Meus senhores e minha senhoras, Caros amigos
No meu romance Terra Sonâmbula criei um personagem que, por nascer no
dia da Independência, a vinte e cinco de Junho, foi baptizado de
Junhito. A história decorre no decurso da nossa guerra civil que se
prolongou durante 16 anos.
Certa noite, o pai de Junhito é assaltado por um pressentimento: o seu
filho iria morrer em breve. Era isso o que a guerra reclamava: a morte
desse que nascera em Junho. Para salvar o filho, a família resolveu
transferi-lo para a capoeira que ficava no quintal. Ali Junhito
aprenderia a comportar-se como as galinhas, comendo as sobras e dormindo
ao relento. Resignado a sobreviver sem glória, sem brilho, sem
substância.
Junhito foi-se tornando numa sombra e, em casa, os familiares estavam
proibidos até de mencionar o seu nome. A mãe, mesmo ela, parecia
conformada. Contudo, às escondidas da noite, ela visitava a capoeira.
Sentava-se no escuro e cantava uma canção de embalar, a mesma que
servira para adormecer os outros irmãos.
Junhito, de início, acompanhava a mãe no canto. Mas depois, o menino já
nem sabia soletrar as humanas palavras. Esganiçava uns cóós e ajeitava a
cabeça por baixo do braço. E assim adormecia, sonhando que, certa vez,
teria sido um homem.
A metáfora no romance é simples, quase linear. Na altura, eu denunciava
a nossa progressiva perda de soberania, e uma crescente domesticação do
nosso espirito de ousadia. Poderíamos ser nação mas não demasiado,
poderíamos ser povo mas apenas se bem comportado.
Num processo difícil e conflituoso, Moçambique criou a reputação de ser
um caso de excepção em África. Esse bom-nome, devo dizer, é merecido.
Esse prestígio foiconquistado, não é uma prenda de nenhum paternalismo.
Fomos capazes de produzir a Paz. Fomos capazes de criar democracia
formal, de construir estabilidade e de garantir liberdades de expressão
e de pensamento.
Tenho orgulho nesse processo. Mas tenho também receio. Porque o caminho
que percorremos não foi exactamente escolhido por nós, nem está sendo
testado à medida da nossa vontade. O nosso êxito não pode continuar a
ser medido apenas pelo sucesso da aplicação de um directório de receitas
políticas e financeiras. Ao contrário, deveríamos ser valorizados pelo
modo como repensamos criativamente o nosso lugar no mundo.
Nos gloriosos anos da luta de libertação nós gritávamos “Independência
ou Morte, Venceremos”. Hoje sabemos: a independência não é mais do que a
possibilidade de escolhermos as nossas dependências. Na década de 70, o
mundo oferecia a possibilidade de diferentes opções e alianças
estratégicas. Hoje as economias nacionais perfilam-se perante um modelo
sem alternativa. Escolhemos o que outros escolheram por nós. Uma parte
da nossa alma foi já, mesmo sem o sabermos, conduzida para a capoeira e
ali esquece a irreverência, a originalidade e o desejo de ser único.
A redução da soberania não é um processo que esteja atingindo
especificamente Moçambique. É um processo generalizado. Todas nações são
hoje menos nacionais, todo o cidadão é menos dono do si mesmo. Uns dizem
que, agora, somos todos mundo. Mas ninguém pode ser do mundo se não
tiver a sua pequena aldeia.
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