NICOLAU SAIÃO

Três livros, três homens

  “Ler é sempre reler um pouco” 
- Fernando Batalha

De entre as largas dezenas de livros que degustei este ano, no meio das centenas que ficaram por ler e apenas catrapisquei em diagonal e se quedaram à espera de oportunidade – nada mais que por acaso, pois o leitor intemerato é, creio eu, uma espécie humana vivendo um pouco entre o sonho e a realidade ocasional - as obras que gostarei de epigrafar são de recorte muito diverso. 

 1.  A primeira, “La ciudad sin tiempo” (assim no original, pois que eu saiba não teve tradução em português) de Enrique Moriel, aliás Francisco González Ledesma (Poble Sec, Barcelona, 1927), aliás o conhecidíssimo e algo mítico Silver Kane doutros espaços de escrita, é um romance torrencial e fundacional, uma estória plasmada através dos séculos que nos arrasta, nos surpreende e nos inquieta da primeira à última página.

Simultaneamente tenebrosa e encantatória, a sua publicação foi como um soco em cheio no imaginário catalão e no (in)consciente colectivo espanhol, que aliás correspondeu entusiasticamente catapultando este  romance seminal para o primeiro posto dos mais comprados (e mais lidos, o que nem sempre é o mesmo...) do tradicionalmente arguto leitor espanhol.

Livro perturbador (não aludo propositadamente ao enredo, pois é um romance de enigma...) tenho a esperança de que um editor brasileiro ao mesmo tempo competente e exigente - sei que os há em terras de Santa Cruz! - o apanhe com as sete mãos e lhe possibilite viagem triunfal, pois é uma das reais obras-primas ultimamente saídas no espaço ibérico.

Yo leo hasta los papeles del suelo”, disse em entrevista a Juan Pardo este escritor que durante vários anos se ocultou sob o pseudónimo agora revelado. E dele disse Hermes Cerezo, a encerrar uma evocação justamente emocionada que lhe fez no maior jornal de Barcelona: “Hoy en día, las novelas de González Ledesma son difícilmente localizables. Espero que alguien subsane esta ausencia y que no ocurra como con Gironella, Joseph Roth, Sándor Marai”.

Por esta confraria citada se verifica e se pode aferir desde logo a qualidade de Moriel.

2.  A segunda, obra em 3 tomos que adquirira há um par de anos, só há uns meses a pude percorrer e  finalizar com a atenção e o encanto que merece a qualquer um que não tenha perdido a frescura de saber olhar “o que, como dizia Kipling, se oculta para lá dos montes”.

Trata-se de “A volta ao mundo de um novelista” do grande Vicente Blasco Ibañez. Sim, o de “Os quatro cavaleiros do Apocalipse“, de “Sangue e arena”, de “A catedral” e tantos outros com que, de juntura com o seu devotado amigo e pintor valenciano Joaquin Sorolla, encheu a sua época de verticalidade e de alto talento.

A mais bela reflexão sobre “a viagem” não a fez portanto o tal político luso avis rara que deu duas vezes a volta ao planeta sem sair do gabinete e recebeu, por tal feito, os correspondentes emolumentos... Nem o tal escritor de sucesso que faz viagens de propósito para depois escrever volumes que os interessados e os artolas irão consumir com ripanso. Nem sequer o estimável Xavier de Maistre, com o seu “Voyage au tour de ma chambre” que nos compraz e nos excita pela evidente convicção e o eficaz discurso literário.

De facto, quem me parece ter feito a tal superlativa reflexão que em 10 páginas iniciais arruma de vez a questão, foi mesmo este autor que, nascido em Valencia, por obra e graça da sua acção em prol do seu povo teve de se exilar vindo a morrer em Menton, o belo jardim dilecto nas doces terras da Provença.

O livro foi publicado em Espanha, na França, nos E.U.A. faz este mês precisamente 85 anos. É pois um livro antigo – como se tivesse sido escrito mesmo agora. Leiam as páginas sobre Nova Iorque, sobre a China, sobre as ilhas perdidas do Pacífico e depois venham falar comigo. Sujeito de razão e coração este Ibañez e ainda por cima um democrata de antes quebrar que torcer.

Recomenda-se aos aventureiros/as com estaleca e aos muito adultos – ou seja, a todos os que souberam conservar o seu vibrante coração de adolescente sem remorsos.

3. Por último quero destacar a obra “Almas cinzentas” de Philippe Claudel (Dombasle-sur-Meurthe, na Lorena, 1962) , que foi Prémio Renaudot de 2003. Este autor, que no mesmo ano viu o seu livro “Les petits mécaniques” galardoado com o Prémio Goncourt para novela, faz parte do brilhante grupo de romancistas e novelistas que desde os fins da última década do século transacto vêm dando um cariz novo à ficção francesa – que extraíra no meio-século as suas melhores galas de     obras à semelhança de “A semana santa” de Aragon ou “Adoração” de Jacques Borel - nos seus embates com o pensamento de uma sociedade que perdeu em grande parte a certeza de que as pessoas de bem eram garantes de uma cidadania sem esqueletos escondidos. Reflexão sobre o poder das personalidades tradicionais (juizes, sacerdotes, militares de topo), “Almas cinzentas” é também uma incursão pelo universo da culpa: a culpa de se ser despossuído, fraco e imbele, mas também de se ser humano, demasiado humano num tempo esgotado, onde as sombras desfilam sem cor e sem alma excepto a do cinzento que lhes é próprio.

Resta acrescentar que Philippe Claudel, cujo universo de mágoas e de crimes é paralelo, embora lhe esteja nos antípodas, ao do mundo descrito pelo seu famoso homónimo dos anos trinta, enveredou nos tempos mais chegados pela realização cinematográfica, o que tem sido aliás comum a alguns dos mais destacados jovens novelistas franco-britânicos em actividade.

Estes foram apenas 3 livros. Correspondendo a 3 homens. Neste caso dar relevo a tal facto não é dispiciendo. Dito isto, cumpre assinalar que, porque um rol é um rol, ficaram de fora depois de uma meditação compenetrada obras como “Alguns gostam de poesia” de Milosz e Symborska, “O doutor Gion” de Hans Carossa, “Musk” de Percy Kemp, o excitante conjunto de entrevistas “La edad de oro” de Vicente Molina Foix ou “Escritura conquistada” de Floriano Martins, os “Poesia vertical” de Juarroz e “O movimento das coisas” de Gérard de Cortanze ou, the last but not the least, o monumental ensaio “O século dos intelectuais” de Michel Winock.

Mas isso seria outra (pequena) história...

Atalaião, Dezembro de 08

ns