1.
No dia 22 de Outubro de 1906 num quarto de uma casa da rua Boulegon, na cidade de Aix-en-Provence, deu-se um acontecimento penoso que a história da Arte universal registaria: contemplava pela última vez a luz azul-rosada das tardes meridionais um velho pintor que dias antes, na preocupação desgarradora de terminar uma obra sua a que dera o nome de “A cabana de Jourdan” e colhido por uma brusca tempestade, fôra acometido por uma síncope no caminho do Tholonet. Descoberto depois, inanimado, pela carroça de uma lavandaria, seria levado para os seus aposentos, persistindo em se recusar a confessar-se doente. Partiria mesmo no dia seguinte para o atelier das Lauves e, tremendo de febre, aplicaria ainda algumas pinceladas no quadro absolutamente novo, rigoroso e genial em que os acrobatas cubistas se saberiam reconhecer passados anos.
Chamada por telegrama pela prestável senhora Brémond, Hortense Fiquet, a mulher que afastadamente lhe partilhara conjugalmente os dias da existência civil, oculta a seu filho Paul o estado de Cézanne. Com efeito, como nos relata Frank Elgar, “tendo marcado uma prova na modista” e temendo ter de partir para Aix de supetão, abandonando os trapos, esconde o telegrama numa gaveta. E é aí que o descendente do autor de “A casa do enforcado” o vai achar por acaso no dia 21. “A senhora Brémond contará que, durante a sua agonia, o velho mestre olhava constantemente para a porta por onde deveria entrar o filho que ele amava”, diz-nos ainda aquele biógrafo e historiador de arte. Mas era demasiado tarde, porque para os homens como Cézanne sempre o é. Fechada com brusquidão a porta da existência, o solitário de Aix fazia desenhar no horizonte absoluto dos tempos a sua figura de persistente e enlevado interrogador da linha, da côr e do desenho interpenetrados pela subtileza de uma análise cheia de intenções, ultrapassado que fôra um temperamento peculiar caracterizado pela fobia dos contactos físicos expressos, a desconfiança ante os teóricos vazios e os copiadores, o receio de que - como ele dizia - lhe quisessem “pôr a pata em cima”.
É evidente que não comecei assim, por acaso, a minha intervenção. Se me permitem a ironia, a pintura não é inocente e os que sobre ela escrevem também não... Efectivamente, se é verdade – como queria Camus – que cada um de nós transporta em si a sua espécie própria de morte, o passamento de Cézanne é revelador. Porque, com as excepções dos contactos com Emile Bernard e Joachim Gasquet (este por razões não totalmente pictóricas) e mais esparsamente Charles Camoins e Léo Larguier, Cézanne esteve sempre só – enquanto artista e pensador adulto. Os casos do geólogo Marion e de Victor Choquet (que ele fixou num espantoso quadro datado de 1877) e de Francisco Oler, com quem acabaria por se incompatibilizar, foram tão-só acontecimentos ditados pela profunda admiração nos primeiramente aludidos, ou de desconcertante companheirismo que fatalmente teria de acabar mal.
“O isolamento, eis do que sou digno”, diria ele certa vez ao escultor Solari vendo aproximar-se a meia-idade.
No que respeita aos pintores impressionistas, com quem tantas vezes tem sido excessivamente arrolado, as suas relações eram oscilantes: profundamente admirado por Renoir, nunca teve ensejo de se dar com van Gogh, sendo todavia hoje pacífico que jamais se lhe referiu como fazendo ele “uma pintura de louco” como certa lenda maldosa persistiu em querer estabelecer; e embora fôsse bastante sensível à pintura de Manet, o dandismo do autor de “Pequeno almoço na relva” – ou mais exactamente a sua elegância e delicadeza de maneiras – afastava-o do seu modo de ser retintamente provençal. Monet, tal como Sisley, foi-lhe querido durante anos e, como pintor, dele dizia com apreço: ”De nós todos, é o melhor observador. É só olhos, mas – santo Deus – que olhos!”. Só a Pissarro e Renoir concedeu algumas vezes o privilégio de o acompanharem na pintura do mesmo tema (o motivo). Mas Pissarro foi o único pintor com quem se entendeu no mesmo plano, ainda que sem aprofundarem muito a questão. Dele disse diversas vezes que o considerava o seu único mestre, mas se escalpelizarmos levemente o assunto verificaremos facilmente que o que Cézanne algo ingenuamente punha em relevo era o facto de que as consabidas bondade e comunicabilidade do autor de “Telhados vermelhos em Pontoise” o levavam a dar-lhe conselhos de ordem prática que Cézanne, sempre distraído e desajeitado, encarava com extrema consideração. No que diz parte a Renoir, tal sucedeu numa altura em que por ocasião de uma visita que este lhe fez foi acometido por violenta pneumonia, tendo sido tratado desveladamente por Cézanne e a mãe. Durante a convalescença, para o animar, este levava-o consigo pelos lugares onde erguia o cavalete, tendo-se estabelecido durante esses dias uma atitude de simpatia e comunicabilidade que só com esforço pode passar por intimidade pictural.
Não vos cantarei, contudo, a cançoneta da fatal solidão do artista – quer esta seja por razões de alma, de coração ou apenas de feitio, pois como se sabe as experiências são absolutamente pessoais e inteiramente não trespassáveis. Um pintor pode estar muito acompanhado no cimo dos Alpes, no meio de Portalegre, nos palmeirais do Sahara ou noutros locais inóspitos, assim como pode estar em solidão profunda no centro de cidades civilizadas ou na azáfama barulhenta dum Café, rodeado de presumíveis confrades. A aventura de isso que alguns sentem como pintura é na verdade demasiado grande para se deter em limites estreitos, afáveis lugares comuns ou análises apressadas. Porque, vejamos, se trata da Pintura enquanto meio de penetração nos segredos dos deuses. E uma coisa assim não se compraz com aventuras menores tais como o safado perfume das glórias, as mutáveis famas e outras cangalhadas semelhantes – passe o vernáculo do termo – mesmo quando é o pintor, que também é um ser do quotidiano, a equivocar-se ou deslumbrar-se sobre o sentido dos acontecimentos. A pintura, no caso de homens como Cézanne (ou Matisse, ou Chagall, ou Géricault, ou Picasso ou, entre nós, Sousa-Cardoso, Alvarez ou d’Assumpção, para citar apenas alguns possíveis) é uma incursão a todos os títulos absoluta e absorvente no coração do mistério da existência e das diversas formas que esta pode tomar ao organizar-se e que são representáveis. Porque é o único meio que permite a quem nele oficia uma confrontação com a vida interior e exterior – e porque é a única possibilidade de se caminhar ao encontro da Obra, na acepção paralela subscrita por Basile Valentin, os Fulcannelli ou Einstein.
Cézanne, como provavelmente sabem, abandonava frequentemente os seus quadros nas estalagens onde se detinha para se restaurar, nas casas onde ao sabor das andanças passava um ou dois dias de repouso, não se esquivando ainda a dá-las em troca de um almoço, de um sorriso, de um gesto sincero de apreço ou admiração. Porque este homem cujo temperamento o transformava por vezes num velho urso rebarbativo, mas em cujos olhos repentinamente passava a brilhar uma luz de bondade vinda de muito longe, era levado como por um vento impetuoso e salubre por sobre as paisagens, as figuras e as naturezas-mortas a que depois comunicava uma vida mágica. “Cézanne pinta. Trabalha ao ar livre, esforçando-se por se abstrair de si mesmo, por limitar-se a pôr na tela o que o seu olhar descobre, observando a diferença de tons e de planos, tentando dominar os seus ímpetos. No meio dos rochedos, na paz infinita do mar e do céu, Cézanne pinta.”, diz-nos Henri Perruchot numa tirada digna do Mestre. E mais adiante: ”Como um rumor confuso chegam até ele as notícias da guerra. Em Sedan, no dia 2 de Setembro, Napoleão III rendeu-se ao inimigo com noventa e três mil homens. Dois dias depois, em Paris, era proclamada a República. Às dez em ponto da noite, os republicanos de Aix, invadindo a Câmara, dilaceraram as imagens do defunto regime, pronunciaram a dissolução do corpo municipal e elegeram outra vereação, de que faziam parte não só o pai de Cézanne como também os seus amigos Baille e Valebrègue e um negociante de azeite, antigo condiscípulo do pintor, Victor Leydet” que seria depois presidente do Senado. No meio destes acontecimentos, Cézanne pinta, pois. Serve dizer: conserva e cria, no meio das coisas do século, o sinal maior da vida em plenitude.
2.
Se revejo Cézanne na célebre fotografia que Emile Bernard lhe tirou em Fevereiro de 1904, que vejo eu? Um senhor alto, de barbicha branca, olhos imersos na sombra criada por um chapeirão de feltro, enrolado num capote de burel, as mãos cruzadas à altura do terceiro botão. Vem-me à memória a figura do general Lee no quadro de Donald Clayburn. Imóvel e petrificado pela objectiva, o ancião de Aix contempla o futuro enigmaticamente. Contempla-nos – entenda-se com este significado – a nós que somos seus filhos naturais. É um olhar que trespassa as épocas – não o olhar de Claude Lantier, esse falhado de sensível génio criado pela pena talentosa mas, na ocasião, bastante romba de Zola e sim o olhar do criador e do profeta cuja modéstia andava a par da sua capacidade de conhecimento, trabalho e realização. Quem nos olha não é apenas o ancião que, em Auvers-sur-Oise e em Estaque descobria que na natureza plasticamente tudo se organiza pela esfera, pelo cilindro e pelo cone, mas também o homem de espírito que respondia ao pai Solari ao ouvir que seu filho Emile notara que nas bordas das veredas de Sainte-Victoire as plantas pareciam azuis embora fôssem verdes:”Ai o maroto, que descobre aos vinte anos, só com uma olhadela, o que eu levei trinta anos a perceber!”. É também o homem a quem os ganapos de Aix, industriados pelos pais, apedrejavam discretamente nos caminhos vicinais enquanto gritavam “Vai pinta di gabi!”(Vai pintar macacos). É, ainda, o artista sobre o qual o naquela bendita altura conservador do museu da cidade, o espantoso (até no nome...) Henri Modeste Pontier, disse com vivacidade e decisão: “Enquanto eu cá estiver não entrará nestas salas um único Cézanne!”. E cumpriu a promessa. Só depois de 1926, ano em que foi Deus servido chamar Modeste para a sua beira, é que os quadros do perturbador provençal ali estacionaram com, aliás, benefícios evidentes para o turismo cultural da localidade.
Destinado à carreira sedutora de banqueiro, o jovem Paul subtrai-se tenazmente à tranquila gestão comercial de seu pai e numa bela manhã de Abril de 1861 bate energicamente à porta parisiense do seu irmão-inimigo Emile Zola, com quem na adolescência congeminara feitos e planos aventurosos. Reencontro, aliás, prenhe de equívocos: nunca o cronista dos “Rougon-Macquart” compreenderia minimamente a qualidade do autor de “O pote de grés”. Incompreensão compreensível: Zola era um descendente típico dum século dezoito filósofo e humanista, um filho característico dum século dezanove economicista e profilacticamente revolucionário, ao passo que Cézanne era já um habitante do futuro. Para atestar, mas também para nos recrearmos superiormente, ouçamo-lo por uns momentos: ”A natureza é na verdade sempre a mesma, mas da sua aparência nada fica. A nossa arte deve emprestar-lhe a sublimidade da duração. Nós devemos começar por tornar visível a sua eternidade. Que existe por detrás dos fenómenos? Nada, talvez, ou talvez tudo. Por isso eu entrelaço estas mãos que erram dispersas. Apanho por toda a parte, à direita, à esquerda, aqui, ali, esses tons de cor, essas nuances, fixo-as, combino-as umas com as outras e elas formam linhas, tornam-se objectos, rochedos, árvores, sem que eu pense em fazê-lo. Tomam volume. A minha tela entrelaça essas mãos, não vacila, é verdadeira, é densa, é plena. Mas sempre que eu tenho qualquer fraqueza, especialmente sempre que ao pintar eu penso, sempre que eu intervenho, então tudo cai por terra e se perde”. E mais adiante, correspondendo à objecção de Joachim Gasquet: “Não, eu não disse que o artista é inferior à natureza. A arte é uma harmonia paralela à natureza. O artista é igual a ela, desde que não intervenha voluntariamente, compreendamo-nos bem. Toda a sua vontade deve calar-se, ele deve calar em si todas as vozes dos preconceitos, esquecê-los, fazer imperar o silêncio, ser um eco perfeito. A natureza exterior e o que aqui se passa (diz, batendo na testa) devem interpenetrar-se para que uma vida meio-humana, meio-divina, a vida da Arte, possa durar e permanecer”.
Repare-se que estes conceitos foram formulados cerca de cinquenta anos antes de Werner Heisenberg ter estabelecido o seu princípio denominado “número quântico de estranheza” que tem a ver com o papel do observador tanto em experiências como no acontecer dos fenómenos (facto, diga-se de passagem, que os antigos adeptos da Arte Magna conheciam perfeitamente), princípio esse que abriu à maneira moderna de pensar o mundo e à física teórica rumos novos e insuspeitados; e cerca de vinte e cinco anos antes das teorias do inconsciente dessoutro grande pesquisador de continentes submersos que foi Sigmund Freud. Diz-nos Nora Mitrani em “ A razão ardente ”: “O inconsciente humano desempenha um duplo papel; através dele estabelece-se para o indivíduo a constante e útil comunicação com o plano da vida integral; por outro lado, ele é também o luxo dos sonhos milenários, das extintas cosmogonias: é o reflexo exacto do inconsciente colectivo, cujos grandes mitos se apresentam à imaginação actual do homem segundo uma forma mais ou menos disfarçada e simbólica; assim, quase todos os sonhos são, para além das mitologias pessoais do seu autor, duma arquitectura muito mais complexa e anónima; por eles realiza-se, efectivamente, a inserção do indivíduo na vida cósmica”.
Cézanne, pode dizer-se com propriedade, mediante a sua arte inseria o sonho na vida quotidiana, um sonho sem os tiques dum imaginário convencional. Ao contemplarmos, principalmente, as obras da sua última fase verificamos sem dificuldade e com extremo prazer e reconhecimento que ele dava nelas o pulsar cósmico da terra traduzido na intemporalidade de árvores, rochedos e horizontes que os conformavam.
Mas ouçamo-lo um pouco mais, que não perderemos o nosso tempo: ”O aroma azul e amargo dos pinheiros ao sol deve conjugar-se com o cheiro verde dos prados e o hálito dos rochedos do longínquo mármore dos contrafortes de Sainte Victoire. É preciso traduzir isto, mas só por cores, sem literatura. A arte, julgo eu, põe-nos num estado de graça, por meio do qual encontramos por toda a parte a emoção, como nas cores. Um dia virá em que uma simples cenoura, que um pintor viu com olhos de pintor, pode originar uma revolução”.
Façamos um breve parentesis para dizer com modesta ironia que nada podemos afirmar de concreto sobre essa simpática umbelífera bienal, que é como as enciclopédias no-la definem. Todavia, no que aos nenúfares respeita, possuimos alguns dados que nos certificam sobre o seu poder explosivo. E isto porque numa rua de Paris o autor, precisamente, dos célebres “Nenúfares” e de outros mefistofélicos estudos “sur nature”, Claude Monet, esteve um belo dia prestes a receber um severo correctivo propiciado por uma pequena multidão que respondera positivamente às sugestões marciais de dois não-apreciadores deste pintor, a quem vigorosamente acusavam de “querer fazer pouco das pessoas” e buscavam transmutar a crítica oral em algo de mais consistente.
Mas ainda no que diz respeito às relações entre Cézanne e Zola, será interessante referir que se o autor de “ A taberna ” nunca o compreendeu como pintor considerava-o muito como poeta. Apesar de, como pintor, lhe ter feito pelo menos tanto mal como Goethe a Kleist ou Schiller a Holderlin – recorde-se que a personagem central do seu romance “ A obra ” é uma caricatura, aliás errada, do amigo – jamais cessou de como poeta o ter em elevada conta: “Sim, meu caro, mais poeta que eu. O meu verso é porventura mais perfeito, mas o teu é certamente mais puro, mais comovente”, comunicava-lhe numa carta em que evocava também os anos da adolescência em que, de súcia com Baptistin Baille, faziam grandes passeios pelos campos de Aix, falando de filosofia, de literatura, de arte em geral (até se debruçavam, com conhecimentos não dispiciendos, sobre alquimia), pois tanto Zola como Cézanne eram excelentes alunos de colégio e, como corolário, indivíduos muito cultos. Como Vollard fez notar algures numa entrevista, o segundo ainda por cima tinha uma memória excepcional.
Escapulido para sempre das areias da média e grande burguesia, Cézanne mergulha decididamente à maneira dum grande banhista ou dum batiscafo subliminar na maior aventura pictórica do século dezanove. E o século pagar-lhe-á à sua maneira. Leio, com olhos sarcásticos, estas palavras de Alan Bowness, leitor de Arte do Instituto Courtauld de Londres: ”Ao contrário de Manet, Cézanne sentia o maior desprezo por toda a espécie de arte oficializada(...)Uma pintura exposta por Cézanne na montra de uma loja de Marselha exasperava de tal modo as pessoas que passavam que teve de ser retirada(...) Nos fins da década de 60 a sua temática era muito imaginativa e plena de fantasia erótica, sendo os seus quadros difíceis de vender”. Revelação a todos os títulos curiosa se nos lembrarmos que a burguesia francesa, ontem como hoje, era uma das mais pornográficas da Europa. Oitenta anos mais tarde seria Willhelm Freddie quem veria apreendidas na alfândega três das suas obras, consideradas ofensivas dos bons costumes. Estão actualmente no museu de Copenhague, pagas por muitos milhares de contos. A História tem destas discretas vinganças, ajudada marotamente pelo Tempo, esse grande crítico como lhe chamou André Gide.
Mas sejamos sérios e claros: na obra de Cézanne, na mente de Cézanne, nunca esteve presente a possibilidade de que as suas obras fôssem escandalosas. Todo ele se admirava ao contemplar as reacções de facto paranóicas – é o mínimo que se lhes pode chamar – que a visão de obras suas desencadeava. Na sua inocência e boa-fé até chegou a endereçar uma carta ao senhor de Niewerkerke, director-geral das pinturas do Império, tentando explicar-lhe a lógica da sua posição – com os piores resultados, porque o dito cavalheiro (como qualquer outro director-geral do ramo) estava a anos-luz do que fôsse o entendimento da pintura.
Isto tinha felizmente contrapartidas, embora poucas. Ao escritor Léo Larguier, admirador consciente e devotado que o frequentou no último quartel da sua vida, ofereceu ele certa vez três telas, de surpresa, com lágrimas de comoção nos olhos, ao manifestar-lhe o então jovem futuro autor de “ A vida de Nicolas Flamel” o seu subido apreço. Larguier, jubiloso, aceitou-as de imediato e conta a “pequena história” que – temendo que o Mestre, arrependido do gesto supostamente impulsivo, lhe pedisse as telas de volta – saíu da cidade por alguns dias atarantado com a sumptuosidade do presente, levando as obras para lugar calmo e recatado.
3.
Quatro anos após a chegada de Cézanne a Paris rebentou o escândalo propiciado pela “Olímpia” de Manet. Os conspícuos visitantes da Mostra, alimentados pelos Bouguereau, os Cabanel, os Gerôme a virgens envoltas em vaporosas vestimentas gregas, a graves personagens imersas em amáveis parlendas maneiristas, a sumidades trombudas apoiando-se em peanhas ou remansosamente sentadas nos cadeirões de suas inóspitas bibliotecas onde quase só entravam para posar ou ler o jornal dos debates, espantando algum ocasional visitante mais dado a leituras sérias, a paisagens onde o luar era o contraponto exacto da rigidez claro-escuro do solo, estacam subitamente e escarvam o chão da arena embasbacados ante a serena sensualidade de airosa mocetona daquela jovem donairosa e verdadeira cuja carnação palpitante de luz invadia e inundava a tela, saltava para o quotidiano do Salon onde o nosso monsieur de Niewerkerke tentava dar o tom, o timbre e o arcaboiço de espantalho letrado. “Quem é esta odalisca de ventre amarelo, modelo ignóbil apanhado não sei onde, que representa Olímpia?” bradava indignado Jules Claretie.
Hoje, em frente dos magnificentes quadros de Monet, Pissarro, Manet, Sisley, Renoir, temos dificuldade em entender tal hostilidade, que em certas alturas atingiria mesmo um ódio atordoante. Não é engraçado que a mãe de Berthe Morisot tenha numa suave manhã recebido uma carta do professor de desenho da filha em que o denodado defensor da boa pintura revelava que a menina não só se dava como também expunha com loucos perigosos? A expressão é textual e esclarece-nos de maneira eficaz sobre os hábitos mentais dos professores de desenho da época. No museu do Impressionismo, em Paris – essa Paris que posteriormente tentou por vias atónitas uma recuperação (basta dizer que todos os quadros dos triunfadores da altura estão actualmente nas caves, destinados apenas à pesquisa do “ar da época” por parte de especialistas e estudiosos) - tive de esperar não menos de dez minutos de molde a poder contemplar sem atrapalhações de maior o “Almoço na relva”, o mesmo que a imperatriz Eugénia chicoteou desdenhosamente com o pingalim para demonstrar o seu descontentamento e reprovação. Os tempos vão bem mudados.
E que dizer dos ataques movidos a Cézanne? Sem contemporizações, laboriosamente, o homem que e cito “resolvera representar a natureza e não reproduzi-la” largou amarras e deixou aos marinheiros de água-doce a navegação que lhes era própria. Um artigo de Henri Rochefort, conceituado papalvo – depois anti-dreyfusista – da escrevinhação da época que comparava Cézanne a “uma criança de mama que faz borradelas” causou a maior satisfação em Aix, tendo cerca de trezentos exemplares de “L’Intransigeant” sido metidos debaixo da porta de todos, segundo Henri Perruchot, “que de perto ou de longe manifestaram alguma simpatia por Cézanne”. Os pilares da comunidade, que aliás eram em grande parte movidos pela inveja que a enorme fortuna do pai Cézanne, Louis-Auguste, neles despertava, velavam para que o sol ensombrecesse, para que o verde desmaiasse, para que as terras vermelho-açafrão e os pinheiros agitados por uma rajada de vento ficasse para sempre no olvido ou no tubo de tinta. Mas eis que a natureza, o golfo de Marselha, os rochedos e ramarias de Bibémus, as cebolas rosadas, os castanheiros do Jas de Bouffan, os choupos de Galet, os jogadores de cartas, as planícies de Estaque, as montanhas da Provença e os caminhos de Auvers se põem a cantar nas telas, a bramir nos óleos, a bailar nas aguarelas – e tudo envolto em alegria e melancolia, cercando a nova realidade de uma vida e de um vigor prodigiosos. Não é por acaso que se diz serem os quadros de Cézanne semelhantes a baixos-relevos: com efeito, pela primeira vez na história da pintura o mundo vinha até nós assim, convocado pelo mago. Desde “A ponte de Mancy”, pintado em 1884, ao “Casebre de Jourdan”, obra que em 1906 marca o derradeiro espasmo da paleta do velho mestre, é todo um universo sólido, nítido, indestrutível que assenta pé nos séculos. O homem que levado por um frenesim criava o “Chateau Noir” e “A casa fendida” era o mesmo que fazia nascer a doçura plena do “Ramalhete com dália amarela”, o que estabelecia a cumplicidade fulgurante e a relação rigorosa entre os diferentes planos da criação abrasada no sangue e no mel das secretas correspondências plásticas entre mundo e mistério, entre análise e emoção, linha e côr – ou seja: entre as relações que o fazer exterior estabelece com a transmutação interior.
Que importa que muitos anos mais tarde, numa soirée de Paris, um intelectual de reduzida estatura – na ocorrência um jovem persa aprendiz de escritor e praticante de pedantes jaculatórias que ficou na história unicamente por esta frase idiota – tenha dito de Cézanne que este possuía “um cérebro de vendedor de fruta”? Não! As famosas maçãs de Cézanne não estavam bichadas, como Breton perspicazmente assinalou. Elas eram a representação de uma tranquila pujança solar, eram a afirmação segura de que com uma maçã, um Cupido em gesso, um cacho de uvas e uma compoteira também se faz esvoaçar o pensamento – tudo depende da força e do talento de quem pinta e do método com que se oficia. Aonde estão agora as laboriosas construções de muitos pintores festejados nas quais uma imaginação de pacotilha se expandia em girândolas que mais tinham a ver com o excesso para lançar poeira nos olhos de quem as contemplava? Desapareceram a todo o pano no mar do esquecimento piedoso. Porque, sublinho, a pintura só se justifica por si e em si, a literatura nada tem a ver com ela porquanto os campos respectivos são de índole totalmente diversa e se se interpenetram não se confundem, estão separados absolutamente pela estrutura que lhes é própria. Um quadro não é movido por temas, por um tema específico, nada o fundamenta senão a dimensão forjada por linhas, por pontos de fuga e por tonalidades confrontando-se entre si. No que respeita à imaginação, sendo esta a faculdade de re-organizar os mundos interiores e exteriores de acordo com dados novos e que o operador inventou modificando os mecanismos rotineiros, não pode confundir-se com brincadeiras estéreis ou fórmulas pretensamente novas mas relevando da esperteza e do cálculo. A imaginação, neste caso que nos ocupa, consiste em perceber-se e em dar-se a perceber mediante resultados (os quadros) que a montanha de Sainte Victoire assume contornos do paraíso reencontrado, o corpo cósmico da vida mineral e que os jogadores de cartas e o pombal de Bellevue, ancorados estreitamente numa visão livre e descomprometida do universo próprio em que vivem, ajudam a descoisificar o mundo e a lançar uma ponte entre o comunicável e o incomunicável. “Para pintar uma rosa de tal esplendor deve ter sido necessário sofrer muito”, disse ele um dia a propósito de Tintoretto.
A arte de Cézanne foi laboriosamente conseguida. Chegava a levar anos a pintar um quadro. Outras vezes, pelo contrário, demorava só alguns dias e dizia então que quase atingira a “realização”. Mas voltava ao tema uma e outra vez, do que resultava uma série de obras que permite verificar a tenacidade específica, o seu método como ele referia na gíria que lhe era própria. Era um verdadeiro pesquisador de soluções, apesar de saber - como por várias vezes concluiu – que não há solução, que no fundo a busca da solução (posto que provisória e precária) é a verdadeira solução possível.
Quando Cézanne dizia, como nos conta Emile Bernard, que viera demasiado cedo, que devido à velhice nunca conseguiria chegar “a realizar” e que outros viriam mais tarde e dariam então essa “realização”, não o fazia por irónica desconfiança das suas possibilidades, por desânimo ou mesmo por incompreensão mas sim por lucidez. Efectivamente, o que Cézanne queria exprimir era o conhecimento dos limites da pintura aos olhos de um ser sedento de absoluto. Os quadros, as esculturas, os poemas, as novelas (dos verdadeiros criadores e não dos epígonos cínicos ou dos habilidosos) são tão-só sinais de fogo com que o Homem assinala a sua presença durante a caminhada em que está envolvido sem o ter solicitado. Existe, como tão apropriadamente assinalou António Luís Moita num poema seu, uma “passagem de testemunho”, uma sequência que a posteriori verificamos lógica e legítima. O artista é pois um género muito específico de emissor de sinais, sendo por isso que é absolutamente destituído de sentido pintar-se hoje à maneira dos mestres do passado, mesmo do próximo. Tudo o que não seja incursão exploratória nos continentes desconhecidos é obviamente pura impostura para estontear tolos ou desatentos.
Na pintura o trabalho com os materiais é sempre uma consequência do outro trabalho que se faz por dentro – o trabalho do olhar, dos humores reconvertidos e transfigurados nos órgãos do homem inteiro. E cada um é que sabe e cada um é que pode oficiar da maneira que lhe é própria, tal como os “trabalhadores ao forno” faziam nas noites de grande solidão e grande encantamento. Tal como o “apaixonado pela arte” ao tratar as matérias experimentais, o artista empreende em cada obra a busca do “objecto dos sábios” – poema, quadro, música, edifício original.
Dizia Picasso (cujo fino senso de humor nem sempre é conhecido) a uma esperta senhora que se propusera comprar-lhe por preço em conta uma natureza morta de vinte por trinta centímetros, “Que tempo me levou a fazer este quadro? Três horas a pintar e vinte anos a conceber...”. A anedota é conclusiva e dispensa mais argumentos, faltando dizer que o marido da senhora o pagou por uma continha calada...
Uma cafeteira velha pintada por Cézanne, uma vela pintada por La Tour, uma mulher enxugando-se pintada por Degas, sendo motivos aparentemente vulgares prolongam-se através dos anos e chegam até nós tão frescos e reveladores como no momento em que foram criados. É o pintor que aceita em si o seu motivo e o transmite. O que fazia a fraqueza lamentável da arte oficial dos países de Leste não era que os artistas plásticos de lá só pintassem operários, camponeses, membros do Politburo, tractores e fábricas diversas, mas sim que só o pudessem fazer de uma maneira determinada pelo poder, que lhe exigia convencionalismo, submissão e abandono das idéias próprias que um ser autónomo possui inevitavelmente.
Vejamos, em paralelo, o caso de Goya. Ele pintou a aristocracia de Espanha – de maneira muito crítica, convenhamos - mas também ergueu um teatro diferente e peculiar. “O sono da razão engendra monstros” é uma consequência da sua possibilidade de se manter fora da absoluta obrigatoriedade de seguir as determinações reais. Na fresta que existe entre os diversos constrangimentos societários e a vida social autodeterminada dos autores é que vive o espaço da arte. Não é o risco que a mata ou impede ou distorce – é a obrigatoriedade de existir duma certa forma. No mundo da política peninsular foram muito mais nefastos para a arte os “safanões a tempo” do salazarismo que a rudeza tipicamente inquisitorial da brutal polícia espanhola do franquismo.
Por outro lado, a necessidade da arte prova-se pelo simples facto de que esta nunca desapareceu. Mesmo nas condições tenebrosas dos campos de concentração ela subsistiu. Os denominados situacionistas pretendiam enganar-nos quando afirmavam que o artista seria supérfluo numa sociedade livre e arguta à sua maneira. E isso porque não passava de uma espécie de ilusionista a soldo do poder das classes dominantes. Pelo contrário, o artista – queira-o ou não – ao criar mundos alternativos efectua uma espécie de purificação, forja a desalienação e funda de novo a inteligibilidade do mundo e da vida quotidiana. Só através da arte, feita ou contemplada (e frequentemente são interdependentes) o Homem ascende à sua plena condição prometaica de libertador do fogo.
Claro que os próceres das classes dominantes, por uma naturalidade que lhes advém da sua mentalidade específica, procuram ter como fazedores de arte gratificantes e gratificados sucedâneos. Os Meissonier são de todos os tempos, com a sua prosápia, a sua habilidade técnica e as suas almas de criados.
4.
Cézanne era um marco, dizia-se um marco e não o fazia por vaidade ou convencimento orgulhoso. Disse um dia a Emile Bernard, sem qualquer ironia: “Você sabe que actualmente só há um pintor e esse sou eu”. Referia-se, com absoluta propriedade, à sua incursão no desconhecido, tratando a natureza de uma forma simultaneamente rigorosa e lírica – “o lirismo da noite”, como disse adequadamente Perruchot. Não havia nessa frase nenhuma espécie de megalomania ou narcisismo. De facto, as suas pesquisas nada tinham a ver com as dos seus contemporâneos, que evoluíam por outros caminhos que a pouco e pouco se esgotavam. Essas pesquisas estavam muito para além do olhar impressionista e seguiam já na boa direcção, que a breve trecho iria desembocar na horta cubista. Renoir, Gauguin, Monet, Sisley e outros pintores de calibre, todos reconheceram isso e souberam entender a mestria de Cézanne, ou seja, do maior pintor do século dezanove e o maior entre Rembrandt e Picasso. Hoje é perfeitamente claro que Cézanne teve razão em não ceder, ele que nas coisas do quotidiano era tão facilmente vergado pelos imperativos da vida. Reporto-me aos seus anos de plenitude, os anos dos grupos de “Banhistas”, das naturezas mortas com cebolas e laranjas, das aguarelas de móveis e dos óleos desconstruindo a montanha Sainte Victoire, aparecidos simultaneamente (é importante dar relevo a isto) com os diversos retratos de madame Cézanne, nomeadamente o “A senhora Cézanne com a cafeteira” no qual os planos abertos no azul acinzentado dos fundos fazem efectivamente, como num quadro de ar livre – e cito o próprio Cézanne – “sentir o ar”. Se a técnica do pintor, no decurso dos anos, sofreu algumas modificações consideráveis ( e basta pensarmos no “Neve fundente em Estaque” ou no “Uma moderna Olímpia”, para não falar no “Retrato de Achile Emperaire”) é patente que a meta foi sempre a mesma: libertar a perspectiva, libertar a visão, libertar os volumes rítmicos (por isso é que nas naturezas mortas os dois flancos de garrafas ou de cântaros não tinham a curvatura igual). Veja-se por exemplo “O relojoeiro”, ou “Natureza morta com cebolas rosadas”: tal como em “O fumador” as pinceladas são mais leves, os planos organizam-se independentemente da compartimentação, o olhar é imediatamente atraído pela vibração comunicada pela deformação conseguida através da sucessão das cores – o alongamento da cabeça no primeiro caso, a linha da mesa e do copo, quebrada, no segundo. Há pois em Cézanne um profundo conhecimento dos meios picturais. E se a sociedade do tempo não fôsse como era – pernóstica e fanfarrona – teria entendido de imediato. Mas ela - que também não soube entender Renoir e os seus bailes populares, van Gogh e os seus cafés e as paisagens da Provença, Gauguin e as suas aldeias bretãs, as suas taitianas e os cães rosados, estava imersa no prazer pragmático dos negócios e da intensificação da exploração colonial, nas aventuras quotidianas dum francesismo típico que mais tarde Tristan Bernard, entre outros autores, tão bem retrataria nos contos e nas crónicas.
Convirá recordar que a França, como aliás a Europa em geral e mesmo já a América, estava fascinada pelo desenvolvimento técnico que se esboçava ou assentava pé e que permitia a evolução das fortunas a exemplo da que o pai Cézanne consolidara, aparecendo a arte da época como um sublinhar de todo este panorama que as obras de Jules Verne nos descrevem de forma satisfatória. O tempo de Cézanne estava sob os ecos da Exposição Universal de Paris de 1867, que foi onde o industrialismo de maneira insofismável se confrontou, de rosto radiante, com as suas futuras possibilidades mundialistas, enquanto propiciador de certos conceitos decorrentes duma ciência e duma técnica ao serviço duma dada concepção de progresso. Era o tempo em que o barão Haussman modificava o rosto de Paris.
Respiguemos da primeira edição do “ Archivo pitoresco ”, semanário ilustrado publicado em Lisboa pelos editores “ Castro, Irmão e Companhia ” sediados no palácio do conde de Sampaio, à rua da Boavista, alguns breves posto que saborosos excertos do artigo com que Vilhena Barbosa ornamentou o seu estro nesses anos já longínquos: ”A exposição universal de Paris de 1867 – diz-nos ele a abrir – é não só para a França mas também para toda a Europa e, pode dizer-se, para o mundo civilizado, um acontecimento de imensa magnitude. Como certamen de indústria leva vantagem, sem dúvida, a todas as exposições até agora realizadas. Assim o apregoam milhares de expositores, que figuram neste grande concurso, acima do número que até agora têm obtido as exposições mais concorridas. Como festa triunfal do trabalho tem, certamente, a primazia da beleza, da opulência, do esplendor e grandiosidade entre todas as que nas nações mais cultas e poderosas têm celebrado até aqui. Enfim, como vitória da civilização ainda nenhuma se enramou de tão virentes louros. Nesse vasto campo de verdadeira e imorredoira glória não são unicamente os povos que, para glorificação do trabalho, se juntam, se abraçam e fraternizam(...)”. Enlevadíssimo, o nosso cronista refere as maravilhas da arte e da técnica que pôde contemplar, de entre as quais se salientavam dois imensos aquários, um de água doce e outro de água salgada, que faziam as delícias e o espanto dos visitantes. Como mais adiante nos elucida o fecundo Vilhena Barbosa, sobre o gigantismo da exposição, “o campo de Marte mede 50 hectares, ou 500.000 metros quadrados. No meio desse vastíssimo terreiro ergue-se o palácio da exposição, de forma oval, com 400 metros de comprimento e 380 de largura, ocupando uma superfície de 146 mil 588 metros quadrados. Um quilómetro e meio é, pois, a circunferência do palácio”, refere com evidente gosto e senso de exactidão, classificando-o ainda de “grandiosa arena dos progressos e do trabalho da humanidade”, o que não deixa de ter um certo humor involuntário se nos lembrarmos do perfil social das nações nessa época e da consequente humanidade que este deixava adivinhar.
Mas, perante este afã de grandiosidade – ou deveria dizer provincianismo megalómano? – percebe-se como podiam ser desprezadas as obras de Monet, Pissarro, Guillemet, Renoir, tal como o tinham sido as de outros grandes antecessores como Millet e Corot. Como podiam, de facto, os barbosas entender que o verdadeiro jogo era bem outro?
E, no entanto, foi com os impressionistas que certos temas como as gares, pontes e fábricas deram entrada no universo da pintura. Para comparar, vejamos alguns títulos de obras académicas que faziam a chuva e o bom tempo nessa altura: “Frineia diante do Areópago”, “O imperador em Solferino”, “Batalha de Alma”, “”Retrato do Sr. Rouher, ministro da agricultura”, “ A minha irmã não está”, “O pasteleirinho”...
Hoje espanta-nos a “barulheira” despertada por aqueles pedaços de tela não tão grandes como isso, cobertos de cores luminosas. Não serem estimados não significava que não fôssem falados; eram, digamos, negativamente famosos – até cançonetas a seu propósito andavam na boca dos basbaques. No que a Cézanne respeita, nos poucos salons em que participou foi o bombo da festa e o maior êxito de galhofa.
Ele foi decerto um marco, até na coragem de persistir em exercer resistência contra a má-fé e a ignorância. Os surrealistas foram os únicos que não pertenceram picturalmente à sua descendência e, por isso, é com o maior à-vontade que se regozijam por ele ter ido tão alto e tão fundo.
Não vou imaginar Cézanne no nosso tempo, a hipótese seria arbitrária. Cézanne, para ser um contemporâneo nosso – ou seja, um contemporâneo dos foguetões Apolo, das novas teorias sobre óptica e da entrada na era do Aquário – não precisa de outro passaporte para além da sua “Jarra azul”, pois nela vive perfeitamente tanto a alta matemática como a música de Gershwin ou dos Dire Straits, por exemplo. Ele foi um desbravador intemerato de veredas e, como Picasso mais tarde, encontrava e buscava, numa sequência límpida e harmoniosa.
Referência obrigatória no mapa da grande viagem, “ cogito ergo sum ” do entreposto surrealista, familiarizado com o absoluto, Cézanne continua ao longo dum universo expansivo e feérico a desfazer a grande incógnita que mais ou menos à mesma altura, mas num continente de interrogações diferente, Paul Gauguin igualmente colocava em equação: ”Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?”.
A resposta está talvez na visão que do Tempo é possível extrairmos. Como Cézanne, recorde-se, sabia e deu a ver.
Em S.Cristóvão do Atalaião
Nicolau Saião
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