U m dia o lirismo veio ter comigo
não me recordo já se de tarde se de manhã.
Mas lembro-me que havia um estranho ruído nas ruas
de gente que subia que descia
e do antigo tempo – como nos sonhos –
saía uma luz como que de farol de automóvel
e o verde-escuro dos rostos crescia a cada segundo
como que para estabelecer uma atmosfera de amargura
todavia amável.
O lirismo a princípio apareceu
como um simples habitante
quero eu dizer: com figura de homem
o que não deixa de ser perfeitamente natural
se nos lembrarmos que os andrajos e as cartolas
constituem ora mistério
ora logro
ora elemento transfigurado
- culinário, diga-se assim -
seja na Poesia que se enrola sobre si
seja na Música como um braço tatuado
ou até na Pintura cuja ternura nos acompanha
como um canivete de infância.
Bastou um modesto aceno com os dedos da mão direita
que nem sempre ao contrário do que se diz
tocam ao acaso um dos pontos cardeais
para estabelecer o natural nestas coisas: o lirismo
tinha de facto um coração atormentado
perdoai-me a ironia, ó amantes
perto do lago Léman
e com um ar triste tocou-me ao de leve no braço
mas não havia árvores por ali
nem casas
nem pessoas
naquele momento como que estávamos em certo núcleo interior
- o assunto era já outro -
estava de repente muito claro e os jarros sobre a mesa
apagavam-se pouco a pouco.
Mas como durante anos utilizei palavras evidentes
(como saleta tuberculose amendoim)
foi-nos permitido reentrar no ambiente de todos os dias
que não tem mal nenhum: há zumbidos de moscas
e um olhar súbito de face surpreendida branca
e alguns garotos que todas as manhãs passam por nós
a caminho da escola na rua da Fonte do Penedo
(estamos todos no mesmo barco, ia dizer
mas nós é que riscamos o derradeiro fósforo
e o olhamos contra a silhueta das casas)
e seja-nos permitido
guardar uma fugaz circunspecção
para não enovelar toda a conversa.
Chegou e fez
coisas impossíveis
e não havia já barulho no corredor
porque lá as diferenças não são acentuadas
uma pedra aqui, outra pedra acolá
e a nossa voz reflecte-se como se recordássemos
e se algo brilha (ou não brilha) sabe-se que ali
é o corpo
Sabes dizia ele foi tudo uma maravilhosa aventura
ó os anos na quinta que tinha aquele grande pinhal
sombra dedilhada, que é como quem diz
perfeitamente posta num caminho de saibro
e o Pai com o seu grande chapéu de alquimista
afeiçoava os dias
e uma penumbra de mão na estrada vicinal
Não há coisas fora do mistério de arbustos desconhecidos
o que já foi já é retrato ou natureza morta
mas sempre com as cores necessárias.
E de repente estávamos todos com a mesma cara
havia uma cara de apreciador de calendários
como nos tempos de Abu-Bakr
ou dos antigos egípcios
aqueles que nos confins do deserto divisavam ondeando
a molécula primitiva – para bom entendedor – ou figueiras
noutras terras, com um sol no labirinto
ou com a cara que se usava nos anos cinquenta
Os Citas, a propósito, eram cavaleiros exímios
e de acordo com Sir Vivian Fuchs
“foi no dia 26 de Dezembro que realmente começaram as dificuldades ”
é evidente que
se trata da viagem de travessia da Antártida
- lá ao longe as montanhas ligeiramente negras, o barco
uma breve mancha negra como um animal gelado
(a horta era em socalcos e havia um tanque
e havia uma pequena estátua num nicho seria a deusa
das ervas?)
Ora portanto
o lirismo queria dizer-me coisas e sentámo-nos
num degrau das escadas da capela do Miradouro
de São Cristóvão
dali vê-se a cidade inteira
e durante alguns minutos nada dissemos um ao outro.
Lembra-te
os ramos das videiras
brilhavam
- nada de perdões fora do tempo –
dentro de ti ficará sempre qualquer coisa inescrutável
mas é preciso falar e dizer que em Novembro há uma rua em Coimbra
e muitas outras ruas no mundo para muitos anos
As cerejas comidas numa azinhaga a oeste
do clube de ténis (a casa
recorta-se como um barco silencioso de encontro às sebes do monte
que antecede São Mamede) vão vivendo pelo tempo fora
e tudo flutua
Lembra-te
as rosas que nos sábados bem cedo te traziam do mercado
lá estão elas sobre a velha cómoda
Lembra-te
os pequenos cactos na janela da moradia defronte são o penhor
de um silêncio íntegro e solitário.
Agora um aparte: às vezes
Deus começa a meter-se nas coisas
ultrapassado o negrume entre os castanheiros
um escrito como de até à vista
Que aqueles que viram Deus face a face me entendam
e me escutem fala por mim a voz da justiça
não me façam rir mais, por favor, ora ia
eu dizendo que o lirismo tinha agora cara de rapariga
tinha uns olhos cor de avelã não completamente madura
coisas que servem para ler o jornal
poder ir sem tropeçar ao mictório e ao super-mercado
olhar a Lua em terça-feira gorda
os desenhos sempre alucinantes da vegetação antiga nos
livros de ciências de antes da guerra
Ora bem
pôs-se a olhar para mim
e contou devagar: setenta e dois, trinta e sete, quarenta
(mas dizia tudo de trás para diante, como Calígula no teatro
ou como se recitasse aquele poema de Rilke que se refere às
peras maduras que uma criança devorará)
não era nada disto
estou a brincar convosco ou antes a delimitar
este é o mapa
aquele é o mapa inteiramente cobertos
o que disse, asseguro-vos, foi muitíssimo diferente
Falava, segundo ouvi, nas idades mortas da Terra
e na altura do oceano que só existe nas fábulas
e em como era grato sentir no plexo solar o ar de Setembro
- na praia há, sensivelmente, tanta areia como astros na
Via Láctea
li num livro do Asimov personagem singular
não há somente areia mas estranhas figuras evanescentes
carne de cefalópode, de tyranossauro rex
e de rynocerus ou lá como se chamava
porque tudo vai morrer em frente do grande mar
cor de vinho como na Odisseia
- e, a propósito, sabiam que se sobrepusessem
um mapa do Pólo Sul
à Europa a base de Shackleton ficaria quase sobre Lisboa
e a de Scott sobre Estocolmo? – e o lirismo
dizia-me que por dentro tinha ora a neve ora a treva
e sinais de que não se conhecem coordenadas
sob o firmamento apreciem a cagança desta frase, flor inicial
que vos vendo pelo preço que me custou e que vos ponho
à consideração de jovens animais do Terciário. No começo
era o vento
(e chega-te para lá, ó eterno Adão
senão levas um chuto nos tomates
falo como quero e onde quero
significando então que há palavras intraduzíveis
e faço os trocadilhos de acordo com as Estações)
que não inclui lepra ou estátua de sal ou cancro atómico.
Os inteligentes que me perdoem mas é sempre
entre Tel al Amarna e Lagash que se sente o apelo
e subitamente ante nós aparecem imagens irreais
e a montanha da primeira estrela dupla
- uma criança passa, com o seu boné de lã cinzenta
junto ao alpendre da taberna –
porque uma coisa está por detrás da outra e há
um choro que se ouve vindo das traseiras do velho estábulo
entre a neblina ao pé do tanque
quando ainda existia a azinhaga onde cresciam
fetos e plantas incógnitas.
Ora bem
dizia eu que os caldeus adoravam o equinócio de Verão
e nem tu meu amor soubeste entender o que havia
de terrivelmente distante ou seja
vivo e sobre os velhos sinais de betume e tijolo
passe o exagero
uma que outra vez fico muito calado e do alto caiem figuras
ou chegam mansamente as antigas
faces dos filhos, de todos os nossos
pais e mães, mulheres e amantes, pois que todos
têm mais que um só significado
digo um rosto fugiu-me a boca
para a grande espiral dos planetas exteriores
é cá uma maneira de dizer nada de sustos
ora aconteceu então que tudo ficou como as cartas de jogar
cara de valete para baixo, cara de valete para cima
e o Outono anunciava-se e um garoto trepava pelas paredes.
Como dizia aquele zé dos anzóis
esse da legenda mais que tudo parisiense
se o meu intento era louro
era suficientemente desembaraçado
para ir à pesca e trazer um bacalhau de oitenta quilos
(mantenho-me jovem porque por baixo da camisa
trago não apenas o esqueleto e os tendões
mas inúmeros sonhos de gatos e cães
que sempre são mais solenes que o vulgar homo sapiens)
e já agora, antes da pista final
uma história: em Alexandria
dizia-se frequentemente que de Hébron a Nippur
eram duzentos dias de marcha
e havia bosques de palmeiras a toda a volta
e o ar era frígido de noite como nos plainos da Bretanha
e por detrás de nós havia passos docemente retinindo
e também, como o recordo, aves no negrume que se avizinhava
Iremos, pergunto eu, mais depressa que a estrela
que em Belém anunciou o nascimento do Cristo
E será verdade que no tronco das bétulas brancas
as borboletas alitreus bombex mudam de cor através dos anos
o que corresponde não só a uma mudança de habitat
mas dos hábitos da espécie
uma estratégia para sobreviver?
Neste universo de duas
mãos dois pés não subsiste o grande sonho
ainda que o contrário seja possível admitir
O que há é um muro de quartel ao longo da Calçada da Ajuda
e flores e frutos no pino do Inverno
o que afinal está certo por razões desconhecidas
os grandes sáurios morreram em pouco tempo o que deu
possibilidades para que a cadeia da vida continuasse a rolar
e depois nascesse o Homem o castor a rena
nossos bons companheiros de vida sublunar. Apesar de tudo
vos digo, ó alturas de Machu-Pichu
que gostaria de saber-vos loucamente amadas
com todos os números pares, com todos os números ímpares
sulcando o céu cor de cobalto
ou entre a ponte e o rio, pois há sempre um rio e uma ponte
entre possíveis e impossíveis
entre luz que diminui e lâmpada que imita
a voz do antigo deus Dionisos ou Chukulkan, esses que numa
rotação milenar navegam intemporalmente.
Sob um qualquer momento divino
entrai no campo – o lugar das plantas vai mudando
o vosso corpo fede, a unha estreita cobre-se de baba
nada parece belo e nada parece horrendo
nesse princípio que é futuro e passado. Procurem
a palavra que faça zunir
lâminas de carne entre bancadas depois limpas
- a boa terra grumosa assemelha-se ao papel
de súbito povoado por figuras atónitas
Porque desde os caldeus e os gregos, os persas e os assírios
a certas horas da noite em certos lugares das cidades
um virar de vento agita um minúsculo fio de lã
um farrapo que um dia existiu em qualquer lado
- a lua nas vidraças não existe é uma recordação
onde entram de juntura um cântaro e um lábio sangrento
meditados com alegria. O cheiro da chuva é agora
como um coração cheio de moscas. Passo e repasso
sucumbo como através duma montanha
a luz de um camião na estrada da vertente. O que Scipião
Africano fazia era juntar por sobre as rochas o
que à natureza é defeso: a fúria da língua, o
hálito fortuito numa cama aberta
entre as eras.
Sabeis a pergunta? Um lápis como um arado arrasta
o perfil de alguém que com uma faca separa
tendões e ossos. Uma caixa de fósforos e uma folha rasgada
onde se pode ainda distinguir
algo que poderia ser uma flor branca –
e alguém corre e murmura um nome
e nada do que no homem é nossa proximidade
é o contrário da lenta estranheza que na manhã nos antecede
pois o orgasmo não é uma pedra mármore ou uma esponja
e há por vezes de noite, naquela quinta a sul da terra dos pais
um súbito cheiro de curral
um joelho que seria possível ver nos declives da cidade
mas que desaparece minuto sim minuto não.
O que é certo é que a verdade atravanca os séculos
não, não atravanca os séculos, os séculos
são uma hora dividida entre Julhos, Janeiros, Agostos
e a verdade atravanca-se a si mesma
reflectida no pó é de repente pó e de repente cera escura
para que algo incolor se despeje e inicie
uma atmosfera exposta
ao brilho dum pulso queimado.
Saúdo-te, antiga melancolia
que não és melancolia pois pelas ruas há filhos que vão
e filhos que vêm
como se um limpa-parabrisas fosse um arco-íris no Verão
Distingo do lado esquerdo uma parede romana
mas é um quadro de Van Gogh
mas é o vestido de uma holandesa num texto de Paracelso
e passo-te a mão sobre a cabeça
e acontece que a electricidade flui em toda a casa
belamente erguida e que me diz espero.
Renoir morreu aos sessenta e tal anos
e no último momento pediu que virassem uma perdiz de lado
no seu delírio para a pintar melhor.
(Agora, vejam bem, já não pertenço à ilha
não sou nem Sagitário nem Virgem, nem Peixes nem Aquário
não trago comigo o cão e a aranha, acima dos outros seres
e a capa que nunca bordarás e os couros vermelhos desfeitos
e a lebre e o cavalo e a folhagem de Janeiro
sou talvez como
uma noz que nunca morrerá
uma almofada de veludo amarelo
inerte como um aparador ou um armário de cozinha
sem tristeza mas também sem o leve cacarejar suscitado
pelo azul, pelo roxo, pelo anil ou o índigo
cor que pouco aliás emprego em qualquer circunstância
porque para desporto bem basta a garrafada na cabeça
e, dizes bem, afinal
se nada é uma questão de retórica
muito menos é questão de apaixonada sonolência
quando os seres adormecem contentes nos braços um do outro
depois de terem passado a Neptuno e Mercúrio
a rasteira mais que tudo concebível).
Olha
disse o lirismo
não temas
tu és a verdadeira bíblia dos homens
porque morreste e reviveste, porque morreste e tornaste a morrer
e a porta onde uma criança pintou letras e corpos
vai-se desfazendo lentamente
não temas
Sabias que sobre uma rocha numa quinta do Frangoneiro
uma raposa pelas noites de Verão certamente se sentava
- assim o indicavam os excrementos depositados num
pequeno côncavo da pedra – e lá por cima (como dizê-lo)
o negrume entre os astros continuava como se nada fosse?
E sabias ainda
que os mergulhões de uma charca saem subitamente da água
e voam alucinados para um bosque de árvores ali de perto
e sob uma romãzeira existe um poço fresco afeiçoado
em cimento para que de lá se possa tirar a água com um côcho
se é assim que se diz, pois por vezes a memória falha-me
e não sei já se este automóvel passou no sonho xis
ou passou na realidade ípsilon
(o piano lá continua a executar qualquer coisa de Bach)
e, meu caro lirismo, tu que tens ossos de milhafre ou pintassilgo
diz-me de novo: não temas
tua é a imagem da mão que apodrece
e o ruído de uns pés por cima da cabeça
diz: não temas
apesar de estares absolutamente só
num certo ponto, sob certa forma
ainda é tua a certeza de que existem reposteiros e lâmpadas
como se fosse por encomenda. Por exemplo: primeiro – o fogo e o ar
interpenetram-se
a escolha inclui esqueletos e colinas
e se não existe amor talvez exista um pouco de piedade
um destino, uma sombra, um pedaço de sombra, um pedaço de destino
e segundo – corre um bocadinho mais depressa
entra-me já em Junho, mesmo que os pólos se atropelem
e não esqueças – de línguas não fales uma só
diz boa tarde em inglês, olá em aramaico
e cresce umas vezes para baixo outras p’ra cima
“a cidade é uma represália à natureza selvagem”
como dizia o Papini uns tempos antes de patear.
Não te vendarão os olhos com um lenço de seda
disse o lirismo
não te meterão na mão esquerda uma vara benzida
não terás mil portas para olhar
mil janelas para ornamentar
mil degraus para subir e queimar
mil cadeiras para destruir
mil espelhos mil âncoras mil alfarrábios
para trocar as voltas a quem te leia
a quem minimamente te tivesse querido
te tivesse agarrado pelo espírito ou pelo corpo
- o que é a mesma coisa, deixem que diga
excepto quando se consegue algum adiamento
que afinal nunca chega, porque nisto de paraísos
a chama equivale o alfinete, a couve-flor e o insecto
mesmo com certificado, testemunhas abonatórias
e algum incenso a acompanhar. No tempo dos grandes veleiros
Sírius estava seguramente no mesmo sítio.
As palavras fazem sentido pense-se o que se pensar
embora nada modifiquem, porque o saber
aquele que permite
que se veja a relação entre a raiz duma cidade marítima
e o tremor de uma macieira
não é um infamante cartapácio rasgado
que altos são os desígnios de Deus (um traque)
e altos os caminhos do Senhor (outro traque)
com o devido respeito, porque café há-o de várias marcas
- lentamente a polpa da mão passeia
e sente o minúsculo relevo da tinta, o azul, o vermelho
depois novamente o vermelho e, por fim, o preto.
O lirismo
de repente adormeceu
pensava então em Esculápio e em Sosóstris
o tal que comprava e negociava tecidos multicolores
ou em Don José Maria de Hinojosa
porque diabo me lembrei deste agora
- sendo certo que uma ou outra página teria
em que falasse da alegria de viver –
pensava nada o que ele queria era descansar
refastelar-se de todas as maneiras
(o ânimo não ousa erguer-se
ele finge agora que é um gémeo com a boca cheia de sangue)
pois não se pense lá que alguém perdeu isto ou aquilo
ou se perdeu procurai lá entre as ervas
e dizei-me depois se algo haveis encontrado.
Mas se há brisa ou não há brisa
isso compete ao taumaturgo
agora sentado entre laranjeiras e favais.
(Agora
ele escuta
ruídos difusos, leves, incorpóreos
É gente que executa os ritmos habituais de quem se deita
de quem tira a camisola, lentamente as cuecas
e brandamente coloca sobre o espaldar da cadeira
uma gravata, um cinto, um lenço de pescoço).
Sim
longe está o país
onde o nosso cérebro bate como um coração novo.
Não há resíduos sobre a pedra de mármore
da cozinha
ali nunca ninguém estrelará ovos às duas da manhã
com um pouquinho de pimenta que faz os olhos bonitos
ninguém lançará para a lata do lixo com alguma pena
uma que outra garatuja incomensurável
Se doze são as figuras do mundo
vinte e quatro serão os clarões do universo
a despeito das imagens que se agitam na água
mesmo sabendo-se que no continente se perdeu
entre as ilhas
a cabacinha branca conservará o seu poder oculto
e olharemos ainda os soalhos de madeira
para aí vermos os passos dos que viveram antes
- lentamente, muito lentamente
do chão se vão apagando os vestígios que os animais
encaram como palpáveis, como se fossem desenhos
impressos nos azulejos à semelhança daqueles
que os romanos pintavam por pirraça
por antiguidade clássica.
Contaram-me ou não sei bem se li
que entre as pedras das casas dos Aqueus e Átridas
crescem plantas domésticas, a camomila e a papoula
limite para que tende o divino e o humano
Não temas, não temamos, disse o lirismo a pensar no almoço
é preciso calar, calar muito e a boas horas
mas se acaso for de dizer coisas, que elas saiam
com serenidade e alento
(cheias de gripe, que é como quem diz)
pois que a poesia, para além de ser
um aparelho circulatório, um calhau solitário
e um rio fértil e majestoso
é também para que conste apesar do métier
a velhice e a adolescência misturadas
uma cócega na orelha, um arrepio na anca
e agora façamos uma pausa
Calados o lirismo e eu olhávamos a rua
alguém que passava com a cabeça palpitando com a ventania
outro que olhava ondeando gravemente úteis composições
uma que se tinha cabelos chapéu é que não tinha
e muitas coisas mais que me dispenso de referir
Sabiam que as montanhas de Théron
no seu ponto mais elevado atingem
quatro mil e quinhentos pés de altitude
e que logo a seguir para além de um largo glaciar
outras se elevam a cerca de sete mil pés? O lirismo
estava evidentemente cansado
ouvira entrementes a história de dois irmãos apaixonados pela
governanta mais idosa que eles
e que no sótão todos três celebravam ritos tenebrosos
a escuridão ficara no jardim e formava como que obeliscos
Estava cansado, tinha andado de barco
tinha ido comprar papossêcos
distraído tinha mijado para cima das botas
e pensava lá para ele inúmeras situações comovedoras. Passe
o exagero dir-se-ia
que conhecia o nome de todas as coisas vivas
porque tudo, sem resumir, se igualava às vinte e tantas letras
do alfabeto e o amor é tão transparente como opaco
- usavam um corpete, uma touca branca, um guardanapo sujo
lentamente os olhos iam seguindo os movimentos
sobre tudo descia um silêncio decisivo –
por vezes dentro dele encontram-se vagos objectos ornamentais
vestígios de um dedo cortado, um beijo dado no vácuo
um pedaço de baton
uma meia rasgada.
Mas o lirismo sem se fazer rogado
dizia
o sueste e o nordeste, a silhueta axial
de, por exemplo e sem compromisso, a Lua, um satélite de Júpiter, as
primeiras memórias duma infância
qualquer ela seja
e, como de propósito, as diferentes parcelas
em que se dividem os números e as cores.
Mas não era isto
a nossa hipótese de sobrevivência não se compadece com o real
e o irreal é como que o resíduo de um mínimo que se atirou
fora
- bastaria o amor, encontrado ou procurado
e que afinal sabe bem onde ficam as florestas
mas bastaria um invólucro de bolos
ou uma limonada conscienciosamente feita
bastaria na madrugada um gesto simples de mãos
um soberano movimento de outonos e primaveras
(aqui o lirismo tropeçou no seu próprio manto
a pergunta colara-lhe na testa um papel de cor incerta)
e era estranho e belo aquele tecido
- de várias matérias composto:
havia a lã, a boa lã de Norfolk que nos primeiros anos
era muitíssimo popular
(a Mãe tricotava pacientemente
puloveres, carapuços, meias compridas)
havia a seda, que se nos descuidamos cobre os mortos
havia o linho
que faz funcionar os diferentes aparelhos
e o algodão, feminino no singular
e tudo estava unido a ponto cruz
e de repente o lirismo
que agora era uma espécie de porteiro de pensão com cara de médico
percebeu que nada tinha dito que se aproveitasse
e, vai daí
começou devagarinho a despir-se
fazendo ao mesmo tempo uns sinais cabalísticos
para significar, lá no seu entender, que jamais
discutiria a necessidade eventual
de dizer sim ou não
uma vez que se dispusera a referir que a verdade
tanto é curta como comprida
se é natural que um verso seja mais ou menos intenso
conforme o calor e o frio
e as formas do milénio. “Faço os meus cálculos
executo as operações
aqui é a soma, ali a diminuição”
disse baixinho e compassadamente
e de repente caiu para o lado
e dos seus ouvidos saíram algumas sombras
que se espalharam em torno e afeiçoaram uma auréola
uma irisação de orelha a orelha
entre o risonho e o sinistro. E eu
que já não estou totalmente deste lado da vida
mas que estou mais que nunca no que existe e não existe
recordo que em certas grutas
da Andaluzia e da Provença
foram um dia encontrados
vestígios
de estranhos seres
que – dizia-se – teriam amado a corça e o cavalo
Supôs-se até, mesmo devido ao fumo
inexistente nos tectos das cavernas
que pertencessem à raça outrora amaldiçoada
dos deuses
que no frio lunar tocavam lentamente nos lábios
(eram homens e mulheres, cheios
da sua própria existência
que limpavam as unhas
à pelagem dos pequenos animais do bosque
às últimas horas do dia)
o que me faz perguntar com singeleza: há nessa casa
alguma mesa branca de madeira de pinho
com uma toalha aos quadrados por cobertura
ou uma pedra antiga como a que eu mesmo possuo, pedra vinda
de longe
do Paleolítico
pedra que ainda conserva na superfície áspera
vestígios que poderão ser de lume, ou ser de sangue, assim a luz
seja de um foco eléctrico ou do sol e estejamos
por exemplo perto da porta
ou a norte da vidraça entreaberta e velada
por uma branca cortina de renda?
E então
como a tarde começava a chegar ao fim
com o seu tom habitual de algarismo entre milhares
ele tomou-me pelo braço e fomo-nos sentar na esplanada de um Café
e com uma expressão lamentosa e indizível
disse-me serenamente: “Você, meu caro
foge à reflexão. Ora venha cá. Ora prove
e depois cuspa, ou então
finja que não é nada consigo. E diga-me: ele tem ou não tem
só a saudade que é dele
só o corpo que é dele
- que é aliás alugado –
sim, aquele corpo que estende para nós asas libertas
e é alma (mas sê-lo-ão mesmo
em vez de asas não serão lençóis batidos pelo vento?)
no quintal ou na sala de estar
Mas adiante
porque se de tão pequeno começa o espanto a não nos deixar
existir
tudo se complica excessivamente. Mas dizíamos
foi este o mistério que sempre nos cruzou a mente
sem deixar contudo que o seu voo chegasse à altura dos nossos olhos
de tão escuro, tão sem sentido na orla das nossas narinas
perto ou frente a frente com o animal que nos observa
dia após dia, hora após hora
sem desfalecimento e sem, claro que não, remorso
- o solo falhando sob o tapete, o soalho sob
as pantufas –
(esta do remorso dá que pensar: se ao mesmo tempo
o tal anjo começasse a… mas deixemos isso)
tal qual boa terra arável. Só a nossa indisfarçável paciência, só
a extrema e corajosa calma
que nos permite trocar o bê e o jota
as calças, o colete, os suspensórios
as diferentes espécies de açucenas e malmequeres
que nos rodeiam a cintura
é que sustentam o impulso de correr
altas e infinitas, ó figuras de correr para o vosso regaço
incomensurável e molhado. Talvez
ainda não tivessem sequer pensado
que antes de nós havia luzes nos caminhos e eucaliptos
com pequeninos flocos sobre os ramos
- só um momentinho que já bebo - abarcando entrelaçados
movimentos de pulmões. Prefiro uma cerveja. E mande o criado
buscar um outro género de crepúsculo, que este
dá-se mal com o tabaco. Se tivesse morado em qualquer parte
que não as partes em que este mundo acaba
(não consinto que pague!) e tivesse saltado
inventando e desinventando outro género de reinos
gostaria que então me contasse dessas. Possa
como aos que demandaram as terras do Prestes
o destino um dia cravar-lhe nas costelas
um centímetro de areia dos desertos. E agora cantem-lhe
assobiem-lhe às botas
como um passeante que nunca aparece
mais do que a conta. Por aí
penso que não irá lá, mas enfim
- nós somos os herdeiros
não simples espectadores
e muito menos estofadores ou carpinteiros
meros videntes ou construtores esperando
numa escada que não se conhece
dum edifício confusamente olhado
alguém que daí a minutos descerá
com uma mala na mão.
Lá onde o mar bate e se desintegra
admirado com o tamanho da Terra
iremos como sempre, as sobrancelhas acentuando o negrume
que já nos cobre toda a cabeça. Iremos no nosso próprio
girar”.
E pronto, acabou-se o contarelo
já de há muito se ouviu o sussurro do cuco
e da poeira nocturna
entrando na órbita dos planetas menores
Os animais, agora, vêem através dos nossos corpos:
olham na direcção do fígado e por detrás divisam
um relógio antigo
olham através duma perna e do outro lado
está uma máquina de lavar
olham através do antebraço esquerdo e distinguem
um casaco de criança no cabide
As nossas figuras cresceram
e são breves e intensas como um astro. Agora
é-me lícito finalmente dizer
- objecto ou escultura o meu coração permanece
discreto e impenetrável
antigo marinheiro, antigo tecelão acocorado num escuro
compartimento
onde pouco antes passou o silvo duma serpente
Ele viaja até aos lugares mais secretos
ele sabe o que está por dentro dos diminutivos
a matemática de espirais e elipses
Obscuro viajante ornado apenas com um chapéu e um colar
agita-se devagar como uma abelha maldita
e não toma a realidade por uma pomba cubista
Às vezes visita-me
como um turista afeiçoando um idioma
injuria-me se visto o meu casaco escuro
porque o botão de cima não lhe agrada
O meu coração é não só o alfa e o ómega mas a linfa e os humores
o que cresce entre placas ósseas finas como um tronco consagrado
é um desconhecido de quem só sei o nome oculto
- duplo nome caído numa masmorra –
O meu coração
ressona de noite
sabe que a lua é um arbusto adormecido
e que um desmaio nem sempre é
aquilo que parece
entre os signos de Caranguejo e Capricórnio
O meu coração
é um vulto embuçado que de repente salta e ri
é um pedaço de carvão de pedra
uma planta de pé atravessando
os minutos
uma linguagem morta e primordial.
|