Um mundo de animais fabulosos que são quotidianos e domésticos e familiares quanto baste, um universo de anjos que são pessoas vulgares, um continente de gente diversa e de situações encenadas que de repente cobram razões e têm a sua razão muito própria, a naturalidade do tempo e o inaudito que a cada momento se encontram e se completam. É possível ser livre, serve dizer: transportar a liberdade – seja de existir seja de conceber a existência desta ou daquela maneira intensa e peculiar?
O pintor diz-nos que sim. E atesta-o com os seus quadros, onde cobra realidade uma vida tumultuosa, encantada e quase miraculosa: a do seu pensamento.
O seu pensamento, sublinho.
Pois Carbajal, tendo nele toda a singularidade dos ritmos que às crianças em geral se atribuem, está longe de ser um pintor naif. Com efeito, detectam-se facilmente na sua pintura os vestígios dum conhecimento profundo tanto dos autores do Renascimento como dos modernos que o antecederam, de Cézanne a Matisse, de Beckman a Picasso, de todos os pintores que souberam excursionar tanto pela realidade como pela imaginação que cria os mundos alternativos e reconvertidos que a arte permite e proporciona. (1) Ele é mais um pintor do fantástico, daquele surrealismo onde a poesia busca um sentido de memória que lhe permita dar o retrato transfigurado – e por isso mais real – do passado que se teve e que se lembra com emoção, esse passado onde era possível encenar um futuro provável – ou antes: desejado.
Numa entrevista dada a um órgão de comunicação onde sagazmente é chamada a nossa atenção para as suas raízes hispânicas, Carbajal refere o que sempre o motivou e orienta a sua pintura: as estórias com que as crianças pontilham o dia a dia, esse dia a dia feito de coisas habituais – de idas e vindas da escola pelo “chemin des écoliers”, de objectos e móveis de uso quotidiano, de frutos e de animais, de pessoas que se vêem ao deambular pelas horas correntes; mas também os grandes medos, os grandes espantos e as grandes alegrias das descobertas de um lugar, daquilo que se aprende seja com os parentes seja com os mestres, seja mediante o nosso próprio silêncio e a nossa meditação. E a maravilha dum livro, dum filme, dum passeio, duma ida a um circo… Para além do específico bem material dum trabalho aturado.(2)
Sendo um grande colorista, ou seja, um conhecedor profundo de como um rosa se liga a um cinzento, de como um verde azeitona pode fazer sentido junto a um amarelo escuro ou um anil, Carbajal tem também um domínio exemplar do inacabado, do imperfeito e do obscuro – esses que mudam de plano no interior e no exterior do suporte e que de repente criam uma nova realidade, tão multifacetada como oportuna.
«Un soldat marche, seul, a travers la forêt. Il est minuscule, parmi les troncs des sapins immenses, serrés et compacts comme un mur. On distingue à peine un sentier étroit dans la neige.»(3). O pintor, tal como o soldado na floresta assombrada da Sabedoria Tradicional, só tem para se orientar a sua capacidade de entrega aos mundos que ele cria e que lhe permitem não desistir, rodeado que está (como todos afinal) dos perigos que a cada momento o tentam destroçar. Ou pelo menos impedir que se veja livre dos liames do hábito, do preconceito e da mesquinhez um pouco sórdida dos infernos sociais.
Com a naturalidade dos que sabem purificar o seu modus operandi, sem os dramatismos que os zoilos tentam colar-lhe na face (a arte como objecto de turismo mental…), o pintor faz com enlevo nascer o quadro, razão de quem sabe que a arte é ou deve ser um elemento próximo e ao alcance de todos os olhos que querem de facto ver.
Leia-se: que sabem maravilhar-se, isto é - entender a existência como inteira evidencia e doação dos adultos que souberam conservar o seu coração de criança.
NS
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(1) « Then of course there's all that stuff that finds it way into my head when I am working: Mexican masks, Haitian flags, randomness, urbanism, functional graphics, architectural renderings, Latin American walls, religion, tribal art and comics” . – L.C. in “Artquotes”, revista interactiva americana
(2) “Study the Masters feverishly and understand the pain and tribulations they went through to achieve perfection. Understand how to correctly price your work and appreciate the intricacies of supply and demand. Work hard at achieving professionalism. Always use the best of materials. Try to only get professionally involved with people who understand and share your vision. Spend as much time exploring the world and its cultures, while living in as many places as possible before you die. All these things should go a long way in helping the visual artist along his path, as they've helped me enormously along mine ”. - Idem
(3) Marcel Brion, in “L’art fantastique”, Col. Marabout Université – Paris 1968
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