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NICOLAU SAIÃO |
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No falecimento de Ingmar Bergman
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Escrevo este texto de chofre, emocionado. Não é um texto de circunstancia mas sim um texto de tristeza e lamento. Assumo a alguma ingenuidade que possa trazer anexa, mas a verdade é que já não tenho – como aliás nunca tive, é bem certo – a necessidade de encenar um pequeno teatro para tornar o desgosto mais traduzível, a mágoa mais enroupável, a celebração duma perda mais demonstrável e compreensível.
A notícia apanhei-a mesmo agora, nesta vinda à Net. E reza como segue:
“O cineasta Ingmar Bergman morreu com 89 anos na sua casa na ilha sueca de Faarö (Gotland), disse hoje a filha, Eva Bergman, à agência noticiosa sueca TT.
Morreu «calma e docemente», acrescentou Eva Bergman, que não precisou as causas exactas ou a data do óbito.
Nascido a 14 de Julho de 1918 em Uppsala, a norte de Estocolmo, Ingmar Bergman realizou ao longo da sua extensa carreira mais de 40 filmes, entre os quais «Sonata de Outono» (1978) ou «Fanny e Alexandre» (1982).
O funeral será realizado na presença de amigos e da família numa data ainda por anunciar.” - ( Dos jornais interactivos )
Talvez não devesse escrever este pequeno artigo. Talvez fique mal, não seja elegante, pois hoje em dia existe de novo, da parte de certas gentes e certos sectores, a ideia comunicada pelos habituais alti-falantes de que isso é querer assumir protagonismo. (Comunicar lealmente uma dor, nós que temos o coração ao pé da boca, hoje por hoje é de novo motivo para desconfiança, para nos fazerem desconfiar). Tranquilizo-me um pouco porque, nesta Página, sei estar entre pessoas de boa-fé e boa-mente - caso contrário decerto não estimariam estar aqui)…
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Ingmar Bergman: Cena de "Morangos silvestres" |
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Lembro o autor de “Morangos silvestres” um dos meus amores cinematográficos. Esse filme, onde a questão da memória, da nostalgia quase sufocante – trespassada, todavia, por uma imarcescível alegria de viver – existe num todo que, sendo mais que harmónico é absolutamente adequado (esta é uma das minhas maneiras, contida e quase secreta, de dizer que aqui ou ali há ponta de génio) é uma incursão, a todos os títulos singularmente real e poética, pelos anos e pelas gerações que habitam o mundo do Homem, os seus mitos e as suas sedes de afecto, de remorso e de, digamo-lo sem timidez, verdadeira religiosidade.
Mas não só o falecimento do cineasta de gabarito, de funda apreensão das coisas e dos seres, me punge: também o do homem de teatro, o insigne autor de – entre outros mais – “O retábulo da peste”, que com “A sombra da ravina” de J.M.Synge e “O Escurial” de Michel de Ghelderode, forma a trilogia dum dos mais belos livrinhos de teatro publicados em português.
Neste dia tão quente como costumam ser frios os dias da sua Suécia natal, confesso sem pudor que me contrai o peito o pequeno sinal de uma “picola lachrima” para com aquele que, sendo luminoso como uma madrugada, soube alertar contudo os companheiros de jornada – da jornada existencial, para esta verdade: “Tem cautela…A floresta está escura e a noite aproxima-se. Tem cautela com o que dizes!”.
ns
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