NICOLAU SAIÃO...

Do Teatro como uma das Belas Artes

Este ano não há Carnaval.

Ou antes, texto de Carnaval.

Por outras palavras: como eventualmente os de poderosa memória recordarão, todos os anos, de há meia-dúzia a esta parte, escrevo um texto cruel e simultaneamente amorável (estranham os qualificativos? que queriam? que eu dissesse que eram textos sem tempêro? era o que faltava...), que faz as eventuais delícias (?) dos que lhes colocam os lúzios em riba nos diversos areópagos interactivos e papelactivos onde espanejo o meu talento às massas.

Mas este ano há a crise.
Gelou-se nos beiços a boa disposição.

Assim sendo, e em vista do dramático da hora presente, optei por algo mais taciturno - sem deixar contudo de ser apelativo e como que à guisa de "proveito e exemplo" de um Esopo, um La Fontaine, um LePrince Beaumont...

Para uma leitura de inimigos fiéis da crise carnavalesca, aqui vos deixo com uma vénia razoavelmente circunspecta o texto que segue.
O boneco adjunto é para iluminar a vossa críptica olhadela.
Bom Entrudo!

Carnaval em crise

As fraudes literárias

1. Neste caso teatro de sombras, de silhuetas difusas, de hipóteses... De coisas muito reais deliberadamente colocadas sob o signo da aparente brincadeira que afinal tem a ver com os equívocos da literatura e das ainda mais equívocas circunstâncias circenses que por vezes lhe andam em torno.

Mas eu explico-me já.

De há uns tempos a esta parte, principalmente depois de haver sido “caçada” uma conhecida e talentosa plagiadora, tem sido razoavelmente falada no milieu nacional a questão das fraudes literárias. Das quais duas - se lhes podemos chamar fraudes - ficaram famosas no século que há 8 anos se finou. Refiro-me, como os de melhor memória terão já percebido, aos affaires de "A caça espiritual" (Rimbaud) e de "Gros Calin" – O lambe-botas, (Romain Gary/Emile Ajar).

Já vamos dar-lhes uma rápida olhadela. Mas importará, em jeito de leve rol, referir que as chamadas fraudes se dividem em vários grupos, a saber: o plágio puro e simples (que tem sido o mais praticado muros adentro); o livro escrito com questionável qualidade mas valorizado por um “nome” de prestígio já a fazer tijolo; o livro de qualidade que todavia o autor nunca escreveu; o livro de qualidade, de facto escrito por um autor de renome mas atribuído a um desconhecido e que antes de ser premiadíssimo vários editores espertalhaços não agarraram com as quatro mãos. Ainda, numa estância subsidiária, o livro que simplesmente não existe (apenas composto por maravilhosos fragmentos bem artilhados) e o livro convincente mas criado de cabo a rabo com o único intuito de mostrar os limites do que se conhece sobre uma personalidade histórica (e há alguns bastante célebres: sobre Napoleão, Rasputine, Erskine Caldwell...).

Falemos no caso do falso Rimbaud.

Certo dia, os eruditos académicos Maurice Saillet e Pascal Pia (que já havia editado falsos Baudelaires, Pierre Louys e Apollinaires...) disseram ao mundo que o arquifamoso e perdido "A caça espiritual" estava nas suas mãos. Começara a grande tourada...

Imediatamente desmascarado como falso por André Breton, que se baseara apenas no conhecimento interior da obra rimbaldiana, a titarada arrastou pelos bas-fonds da ignorância, da jactância, da sobranceria académica e da tolice literata muitos dos "trutas" das letras francesas mais armados em arco. Afinal, a deliciosa brincadeira fora pensada e executada por dois actores/estudantes que tinham resolvido dar uma lição aos emproados.

Curiosamente, diz-nos um comentador do caso que apesar das evidentes provas dadas de caducidade mental e societária, os génios da crítica em causa continuaram a dispor de respeitabilidade, ainda que a sua credibilidade tivesse ficado muito abalada nos meios menos atoleimados.

Ou seja: o que por vezes parece contar (e por cá há maviosos exemplos) não é de facto nem o talento nem a seriedade estudiosa mas a classe de poder onde os pássaros bisnaus se incrustam.

2. Em 1973 a editora "Gallimard" recebeu um inédito intitulado "Gros câlin" (O lambe-botas), relato prenhe de sustância, força, pundonor e novidade de escrita. Intimidada, porque o texto era de facto inovador e ia contra a corrente dos romances que a época e as vendas em montra festejavam, a publicação foi recusada.

Dias mais tarde é o "Mercure de France" que recebe o dactiloscrito. A sua responsável, Simone também de apelido Gallimard, pesados os prós e contras dá-o a lume. Olhado a princípio com certa incomodidade pela crítica, a pouco e pouco a obra impõe-se. Começa a sua marcha triunfal e é proposta para o prémio Renaudot. O nome do seu autor, Emile Ajar, por ser desconhecido começa a suspeitar-se que cobre um autor de gabarito: para uns, Raymond Queneau; para outros, Louis Aragon. E outros mais...

Mas um dia, o dia do lançamento de um volume depois célebre, "La vie devant soi", o mistério descripta-se: o seu autor Emile Ajar era o nome com que Paul Pavlovitch, o sobrinho do já galardoado e consagrado escritor Romain Gary (autor, por exemplo, de "Racines du ciel", "La promesse de l'aube" de "Lady L") dera a lume o livro que, logo a seguir, receberia o prémio Goncourt, venderia mais de um milhão de cópias e seria traduzido em 23 línguas...

Paul Pavlovitch torna-se uma coqueluche do "tout Paris": repórteres seguem-no de Monte Carlo até à Côte d'Azur, é visto nas festas e nos bares de luxo em companhia de belíssimas actrizes e meninas finas do "demi-monde". Um lindo e saudável forrobodó que não desagradaria, suponho, a se calhar mais de metade dos austeros romancistas lusos...

No princípio de 79 outro livro de Ajar vem à luz: o belíssimo "L'angoisse du roi Salomon", novo êxito de criar bicho. E é então que em Março outro escrito da autoria de Romain Gary, "Vie e mort d'Emile Ajar" revela o imbróglio: os livros eram produto da sua pena, o sobrinho fôra apenas o actor escolhido para esta partida aos literatos – partida tanto mais gostosa se nos lembrarmos que o Goncourt não se pode atribuir/receber duas vezes...

Ou seja: então como resolver a bambochata? E os gabirús da literatice desesperavam!

Na sequência deste seu último livro, pois logo a seguir, profundamente ferido pela morte de sua mulher e amada, a célebre actriz Jean Seberg, Gary suicidava-se - deixara um bilhetinho irónico colado na testa:"Diverti-me a valer! Até à vista e obrigado...".

Sem ser só por isto - mas também por isto, por esta manifestação de excelente senso de humor e de alto talento que a passagem dos anos não crestou - sugerimos vivamente, a quem porventura os não conheça, a leitura dos livros de Romain Gary. É um dos que, a par de Marcel Scipion, Jean Husson, Philip Claudel e Jacques Borel (ou seja, dos chamados “descentrados” das letras gaulesas) valem muito a pena ser lidos – com os olhos, com as orelhas, com a ponta da alma.

E com um leve risinho absolutamente colorido…

ns

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.

  Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc. 

   Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).  

  No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).     

  Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).

  Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.

  Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),  “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil)...

 Prefaciou os livros “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários” de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).

   Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.

  Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).

   Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.

  Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.

     É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.