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NICOLAU SAIÃO
A ironia em José Régio
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“Ao lermos Dickens, é preciso ter-se um coração bem duro para não desatarmos a rir quando ele descreve a morte da pequena Nell.”
Oscar Wilde
“ - Folgo muito em ver-vos de boa saúde - disse o barão com uma vénia irrepreensível. - E vosso excelente pai...continua bem morto, não é verdade?
La Guerche deu-lhe de imediato um bofetão.
- Há mais de que rir, senhor! – cuspiu entredentes, levando a mão ao punho da espada.”
Amedée Achard
“Era um homem tão inteligente que já não servia para nada”
Lichtenberg
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Preâmbulo |
A ironia, que segundo algumas boas opiniões é prima do humor negro - ainda que, decerto, não prima carnal - e irmã colaça do riso sardónico (embora apenas por portas-travessas), sendo de igual modo vizinha da tragédia e, nos casos extremos, parente especialíssima do ridículo, funciona um pouco à guisa da famosa estalagem espanhola das novelas: só se come o que para lá se leva. E a ironia involuntária, que outros nos garantem ser uma espécie em vias de extinção, também é significativa, dando de barato que tem ao que parece muito a ver com o Destino que comanda a rota dos homens e o drama das sociedades. Neste especialíssimo caso, conviria então confrontá-la com a sua própria imagem, como num espelho em que as figuras, a figura, aparecesse invertida, com um brilho dramático nos olhos arregalados. Porque o irónico ponto que subjaz à ironia tem muito a ver com a frase terrível de António Maria Lisboa, que reza: Todo o acto premeditado ou leviano tem a sua guilhotina própria. Ou, para seguirmos Lautréamont: Ride, mas chorai ao mesmo tempo. Se não puderdes chorar pelos olhos, chorai pela boca. Se ainda assim fôr impossível, urinai. Mas advirto-vos de que um líquido qualquer é aqui necessário”.
Tal como já se disse do romancista, o indivíduo que utiliza com maior ou menor propriedade a ironia, mesmo amarga, bem vistas as coisas é alguém para o qual nem tudo está definitivamente perdido. Acreditado o seu poder apelativo, no fundo ela funciona no interior do Sistema e dos diversos sistemas em que este se revela. E tem a sua própria operacionalidade: sublinha ou salienta, por excesso ou por absurdo, uma situação limite. A não ser assim tratar-se-ia de simples desabafo. Ou, pior ainda, não passaria de mera piada menos ou mais grosseira e, se calhar, nem sequer muito perspicaz. O ironista, mesmo não sistemático, afinal de contas sente sempre que do outro lado está alguém, alguma coisa individual ou colectiva, embora de porte dúbio ou mesmo francamente duplo. O que não deixa de ser um pouco contraditório. Na verdade, esse ser e essa coisa possuirá simultaneamente uma dada deficiência de visão interior ou de entrosamento e, ao mesmo tempo, a faculdade de sentir a singularidade da proposta mais ou menos inspirada, mais ou menos cruel. Para depois – indo ao encontro do desejo impresso do seu interlocutor - se morigerar, tendo assim definitivo acesso às moradas em que oficiam os inteligentes e os deuses, com suas diversas encarnações civis. Mas será mesmo assim, sempre assim? Tenho para mim que não. Afinal, a ironia tem como alvo e como destinatário não só pessoas ou instituições mas também ou sobretudo situações, sucessos, imanências. Falemos claro: na verdade, o alvo último da ironia vem sempre a ser a circunstância final e primeira que dá origem aos números e às coisas. E que o ironista, evidentemente, entende que pelo menos se distraíu dos seus deveres de competência. Por isso é que os mantenedores das religiões reveladas (ainda que laicas ou agindo no século), muito sensatamente lá na sua deles opinião ou concepção, têm visto sempre a ironia como ataque mais ou menos velado à divindade e seus sacrais prestígios. No que lhes diz parte, de seu natural não se revestem eles sempre duma solene, majestática presença? O próprio mestre das trevas não a aprecia – ainda que o faça, digamos, por razões de “racionalidade operacional” do seu múnus peculiar: naquelas paragens, de acordo com a visão canónica, é-se mais partidário do sarcasmo gélido, da chocarrice desgarradora, que afirma evidentemente a falta de razão atribuída às obras do Arquitecto. Por outro lado, no sujeito que ironiza há igualmente com frequência, também, um céptico que vive paredes-meias, em conflito ou desassossego, com um moralista. Mas moralista de tipo especial: um operador a meio caminho entre o cínico e o afectivo melancólico. E é por isso que a ironia é na maioria dos casos como que meia-defesa, tanto mais que traz frequentemente – diria antes: presume sempre - implícita uma certa nostalgia, um certo desgosto de viver, por vezes uma evidente mágoa. Se o riso (até o riso amarelo) é próprio do homem, o auto-conhecimento e o poderoso conhecimento dos outros é mais coisa de deuses, não sendo pacífico imaginar Dionísio ou Ahura-Mazda dirigindo frases irónicas aos seus companheiros de imortalidade, ou sequer a comunicar-se com o homem mediante finas ironias. A voz dos deuses, se para aí estão virados, fala-nos com as inflexões da seriedade, da tragédia ou da absoluta iluminação. Da potestade para a criatura, na carne e no sangue - que como referiu ironicamente Woody Allen é a melhor coisinha que um tipo pode trazer dentro das veias - não se funciona senão na base de uma extrema gravidade, que não admite cenários propostos pela nossa pobre e mortal insuficiência. Neste plano, sabe-se como a Sociedade britânica (que era o deus ex-machina da época) agiu para com Wilde, que durante anos a crivou resolutamente de ironias divertidas e certeiras sem contudo se colocar fora dela. Porque o ironista, que por razões intrínsecas não se apercebe ou não quer verdadeiramente aperceber-se de que a salubridade (não falo em eficácia) implica de facto a prática do humor negro, o qual constitui efectivamente a única real defesa contra o opróbio e o negrume, é no fundo um homem de sistema, porquanto a ironia implica mesmo a assumpção do Sistema. Ele conhece bem quais as armas temíveis que se acumulam a seu lado: vê-as crescer, sente-as desenvolverem-se e propagarem-se, assiste com inquietação ao seu império - que é evidenciado em palavras e acontecimentos, em circuitos e corporações. Ele mesmo se nota frequentemente um pouco fraco, um pouco imbele, um pouco febril, sem as armas miraculosas de que qualquer indivíduo consciente sonharia dispôr para atacar com alguma hipótese de êxito os monstros sociais ou individuais que se agitam em torno. Então, percebe que urge fazer qualquer coisa de forte e de agudo que ilumine o descampado, que erga os corações: é pois assim que, por decisão própria, se chega à ironia, essa inteligência um pouco pérfida, um pouco tímida, um pouco dissimulada que já alguém um dia disse ser a capa e espada dos magoados e dos indecisos e dos que habitam um calvário particular.
A ironia – severa, argumentada, fina, magoada ou sibilina – tem por missão específica funcionar como um filtro que purga dos maus humores e dos fluidos mefíticos a mediana racionalidade que nos deve mover. É um bom remédio contra essas poções maléficas ou duvidosas que nos maculam e nos turvam o quotidiano arguto e salutar que entendemos merecer, para certeira e livremente caminharmos e falarmos. É por isso que o discurso irónico, para verdadeiramente existir, tem de se fazer no interior do circuito comum. É, portanto, sempre social e nunca associal. O que, todavia, não constitui explicação determinante para o Poder nem mesmo lhe interessa muito (a não ser para proibir ou suspeitar), uma vez que este não se move no domínio das exigências éticas mas sim no terreno ervoso da guerra surda às virtualidades mais altas do ser humano.
Mas a mais bela ironia, a mais nobre e talvez a mais legítima, a que sem qualquer sobranceria nos fala sempre do fundo dos tempos, é a que no fim, ou ao fim e ao cabo, ironicamente e quase sem se sentir ou saber, envolve a obra ou se projecta do seu todo, desse produto voluntário ou involuntário de uma vida, já definitivo e com a perfeição do que acabou para sempre e para a eternidade. É, com efeito, o dia final de Giacomo Casanova, esse grande ironista vital, recordando com amargura e enlevamento a sua infância nas ruas da Sereníssima. É Wilde, adiposo e devastado, sentado num banco de jardim em Paris, olhando melancolicamente ao entardecer – enquanto ia distribuindo miolos de pão pela passarada - os transeuntes que decerto o desconheciam, que possivelmente o ignoravam ou quando muito lhe estimariam o seu enorme talento de interrogador do fantástico.
E é Régio, que nos confia num dos seus últimos poemas publicados em livro que “o homem só quer abrir./Chegou por fim a saber/ que venha lá quem vier/ seja quem fôr/ só um dos dois pode ser/ desde que não a fingir:/ A morte, o amor.”
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“ Davam grandes passeios aos domingos”
e “Os alicerces da realidade” |
Um dos textos em que mais intensamente se sente a ironia regiana é a novela supracitada. Através de uma curta análise, não exaustiva mas apenas indicativa das linhas principais, é possível perceber de que tipo de elementos se forma a sua estrutura, uma vez que o discurso irónico – como acima acentuámos - não se realiza de uma só maneira, não assume uma única possível efectivação. É claro que a ironia de Eça é bem diversa da de Jacques Tombelle, a de Raymond Chandler pouco tem a ver com a de Gide.
De forma um pouco matreira – que a ironia serve-se quando é preciso dum certo ar jesuítico para melhor chegar ao seu alvo – a arguta escrita regiana enquanto convive com a tragédia de Rosa Maria e seus pares de jornada retrata de igual modo a cidade provinciana e cruel, beata e intempestiva, acanalhada nos seus próceres e nos seus propósitos, no seu quotidiano aparentemente rural e sereno mas, na verdade, brutal e impiedoso. Dizia Brassens que “les plus grands cons sont les petits cons” e tal certeira asserção vale inteiramente para as cidades. Mas a maior (mais dolorosa?) ironia, que vai para além do que se escreveu – tal como se dá na literatura queirosiana – é a circunstância da cidade em apreço, mau grado a passagem do tempo e dos ritmos com suposta tintagem democrática, continuar fechada, mazomba, encordoada em vivências e em gentes como quando Régio nela residiu e a descreveu. Ainda ali existem os ultramontanos aproveitadores e hipócritas, os politicões de baixo perfil, as famílas senhoris e de bom porte (ainda que um pouco ratado pelo dente hostil da vilanagem); ainda há as damas manteúdas, as mediocridades impantes, um sistema de castas arrivistas ou sedimentadas encrustado num Alentejo deflaccionado e de escassas honras onde o discurso provinciano segue sendo inculto e pretensioso, tratante e de baixo estofo. Rosa Maria pode continuar a sonhar, que muito poucos repararão. Pode nostalgicamente continuar a esperar que um dia, com um garotito pela mão, passeará para os lados do Bonfim, para os lados dos Assentos, pela estrada que vai até à Senhora da Penha. Portalegre, sem dúvida, ainda vai tendo belos passeios para serem dados, uma vez que tudo segue quase igual ao de antigamente: a estação dos combóios ainda é a uma dúzia de quilómetros e a própria frequência de passagem daqueles permanece – por obra e graça da tutela – escassa e pouco serviçal. Todavia, os “chicos paleiros” já não se apinocam no cavalicoque. Agora usam o carro de média marca e o jipão dado pela munificência dos subsídios europeus.
Vejamos como Régio, de um só golpe, define com eficiência algo discreta o tipo de hipocrisia vigente: “Em Portalegre, pelo Carnaval, estavam muito em moda tais assaltos. Consistiam no seguinte: um alegre rancho de indivíduos de ambos os sexos (e várias idades, por ter cada uma o seu papel) marcava certa noite para mais ou menos se mascarar, se dispor a dançar, a jogar o Carnaval, a comer, a beber. Nestas amáveis disposições irrompia portas a dentro de determinada família, exigindo-lhe a realização de tais intentos. Claro que a família assaltada era secretamente prevenida, o que permitia evitarem-se desagradáveis surpresas. Entrava no jogo fingindo nada saber; mas encomendava música, preparava uma ou duas salas, fornecia-se de comes-e-bebes de toda a espécie”. Esta passagem define uma situação que é esclarecida pelo que lá não está dito mas nós conhecemos: a circunstância de, para uma certa gente turiferária e inconsciente (o que aliás a novela sublinha com elegância), a vida não passar de um jogo algo pacóvio, natural nessa medida, sinistramente lógico. Ironicamente, essa gente de quem Régio nunca se viu realmente livre enquanto viveu em Portalegre, essas presenças espúrias que tantas vezes lhe estorvaram o quotidiano. Valia-lhe, felizmente, a frequentação de outras gentes mais claras e mais sabedoras. Régio, no entanto, que como ele mesmo admite aqui e ali nunca deixou de ser um provincial (que não um provinciano), lança àqueles um olhar reprovador mas não adusto – o que é característica da ironia não-socrática praticada por autores ocidentais e cristãos e com certa lhaneza de comportamento.
E no final da novela, naquela tirada desgarradora que é das mais comoventes da literatura portuguesa, a sua personagem principal vê claramente visto o buraco negro de um futuro sem contemplações. Sem contemplações? Bem, não sejamos excessivos: “Desde que principiasse a devanear, Rosa Maria aliviava. O seu terrível momento passara, por então. Só estava ainda um pouco assustada por continuar sujeita àqueles acessos. Dominá-los-ia, porém. Correu outra vez, devagarinho, a lingueta da chave; disse do corredor: - Já lá vou, tia Alice. Vê como já passou? Estou perfeitamente boa.
E voltou dentro para chapejar os olhos com água.”.
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Se “Davam grandes passeios...” é a história dum drama, “Os alicerces...” é a crónica duma caminhada para a loucura, uma viagem no interior duma tragicomédia. Silvestre, funcionário aposentado, ao passar um dia por um local da cidade - cenário construído a partir das vivências deambulatórias e residenciais do A. – tem “uma impressão estranha”. A partir daí o seu dia-a-dia transfigurar-se-á paulatinamente, tornando Silvestre incapaz para o normalizado convívio com os membros da sua comunidade. Neste conto, a meu gosto um dos melhores da produção regiana, notam-se os mecanismos do discurso irónico como que num corte transversal. Silvestre, julgado pelos padrões clínicos ou do senso comum pode de facto ser um louco (inofensivo), mas deixa-se adivinhar que a verdadeira loucura é bem outra. É, por exemplo, a loucura social, travestida de normal normalidade, que torna inaptos os Silvestres deste mundo que, por muito loucos que sejam, conseguem pelo menos ter a percepção doutros mundos, doutros espaços e doutros tempos. “Ele, ao menos, sabe que sonha. Pela certeza com que o sabe, também sabe que não pode, agora, tardar muito a acordar, - já tem demorado um pouco. Para quê atormentar-se? Qualquer dia, acorda mesmo.”, escreve-se no fim do conto, servindo este finale de Silvestre como comentário aos confrades que, feridos por destino semelhante mas não igual, de repente desencadeavam cenas chocantes, espojando-se no chão ou arrojando-se contra as paredes, ouvindo-se verdadeiros urros como de torturados, acendendo-se brigas violentas, de modo que era preciso empregar a força contra esses pobres energúmenos.(sic).
O que torna este conto significativo e definidor duma característica peculiar da ironia é que aqui e ali se salpica de trechos no género deste: ”A verdade é que ao próprio Silvestre parecia agora que nunca as suas faculdades intelectuais haviam dado tal rendimento. Como serei eu, seu obscuro biógrafo, que o contradiga?”. Neste caso é o autor que por ironia da escrita fala pela boca da criatura, melhor apetrechada para determinados entendimentos. E que é o seu alter ego evidente, sua máquina de chilrear (parafraseando Klee), sua temerosa e, no fundo, temida personificação. Régio, que para mim – que o via passar nas ruas da cidade – sempre foi uma figura de pessoalíssimo recorte, independentemente de tudo o resto era o que se usa chamar, com apreço, um tipo). Ele sabia bem que a ironia, sem ser humor, tem como numa chapa em negativo um determinado tipo de humor e, emparelhada com este, uma certa tristeza, uma certa medida ou desmedida angústia. “ Houvera beija-mão às senhoras, entre os homens os cordiais cumprimentos de indivíduos da mesma classe, ditos de espírito e, claro está, um grande à-vontade elegante, no meio do qual se esforçara Silvestre por se apagar, não vendo outra maneira de esconder as suas inibições. Aliás lhe não fora difícil: os que iam chegando encaravam-no com um pequenino choque de surpresa, que logo disfarçavam. Alguns, os mais novos, rapidissimamente o analisavam dos pés à cabeça. As damas relanceavam-lhe um breve olhar, que pareciam recolher. Apresentado ou não, Silvestre ficava de lado, via tudo isto, procurava fingir que não estava presente(...)”, escreve a dado passo. E medite-se um segundo no nome do seu herói, quase igual – e tendo o mesmo significado – ao do protagonista (Silvério) de “Os paradoxos do bem”.
Ao mundo portalegrense das personalidades conspícuas, ao universo das senhoras donas, dos senhores directores, dos senhores funcionários, senhores com princípio meio e fim, opõe o escritor a figura inacabada, em construção ou em declínio, dos silvestres, que viviam na religiosidade existencial de Régio como frutos naturais duma vida mais densa e regenerada. Mesmo que através do equívoco ou da loucura.
E quer-se, à puridade, concepção criativa mais irónica?
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Em muitas mais páginas, em muitas mais obras se poderia detectar o halo irónico. Cremos, todavia, que epigrafámos suficientemente a estrutura e a conformação da ironia regiana. Não é pois necessário que mais alongadamente – com redundância - a registemos em poemas vários, no teatro e até na crítica. Régio, que era claramente um espírito dramático, em certas ocasiões mesmo um temperamento trágico, contrapontava-lhes um saudável sentido das realidades. Sem ironia o digo – realidades. Porque, como se compreende, não é ao contemplar o trágico ou o dramático da existência que se sente o apelo temível “da corda dos desesperados” – e sim ao meditar-se, a meu ver extemporaneamente, na irrisão que alguns dizem ser a vida. Para Régio, como decerto para muitos de nós, encarada com realismo verifica-se que ela possui um envoltório de sagrado que destroça essa irrisão. Que lhe não pertence, que lhe não é própria. Que efectivamente pertence, sim, às sociedades organizadas, que a ironia - fina, sibilina ou violenta - bem sabe definir e situar.
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Arronches, Casa da Muralha |
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