou até hoje).
Como escritor, senti sempre nele uma profundidade e uma execução de gran hacedor, de fabbro de primeira água, ainda que eu seja mais sensível a, em detrimento de outros, certos aspectos da sua obra que, aqui o digo com frontalidade, considero que alguns festejam por terem a pontaria desfocada. Ou por bem lhes convir ao discurso próprio, creio que me faço entender...
Como aquele vate proto-neo realista que, acho que sem medir – na sua eventual candidez de espírito, dou-lhe o benefício da dúvida – a jaculatória, disse algures e cito de memória que “a Herberto tudo se perdoa”. Mas perdoa o quê? Ter um mundo que pela sua densidade, pelos continentes de horror e maravilha que criou, é dos mais significativos da poesia europeia contemporânea? Digo-o insuspeitamente, creio, pois a minha incursão, seja de autor seja de leitor encartado, tem sido mais por outros universos que não o seu. O seu livro – e não falo agora noutras obras - “Apresentação do rosto” é uma obra surpreendente, singular e uma das minhas preferidas. Uma obra seminal.
MEG - O autor proíbe às pessoas que leiam esse livro... Como se fosse possível retirar das bibliotecas o que lá está e proibir os investigadores de fazerem o seu trabalho. Os piores textos dele, como um poema "Regresso", publicado na revista Búzio, em 1956, só para mencionar algo que fotocopiei ontem na Biblioteca Nacional, os piores textos dele têm valor, porque prestam muita informação. Engraçado, ele publicou ali dois poemas. O "Regresso" regressou ao útero, acho que foi totalmente riscado do mapa. O outro é o primeiro da série "Fonte", e sobreviveu quase sem emenda até aos dias de hoje. Ora veja a versão originária:
Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.
Ah, ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.
Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.
Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.
Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.
1953
NS - Que delícia de poema. Está, concordo plenamente, como se tivesse sido feito mesmo agora. Que beleza, que quadro de comovente alegria e sugestão nos oferta! Li recentemente alguns poemas, pois não consegui mais, do seu último livro: uma obra notável, em que a parte velada que toda a grande obra possui e sem a qual não sobrevive, subitamente se ilumina com descobertas fulgurantes e duma justeza a toda a prova.
Realista e surrealista, ela mostra quem é o Autor duma maneira insofismável. |
Nicolau Saião –
Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista,
actor-declamador e artista plástico.
Participou em
mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália,
Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter
exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris,
Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi,
Sevilha, etc.
Em 1992 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio
Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor
ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro
(1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O
desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a
sair).
No Brasil foi
editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e
plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a
Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique
(2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro
cantos”(antologia).
Fez para a “Black
Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de
Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou,
o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana
“Bichos” (2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na
surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na
Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.
Tem colaborado em
espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto),
“Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”,
Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu),
“Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”,
“Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”,
“Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de
Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”,
“Laboratório de poéticas”(Brasil)...
Prefaciou os livros
“Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas”
de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários”
de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).
Nos anos 90
orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no
“Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”,
suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O
Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.
Organizou, com
Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o
Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art
“O futebol” (1995).
Concebeu,
realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na
Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de
poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no
álbum “Canciones lusitanas”.
Até se aposentar
em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos
José Régio, na dependência do município de Portalegre.
É membro
honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município
da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e,
em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de
actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de
Mérito Municipal. |
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