NICOLAU SAIÃO
Às vezes chegam cartas

Maria Estela

Cá estou de novo no Alentejo – que fica no extremo sudeste de Portugal, como é sabido -  aonde cheguei ontem sob um intensíssimo frio que mais me fez sentir o contraste com o calor natural que nesta época do ano envolve Fortaleza, o Ceará e o Brasil por extenso.

Refiro-me agora ao calor do tempo e do espaço, não ao do ambiente pessoal e humano. Esse pôde a Maria Estela senti-lo, como eu o senti, como todos os participantes o sentiram – fôssem de Quito ou de Caracas, de Madrid, de Bogotá ou da Cidade do México...

José do Carmo Francisco, Joana Ruas (atrás dele), Nicolau Saião e Rosa Alice Branco, antes da sessão de leituras que lhes coube, no Centro de Convenções de Fortaleza

Creio não me enganar, nem exagerar – como exilado que sou e de asa meio-ferida que ando – se disser que o clima de cordial fraternidade que pude sentir naquele hotel que por dias nos foi lugar de acolhimento, e nos entrepostos de bom tamanho onde decorreu fisicamente a Bienal, me gratificou, me espantou e finalmente me comoveu um bocado, pois fomos tratados com apreço e mesmo estima desde o princípio até ao fim.

Poderá a Maria Estela, que tem experiência destes eventos no estrangeiro, dizer com alguma surpresa ao lusitano/alentejano que sou: ”Mas é habitual ser assim, valha-o Deus!”. De acordo. Mas o que a minha experiência me diz, daquilo em que tenho participado dentro de portas, é que lá pelo último dia, perceptivelmente, se começa a sentir um ambiente estilo “já debitaste tua parlenga, agora vai pela sombra e adeusinho...”. Creio que me faço entender.

Não é preciso recordar-lhe a estruturação competente – e o Curador geral decerto se congratulou - que se sentia naqueles enormes salões, nas áreas e jardins de acesso, nos lugares circundantes. Na organização dos diversos lugares de palestra, de colóquio, de debate, de repouso. Até na própria forma como o transporte dos participantes foi congeminado. Coisas simples, está de ver, mas que têm uma importancia que não deve subalternizar-se.

 A presença das muitas centenas de milhares de visitantes sentia-se fluir de maneira vivaz e interessada. Talvez seja por ingenuidade da minha visão, mas nas deambulações que tive ocasião de efectuar, nos minutos em que me pude “escapulir” das acções em que participei ou a que assisti, aliás com muito gosto, fiquei com a sensação de que havia nas pessoas – crianças, adolescentes, adultos de várias idades – um genuíno interesse pela leitura, pela presença física dos livros, do eventual saber e da eventual maravilha que neles reside e que deles parte. E aquele salão da literatura de cordel, Maria Estela, com centenas e centenas de títulos mesclando a imaginação e a proverbial vivacidade de um povo pronto para todas as viagens como dizia Ungaretti e que, sim senhora, merece um futuro de luminosidade a construir, como luminosas são as praias de Fortaleza!

A literatura de cordel: centenas de títulos, coloridos e gritantes

Termino epigrafando – em jeito de relembrança aqui entre nós – a comunicabilidade que se estabeleceu entre os confrades que ali iam efectuar seus trabalhos específicos: era boa, era espontânea, era verdadeira. Funcionava como uma leve cooptação. Nos locais das sessões, bem como naquela sala de repastos, no hotel que nos serviu de guarida, radicaram-se momentos de estima fraternal que, para além de tudo, nos garantiram a ideia, que creio apropriada, de que gente diversa, de diversa formação e nacionalidades, podem sentir um leve ou mais marcado frémito de amizade entre seres que passam ao mesmo tempo pelo tempo da Terra. E certos nomes e rostos e vozes ficaram, ficam em mim: o boliviano Gabriel, a quem por ironia amiga  eu chamava “anjo gabriel” em vista da sua permanente boa-disposição e simpatia humana; o mexicano Eduardo, cavalheiro-poeta bem digno dos velhos tempos, como dizia Eugène Canseliet; o poeta José Santiago, que eu lia há tanto tempo e ali achei em pessoa de ser bem humano; e tantos, tantos outros e outras que não refiro aqui para não ser redundante e eventualmente maçador...

E pois cá estou de novo no país e na província transtagana, satisfeito mas inquieto. Pois logo que saí do aeroporto e entrei num cafézito para uma bica retemperadora, olhei e vi que, na televisão... Mas cala-te boca, que não vou agora, ainda que ao de leve, linguajar sobre tristezas e caquexias nacionais!

O triplo beijinho de estima do
n.

Raimundo Gadelha, editor de portugueses na coleção Ponte Velha (Escrituras/ São Paulo),
Nicolau Saião e Joana Ruas, durante a 8ª Bienal

8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará

Nicolau Saião. Nascido em 1946 em Monforte do Alentejo (Portalegre). Poeta, pintor, publicista e actor/declamador. Tem colaboração diversa em revistas e publicações como "águas furtadas", "DiVersos", "Bíblia", "Bicicleta", "Elvas-Caia", "Abril em Maio", "Saudade", "365", "Os arquivos de Renato Suttana", "Imagoluce", "Judo e Poesia", “Colédoco”... Autor de "Os objectos inquietantes", "Flauta de Pan", "Os olhares perdidos" (poesia),"Passagem de nível" (teatro), "Os labirintos do real - relance sobre a literatura policial" . É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Até se aposentar recentemente, foi o responsável pelo "Centro de Estudos José Régio"(CMP). Vive em Portalegre.