Nasci e cresci numa pequena cidade colonial, num mundo que já morreu.
Desde cedo, aprendi que devia viver contra o meu próprio tempo. A
realidade colonial estava ali, no quotidiano, arrumando os homens pela
raça, empurrando os africanos para além dos subúrbios.
Eu mesmo, privilegiado pela minha cor da pele, era tido como um “branco
de segunda categoria”. Todos os dias me confrontava com a humilhação dos
negros descalços e obrigados a sentarem-se no banco de trás dos
autocarros, no banco de trás da Vida. Na minha casa vivíamos paredes-meias com o medo, perante a
ameaça de prisão que pesava sobre o meu pai que era jornalista e nos
ensinava a não baixar os olhos perante a injustiça. A independência
nacional era para mim o final desse universo de injustiças. Foi por isso
que abracei a causa revolucionária como se fosse uma predestinação. Cedo
me tornei um membro da Frente de Libertação de Moçambique e a minha vida
foi, durante um tempo, guiada por um sentimento épico de estarmos
criando uma sociedade nova.
No dia da Independência de Moçambique eu tinha 19 anos. Alimentava,
então, a expectativa de ver subir num mastro uma bandeira para o meu
país. Eu acreditava, assim, que o sonho de um povo se poderia traduzir
numa simples bandeira. Em 1975, eu era jornalista, o mundo era a minha
igreja, os homens a minha religião. E tudo era ainda possível.
Na noite de 24 de Junho, juntei-me a milhares de outros moçambicanos no
Estádio da Machava para assistir à proclamação da Independência
Nacional, que seria anunciada na voz rouca de Samora Moisés Machel.
O anúncio estava previsto para a meia-noite em ponto. Nascia o dia,
alvorecia um país. Passavam 20 minutos da meia-noite e ainda Samora não
emergira no pódio. De repente, a farda guerrilheira de Samora emergiu
entre os convidados. Sem dar confiança ao rigor do horário, o Presidente
proclamou: “às zero horas de hoje, 25 de Junho...“. Um golpe de magia
fez os ponteiros recuarem. A hora ficou certa, o tempo ficou nosso.
Não esqueço nunca os rostos iluminados por um irrepetível encantamento,
não esqueço os gritos de euforia, os tiros dos guerrilheiros anunciando
o fim de todas as guerras. Havia festa, a celebração de sermos gente,
termos chão e merecermos céu. Mais que um país celebrávamos um outro
destino para nossas vidas. Quem tinha esperado séculos não dava conta de
vinte minutos a mais.
Trinta anos depois poderíamos ainda fazer recuar os ponteiros do tempo?
A mesma crença mora ainda no cidadão moçambicano? Não, não mora. Nem
podia morar. Em 1975, nós mantínhamos a convicção legítima mas ingénua
de que era possível, no tempo de uma geração, mudarmos o mundo e
redistribuirmos felicidade. Não sabíamos quanto o mundo é uma pegajosa
teia onde uns são presas e outros predadores.
|
Mia Couto nasceu na cidade da Beira, Moçambique. Depois de um início de carreira na área do jornalismo, consagrou-se à literatura. As suas obras, dotadas de um estilo original, encontram-se já traduzidas em várias línguas: holandês, sueco, norueguês, italiano, francês e espanhol. Mia Couto dedica-se também teatro e à biologia. |