Mesmo estando em Lisboa, no continente divisado seja em Loulé, Caminha ou Alpalhão, há qualquer coisa na poesia de António Cabrita – incomplacente, inventiva e com um perceptível halo de mistério (não de exotismo!) – que me comunica um cheiro, um sabor, uma ambiência que me faz sentir a presença da África onde reside.
Creio que qualquer um que ali tenha vivido ou excursionado por um considerável lapso de tempo sente esta sensação ao defrontar-se com o acervo de poemas extraídos dum dos seus sugestivos títulos, “Piripiri Suite”. Com efeito, se o seu percurso – que vai do jornalismo à realização cinematográfica, do teatro à encenação, ao ensaísmo e à crítica de diversos ramos das disciplinas artísticas – nos mostra um autor absolutamente lusitano, não é menos verdade que, tal como me sucede na leitura de Leal de Zêzere, sinto o poderoso apelo de África disseminado pelos seus poemas, ora aqui ora ali, expressa ou impressamente: o cheiro da terra e o sabor dos frutos e dos produtos de quitanda, o ritmo das emoções e dos pensamentos que rodeiam os que, estando em África, tendo conhecido nela como num encantamento jornadas e vilegiaturas, acabam por se ligar a esse continente da forma muito pessoal e peculiar que cifra o seu discurso literário.
“ É lugar que mede a eficácia das palavras ”, diz-nos ele num dos textos da obra em apreço. E, com efeito, António Cabrita põe em equação, diria em confrontação, figuras originárias - mitológicas umas, intensamente realistas ou fazendo parte dum imaginário retintamente europeu outras – do continente “lugar de partida” como lhe chamava G.A.Henty e onde cristalizaram muitos ritmos que depois se iriam difundir, mercê dos fados da História, pelas terras de Mashona, ou de Chiqwelembo, de Shaka ou de Barotse… Ou dos plainos desérticos de Namanga.
Ou seja: por todos os locais onde se cimentou a imagem que, com alguma dose de magoada ironia, Aimé Césaire, Frantz Fanon ou Fred Blanchod qualificaram de “negritude greco-latina”.
Que, note-se, este poeta desconstrói com singular, sofrida inteligência.
O apelo da terra, europeia ou africana, é contudo certificado pelo apelo da escrita: dono de uma límpida erudição a que prefiro chamar conhecimento, cultura viva e profundamente humanizada, António Cabrita faz reflectir nos seus poemas uma qualidade de discurso poético absolutamente salubre, cortada por um humor e agilidade de estilo que só aos zoilos aparecerá como agilidade extrínseca. Discretamente dramática, quando não mesmo trágica, na sua poesia percebe-se uma fundura de pensamento que toca os grandes temas universais e a forma que eles tomam ao organizarem-se num determinado espírito, num determinado autor.
Numa determinada demanda, de cariz muito próprio, complexo mas conseguido e inteiramente fundacional.
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