Em 1799, o Poeta escreve a sua última elegia, Nänie (Nénia), tendo sido publicada em 1800, na colectânea Gedichte von Friedrich Schiller, Erster Teil. (2). Tomando como ponto de partida três exemplos clássicos (Orfeu-Eurídice, Afrodite-Adónis, Aquiles-Tétis), exprime, de forma lapidar, a sua concepção do belo, nas suas relações com o Amor e a Morte.
Nänie é provavelmente o mais comentado de Schiller. Tal como refere Joachim C. Fest: «Se é verdade que dos Poetas, mesmo dos mais importantes, não mais do que seis a oito poemas perdurem, isso aplica-se seguramente a Friedrich Schiller (...) este poema é uma obra-prima. Mesmo a mais rigorosa escolha de poemas da língua alemã a deveria conter.» (3).
Como o título já sugere (na antiga Roma , as nénias eram canções fúnebres, entoadas nas exéquias solenes, acompanhadas de flautas), o poema, de particular beleza, desenvolvendo a temática do destino e da morte, é uma das Elegias de Schiller. Sobre este poema, Brahms para uma peça coral (4).
Partindo do lamento junto ao cadáver de Aquiles, cujo funeral é narrado no Canto XXIV da Odisseia, Schiller expressa a sua concepção sobre a relação do homem com os deuses.
Embora ambos partilhem o gosto pelo belo, não podem os deuses evitar as feridas, a morte e os males do homem. O corpo é a matéria perecível. À vida eterna dos deuses, contrapõe-se a vida dos homens, sujeita ao sofrimento e à morte.
A referência ao presente de Zeus remete-nos para a cena Tétis suplicante no Olimpo (5), da Ilíada, onde a deusa intercede pela honra de Aquiles (como ǐκηής), junto de Zeus, quando este regressa, após um banquete de doze dias, celebrado entre os Etíopes.
Essa graça é-lhe concedida. Esse é o presente de Zeus.
Mas Tétis apenas intercede pela honra de Aquiles, não consegue salvá-lo da morte, o seu destino, enquanto mortal.
A figura do javali introduz a personagem de Adónis (6), o deus sírio da vegetação, ferido mortalmente por um desses animais, vítima da inveja de Ares, o deus da Guerra, amado por Afrodite.
Adónis é a expressão simbólica do ritmo das estações. Estas renovam-se, todos os anos, imutáveis, como as leis dos deuses, mas Adónis (e a palavra semita de onde provém, adon, significa Senhor) é o deus que surge para ensinar que a morte é inevitável (7).
Consubstanciado na referência ao javali e a Afrodite, um outro herói, Meleagro, está apaixonado por Atalante, sua companheira de caça e a ela quer dar os despojos do javali abatido (8), mas acaba por ser atirado para a morte por sua mãe, Alteia, que não lhe perdoa o facto de Meleagro ter sido responsável pela morte dos seus tios (9).
Adónis morre, tal como Meleagro e Aquiles, no apogeu da sua beleza, força e juventude.
Tal como diz Safo, «A morte é um mal. Assim os deuses
o entendem. Se não o fosse,
também eles morreriam.» (10).
Com efeito, «Os deuses são caprichosos como os homens, o destino é imutável como o céu», diz J. Bouché (11).
Às leis da harmonia universal estão sujeitos os próprios deuses. Auch das Schöne muß sterben ― diz-nos Schiller. No poema, Zeus é a própria encarnação do destino (12). É o ser que governa as forças superiores. Compete-lhe quem zelar pela harmonia universal.
Aquiles, o herói divino, não é imortal. Imortal é apenas Zeus que, austero, tem que retirar o seu presente.
Orfeu também não consegue resgatar Eurídice ao mundo dos mortos. Ao olhar para trás, reafirma a sua condição humana. Restou-lhe a lira melodiosa. Os deuses são aquilo que representam para os homens.
«Vrais ou faux, et en un sens tous sont vrais, les dieux sont vus à travers l´amour, l´espoir ou la crainte quíls inspirent…» , diz Margueritte Yourcenar, no prefácio ao livro La Couronne et la Lyre (13).
Perante a inevitabilidade da morte, resta ao homem a crença em forças superiores.Com os deuses, o homem partilha a vivência do sublime e, transcendendo-se, ascende à eternidade.
As Musas desempenham um papel mediador importante, exaltando o belo, através da poesia e da música (14).
No Canto XXIV da Odisseia, o fantasma de Agamémnon conta como Tétis irrompe das águas, acompanhada das deusas marinhas, quando sabe da morte de Aquiles, descreve pormenorizadamente o desvelo das suas exéquias fúnebres, refere que as nove Musas o carpiram, refere-se aos excelentes prémios que Tétis depositou em sua honra e termina, dizendo:
«Assim o teu nome não pereceu com a morte.» (15)
As Musas acompanhavam o homem nos momentos mais significativos da sua vida, estavam presentes nas ocasiões sociais, nos eventos felizes ou tristes da vida dos heróis. Os seus cantos eram, ora alegres, ora meditativos e melancólicos (16).
A poesia e a música eram parte integrante do mundo antigo. Um
fragmento de Álcman atesta que o poeta e o músico eram a mesma pessoa:
«Estes versos e esta música, Álcman
a inventou, tendo entendido
das perdizes as falas canoras.» (17)
Era através da poesia que a glória dos feitos heróicos perdurava. Também a beleza, sentida no dia a dia, era cantada e dançada pelos coros de jovens do sexo feminino, em Esparta, a cidade do séc. VII a. C., onde Álcman viveu, em plena harmonia com a natureza (18).
Transcendendo-se através da arte, irmanando-se aos deuses no belo, o homem podia fazer a sua fama perdurar.
Safo, referindo-se à Glória literária, dissera (19):
«Quando morreres, hás-de jazer sem que haja no futuro
memória de ti nem saudade. É que não tiveste parte
nas rosas da Piéria. Invisível, andarás a esvoaçar
no Hades, entre os mortos impotentes.»
Ainda, num curto epigrama, Die Gunst Der Musen (O Favor Das Musas), Schiller, cuja poesia lírica, segundo Olívio Caeiro: “nos obriga a pensar o conceito de lirismo em bases mais amplas que as da tradição escolar.” (20), refere:
«Com o filisteu (21),
morre também a sua fama,
Tu, etérea,
Guardas em Mnemósine os que te amam e amas» (22).
Fiquemos pois, com o favor dos deuses, o favor das Musas, como legado dos poetas, com Hölderlin, que partilhou com Schiller a amizade e o génio da Grécia:
«Onde as musas de encontram e donde provêm os heróis e os amantes,
Que aí, ou também aqui, nos encontremos sobre uma ilha orvalhada,
Onde todos os nossos estarão, florescendo juntos em jardins,
Onde os cânticos serão verdadeiros e as Primaveras por mais tempo belas,
E de novo comece um ano para as nossas almas» (23).
Pensemos Álcman, Safo, Schiller, «Homero», nos grandes mitos. Para Platão, o mito «equivalia no filósofo poeta à expressão das suas mais profundas intenções filosóficas» (24)
Pensemos em Aquiles.
Ou no presente que lhe foi concedido pela « duodécima aurora».
|
(1) Paul Valéry, Poésies, Gallimard, 1958, p. 73, poema Fragmens du Narcisse, III.
(2) Von EGON ECKER, op. cit., pg. 109.
(3):«Wenn es richtig ist, daß von den Dichtern, auch von den bedeutendsten, nicht mehr als sechs, acht Gedichte übe dauern, so gilt das gewiß für Friedrich Schiller. (...) dieses Gedicht ist ein Meisterwerk. Auch die strenste Auswahl von Gedichten deutscher Sprache müßte es enthalten», in Marcel Reich-Ranicki, in «Flüchtige Grösse» (Grandeza efémera), (in 1000 Deutsche Gedichte und ihre Interpretationen, Bd. 2, Insel Verlag, Leipzig, 1995, p. 54.
(4) Op. 82. Escrita para coro e orquestra, juntamente com Schicksaslied, op.54 ( Canção do destino, composta a partir de um poema de Hölderlin) e Gesang der Parzen, op. 89 (Canto das Parcas, baseada no IV acto de Ifigénia em Táuride de Goethe), constitui uma trilogia de obras breves que glosam ou desenvolvem aspectos de Um Requiem Alemão (Enciclopédia Salvat Dos Grandes Compositores, Vol. 3, Salvat Editora do Brasil, Rio de Janeiro, 1986, pp.226-227.
(5) Ilíada I, 493-527, Tradução de Maria Helena Da Rocha Pereira in Hélade, Instituto de Estudos Clássicos, Coimbra, 1990, pp. 16-17.
(6) Pierre Grimal, Dicionário da Mitologia Grega, Difel, 1992, p.10.
(7) Segundo uma lenda a que Hesíodo se refere, Tiante, o rei da Síria, tinha uma filha, Mirra, ou Esmirna, em quem Afrodite inspirou um desejo incestuoso pelo pai. Com a ajuda de Hipólita, a sua ama, conseguiu enganá-lo, tendo passado com ele doze noites. Na décima segunda noite, Tiante , tendo-se apercebido do estratagema, tentou matá-la com um cutelo. Mirra escapou, tendo procurado a ajuda dos deuses que a ajudaram, tendo-a transformado numa árvore, a árvore da mirra. Dez meses depois, a casca da árvore estalou e dela saiu um menino muito belo, que recebeu o nome de Adónis. Impressionada com a sua beleza, Afrodite recolheu a criança e, em segredo, confiou-a a Perséfone, para que a criasse. Esta, tendo-se afeiçoado á criança, não quis devolvê-la a Afrodite, quando esta a reclamou, tendo-se estabelecido um litígio entre as duas deusas. Este litígio, nalgumas versões, foi arbitrado por Zeus, noutras pela Musa Calíope, tendo ficado decidido que Adónis ficaria um terço do ano com Afrodite, outro com Perséfone e ao restantes dois terços, com quem quisesse. Adónis terá passado sempre dois terços do ano com Afrodite e um terço com Perséfone. Um dia, a cólera de Afrodite provocou contra ele um javali que o despedaçou, durante uma caçada. Pierre Grimal, op. cit., p. 6.
(8) Sobre o tema de Meleagro e ATALANTA, o seu amor e a caça ao javali, C. W. GLUCK escreveu uma ópera, intitulada La Courona (ATALANTA: ALICIA SLOWAKIEWICZ, MELEAGRO: HALINA GORYNSKA, CLIMENE: LIDIA JURANEK, ASTERIA: BARBARA NOWICKA, Corpo da Rádio da Baviera, Orquestra da Ópera de Varsóvia, Direcção TOMASZ BUGAJ, Antena 2, Boletim de programação mensal, Fevereiro, 2004, pg. 31).
(9) A figura de Meleagro, filho de Eneu, Rei dos Etólios, de Cálidon e de Alteia, uma irmã de Leda, surge na Ilíada. Conta-se que, após uma colheita, Eneu ofereceu sacrifícios a todas as divindades, excepto a Ártemis. Esta, enfurecida, envia contra ele um javali de enormes proporções que devasta os campos. Para o vencer, Meleagro pediu a ajuda de caçadores que vieram da vizinhança. O javali matou muitos deles, até cair sob os golpes do jovem. Mas a cólera de Afrodite ainda não estava apaziguada. Assim, esta provoca uma disputa entre Etólios e Curetes, dividindo as duas etnias, às quais pertenciam os caçadores. Em causa estavam agora a cabeça e a pele do javali abatido. Enquanto Meleagro combateu ao lado dos Etólios, a sorte pendeu para o lado destes. Porém, durante a batalha, Meleagro matou os irmãos da mãe, que o amaldiçoou e lançou contra ele a cólera das deusas infernais. Então Meleagro, receando as Erínias e a sua maldição, retirou-se. A vitória passou a pennder para o lado dos Curetes. então, os Etólios insistiram para que Meleagro voltasse. após longa insistência, este acabou por ceder, mas parece que terá morrido em combate. Na versão ligada à Ilíada , conta-se que Meleagro era invulnerável e que teria morrido, tal como Aquiles, vítima de uma flecha, enviada por Apolo. Pierre Grimal, Dic., pp.229-300.
(10) Tradução de Albano Martins, 67 (201 L-P) in O Essencial de Safo e Alceu, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1986, p.56.
(11) J. Bouché, Dictionnaire de Théologie Catholique, t. V, col. 2097, apud António Freire, S. J., O Conceito de Moira da TragédiaGrega, Livraria Cruz, Braga, 1969, p. 25.
(12) Zeus und Schicksal bedeuten das Gleiche. Albin Lesky, Die Grieschische Tragödie, Alfred Kröner Verlag, Stuttgart, 1964, p. 105.
(13) Marguerite Yourcenar, La Couronne et la Lyre. Antologie de la Pésie Grecque Ancienne, Paris, Gallimard, 1979, p. 24.
(14) Referidas por Homero e Hesíodo, as Musas tinham como primeira função exercer a actividade musical , votada ao culto divino. Ver Maria de Lourdes Nunes Flor de Oliveira, O Temadas Musas na Cultura Grega, Lisboa, 1982, p. 78.
(15) Odisseia, .vv. 93-94, Clássicos Sá da Costa, Lisboa, 1994, pp. 341, 342.
(16) Ver Maria De Lourdes Nunes Flor De Oliveira, op. cit., ibidem.
(17) Frg. 94 Diehl, Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira in Hélade, p.100.
(18) Maria Helena Ureña Prieto, Dicionário de Literatura Grega, Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 2001, p. 4.
(19) Fragmento. 55 Lobel-Page, tradução de Maria Helena Da Rocha Pereira, op. cit., pg. 104.
(20) Schiller. Poeta lírico. I. Antologia para o ano de 1782, in Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, III série, n.º 14, 1971, separata, pg. 6) (sobre a lírica de Schiller, entre nós, v. este estudo de Olívio Caeiro, Schiller..., pp. 5 ss.).
(21) Neste contexto, filisteu significa tudo o que é banal ou comum.
(22) «Mit dem Philister stirbt auch sein Ruhm. Du, himmlische
Trägst, die dich lieben, die du liebst, in Mnemosynes”»
Friedrich Schiller, Sämtlische Werke, I, Carl Hauser Verlag, Münschen, 1980.
(23) «Dort,wo die Musen, woher Helden und Liebende sind,
Dort und, oder auch hier, auf thauender Insel begegnen,
Wo die Unsrigen erst, blühend in Gärten gesselt,
Wo die Gesänge wahr, und länger die Frühlinge schön sind,
Und von neuem ein Jahr unserer Seele beginnt.
Friedrich Hölderlin, Elegias, Assírio e Alvim, Lisboa, 1992, pp. 26-27, Tradução de Maria Teresa Dias Furtado
(24) Ver António Freire, S. J, p. 23. |