De entre as largas
dezenas de livros que degustei este ano, no meio das centenas que
ficaram por ler e apenas catrapisquei em diagonal e se quedaram à espera
de oportunidade – nada mais que por acaso, pois o leitor intemerato é,
creio eu, uma espécie humana vivendo um pouco entre o sonho e a
realidade ocasional - as obras que gostarei de epigrafar são de recorte
muito diverso.
1. A primeira, “La
ciudad sin tiempo” (assim no original, pois que eu saiba não
teve tradução em português) de Enrique Moriel, aliás Francisco González
Ledesma (Poble Sec, Barcelona, 1927), aliás o conhecidíssimo e algo
mítico Silver Kane doutros espaços de escrita, é um romance torrencial e
fundacional, uma estória plasmada através dos séculos que nos arrasta,
nos surpreende e nos inquieta da primeira à última página.
Simultaneamente
tenebrosa e encantatória, a sua publicação foi como um soco em cheio no
imaginário catalão e no (in)consciente colectivo espanhol, que aliás
correspondeu entusiasticamente catapultando este romance seminal para o
primeiro posto dos mais comprados (e mais lidos, o que nem sempre é o
mesmo...) do tradicionalmente arguto leitor espanhol.
Livro
perturbador (não aludo propositadamente ao enredo, pois é um romance de
enigma...) tenho a esperança de que um editor brasileiro ao mesmo tempo
competente e exigente - sei que os há em terras de Santa Cruz! - o
apanhe com as sete mãos e lhe possibilite viagem triunfal, pois é uma
das reais obras-primas ultimamente saídas no espaço ibérico.
“Yo leo
hasta los papeles del suelo”, disse em entrevista a Juan Pardo este
escritor que durante vários anos se ocultou sob o pseudónimo agora
revelado. E dele disse Hermes Cerezo, a encerrar uma evocação justamente
emocionada que lhe fez no maior jornal de Barcelona: “Hoy en día, las
novelas de González Ledesma son difícilmente localizables. Espero que
alguien subsane esta ausencia y que no ocurra como con Gironella, Joseph
Roth, Sándor Marai”.
Por esta
confraria citada se verifica e se pode aferir desde logo a qualidade de
Moriel.
2. A segunda, obra em 3
tomos que adquirira há um par de anos, só há uns meses a pude percorrer
e finalizar com a atenção e o encanto que merece a qualquer um que não
tenha perdido a frescura de saber olhar “o que, como dizia
Kipling, se oculta para lá dos montes”.
Trata-se de “A
volta ao mundo de um novelista” do grande Vicente Blasco Ibañez.
Sim, o de “Os quatro cavaleiros do Apocalipse“, de “Sangue e
arena”, de “A catedral” e tantos outros com
que, de juntura com o seu devotado amigo e pintor valenciano Joaquin
Sorolla, encheu a sua época de verticalidade e de alto talento.
A mais bela
reflexão sobre “a viagem” não a fez portanto o tal político luso
avis rara que deu duas vezes a volta ao planeta sem sair do
gabinete e recebeu, por tal feito, os correspondentes emolumentos... Nem
o tal escritor de sucesso que faz viagens de propósito para depois
escrever volumes que os interessados e os artolas irão consumir
com ripanso. Nem sequer o estimável Xavier de Maistre, com o seu “Voyage
au tour de ma chambre” que nos compraz e nos excita pela evidente
convicção e o eficaz discurso literário.
De facto, quem
me parece ter feito a tal superlativa reflexão que em 10 páginas
iniciais arruma de vez a questão, foi mesmo este autor que, nascido em
Valencia, por obra e graça da sua acção em prol do seu povo teve de se
exilar vindo a morrer em Menton, o belo jardim dilecto nas doces terras
da Provença.
O livro foi
publicado em Espanha, na França, nos E.U.A. faz este mês precisamente 85
anos. É pois um livro antigo – como se tivesse sido escrito mesmo agora.
Leiam as páginas sobre Nova Iorque, sobre a China, sobre as ilhas
perdidas do Pacífico e depois venham falar comigo. Sujeito de razão e
coração este Ibañez e ainda por cima um democrata de antes quebrar que
torcer.
Recomenda-se
aos aventureiros/as com estaleca e aos muito adultos – ou seja, a todos
os que souberam conservar o seu vibrante coração de adolescente sem
remorsos.
3. Por último quero destacar
a obra “Almas cinzentas” de
Philippe Claudel (Dombasle-sur-Meurthe, na Lorena, 1962) , que foi
Prémio Renaudot de 2003. Este autor, que no mesmo ano viu o seu livro “Les
petits mécaniques” galardoado com o Prémio Goncourt para novela, faz
parte do brilhante grupo de romancistas e novelistas que desde os fins
da última década do século transacto vêm dando um cariz novo à ficção
francesa – que extraíra no meio-século as suas melhores galas de
obras à semelhança de “A semana santa” de Aragon ou “Adoração”
de Jacques Borel - nos seus embates com o pensamento de uma sociedade
que perdeu em grande parte a certeza de que as pessoas de bem eram
garantes de uma cidadania sem esqueletos escondidos. Reflexão sobre o
poder das personalidades tradicionais (juizes, sacerdotes, militares de
topo), “Almas cinzentas” é também uma incursão pelo universo da
culpa: a culpa de se ser despossuído, fraco e imbele, mas também de se
ser humano, demasiado humano num tempo esgotado, onde as sombras
desfilam sem cor e sem alma excepto a do cinzento que lhes é próprio.
Resta
acrescentar que Philippe Claudel, cujo universo de mágoas e de crimes é
paralelo, embora lhe esteja nos antípodas, ao do mundo descrito pelo seu
famoso homónimo dos anos trinta, enveredou nos tempos mais chegados pela
realização cinematográfica, o que tem sido aliás comum a alguns dos mais
destacados jovens novelistas franco-britânicos em actividade.
Estes foram apenas 3 livros.
Correspondendo a 3 homens. Neste caso dar relevo a tal facto não é
dispiciendo. Dito isto, cumpre assinalar que, porque um rol é um rol,
ficaram de fora depois de uma meditação compenetrada obras como “Alguns
gostam de poesia” de Milosz e Symborska, “O doutor Gion” de
Hans Carossa, “Musk” de Percy Kemp, o excitante conjunto de
entrevistas “La edad de oro” de Vicente Molina Foix ou “Escritura
conquistada” de Floriano Martins, os “Poesia vertical” de
Juarroz e “O movimento das coisas” de Gérard de Cortanze ou,
the last but not the least, o monumental ensaio “O século dos
intelectuais” de Michel Winock.
Mas isso seria outra (pequena)
história...
Atalaião, Dezembro de 08
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