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JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES - SOBRE TRILHOS E DESVIOS |
“ Quem escreve só pode falar de seu pai ou de seus pais “De repente nós, os companheiros inseparáveis,o mes- “Quando se tem algo a dizer, escreve-se em qualquer lugar. Sobre uma bobina de papel ou num quarto infernal. Deus ou o diabo estão junto da pessoa ditando-lhe inefáveis palavras.” Essa espécie de conselho ou estímulo aos principiantes na arte da escrita é de Roberto Arlt, num texto que antecede seu romance Os lança-chamas, e me veio à mente ao longo da leitura de À margem da linha, a tão concisa quanto bela novela de estréia de um escritor de cinqüenta e três anos de idade quando do lançamento do livro, em 2001: Paulo Rodrigues. Me surgiram as frases – numa espécie de epígrafe à obra – não devido a uma possível analogia com a vida do autor (um funcionário da Telesp, companhia telefônica de São Paulo, de origem humilde, que travou contato com a literatura na adolescência, graças a uma biblioteca herdada de sua madrinha), mas por uma afirmação obsessiva da vocação da escrita, perceptível em cada linha do livro, indiferente às circunstâncias e aos caprichos editoriais que nem sempre identificam um escritor quando se deparam com um. Tendo sido lançada numa primeira e fragmentada versão no suplemento literário do jornal Folha de S. Paulo, em 1989, a novela de Rodrigues esperou doze anos para voltar à letra impressa, numa caprichada edição da editora Cossac & Naify; tempo que, todavia, em nada empalideceu o frescor e a força – mesmo hoje, quando tantos novos autores têm surgido – com que a obra se coloca na literatura brasileira contemporânea. Inserida na tradição dos relatos on the road, tão cara à literatura e ao cinema norte-americanos, mas também de vigorosa presença na literatura e no cinema brasileiros, À margem da linha suscita paralelos com outras obras atuais também pela escolha de um tema, a busca do pai, recorrente no imaginário contemporâneo, sobretudo – uma vez mais – nas manifestações norte-americanas e brasileiras. Talvez por compartilharem a condição de “invenções européias”, imensos espaços vazios para onde se procurou transplantar um universo (ao contrário do que ocorreu com México e Peru, por exemplo, que já tinham, quando da chegada dos europeus, uma civilização e uma História próprias), Estados Unidos e Brasil ainda guardam a nostalgia das vastidões infinitas: não será à toa a presença obsessivamente recorrente do deserto e dos grandes espaços no imaginário dos Estados Unidos, a inflação de imagens de estrada na literatura e no cinema daquele país, assim como não será por acaso que uma das frases-síntese do mais mítico romance brasileiro, Grande sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, seja tão eloqüente em sua concisão: “o sertão é o mundo”. Mais do que simplesmente uma área geográfica, o deserto, o sertão e o pampa (essa outra espécie de deserto que os brasileiros do Sul dividem com argentinos e uruguaios, outros nostálgicos) constituem um microcosmo, um espaço de questionamento da condição humana, e as andanças sem fim do narrador do clássico On the road, de Jack Kerouac, ou o impulso aventureiro dos motoqueiros Wyatt e Billy do não menos cult Easy rider, filme de Dennis Hopper e Peter Fonda, são da mesma natureza metafísica e existencial do pacato Juan Dahlmann, do conto El Sur, de Borges, ou da acidentada volta a um outro Sul do desassossegado narrador de Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll: são movimentos simultâneos e contraditórios de fuga e busca, de evasão e enraizamento. Não é sem razão que os movimentos de retorno ao início, ao lugar onde tudo começou (e Paris, Texas, de Wim Wenders – um alemão crescido no pós-guerra, assumidamente influenciado pelo imaginário norte-americano –, é, nesse sentido, um ícone desse espírito de época, na medida em que Travis, o protagonista do filme, é alguém que perdeu todas as referências, menos aquela básica, fundamental: o lugar onde foi concebido) se confundem, tantas vezes, com uma busca pelo pai ele mesmo. É como se nesse tempo de crise e questionamento das identidades que nos foi dado viver, o impulso de retorno à origem, a um mítico Pai fundador, e a reelaboração da experiência do mundo familiar, no qual a figura paterna é uma âncora, fossem a única possibilidade de recuperar – ou atribuir – algum sentido para a vida. Ao contrário, porém, de filmes como Terra estrangeira e Central do Brasil, de Walter Salles, nos quais a perambulação dos personagens (sobretudo no primeiro filme, onde a questão está evidente no próprio momento em que se passa a história, as duas semanas entre a posse de Collor, 15 de março de 1990, e o primeiro de abril, aniversário de um outro golpe, o de 64) pode ser vista como metáfora da precariedade e do desamparo do país, do sentimento de orfandade diante da ausência – ou da presença perversa – do Estado, o relato de Paulo Rodrigues opera num registro essencialmente mítico, arquetípico, no qual o ganhar o mundo em busca do pai é antes a efetivação de um rito de passagem, a tomada de contato com o inóspito mundo adulto, do que um comentário sobre a questão social, ainda que esta esteja presente o tempo todo na origem humilde dos protagonistas. Nesse sentido, é com um outro filme de Walter Salles, Abril despedaçado, que À margem da linha se assemelha. Lá como aqui, o expectador/leitor se insere na história através da ótica de dois irmãos: o mais velho, Tonho, e o mais novo, Pacu, no filme de Salles; o mais velho chamado apenas de Mano, pelo irmão menor, o narrador da história, também sem nome, na novela de Rodrigues. Em ambas as obras a orfandade do irmão mais jovem é como que suavizada por uma espécie de substituição levada a cabo pelo irmão mais velho, que toma para si, de algum modo, posturas que seriam as de um pai: é Tonho construindo um balanço para Pacu “voar”, em Abril despedaçado; é o Mano “abrindo” caminho para que o narrador o siga em À margem da linha . Algo, porém, interrompe o paralelo: enquanto que no filme de Walter Salles há uma maior troca entre os irmãos – também Pacu ensina algo ao irmão, no momento em que mostra a ele a possibilidade do sonho, materializada nas figuras de um livro cujas letras não entende, mas cuja história reinventa através das imagens – no relato de Paulo Rodrigues a admiração do narrador pelo Mano não dá espaço para uma relação mais igualitária: é o Mano quem tudo sabe, quem caminha na frente e quem decide os caminhos, ele é quem domina a situação e desempenha o papel de líder – “o mestre e sua testemunha” – e ainda que a percepção de uma eventual fraqueza do irmão gere uma angústia no narrador, essa angústia é decorrente não de um temor de que o Mano sucumba deixando-o desamparado, mas por deixar à mostra sua pequenez e impotência diante da dor do outro: “(...) estava apreensivo pela descoberta de que o Mano não era mesmo a fortaleza em que eu acreditava. Embora apreensivo, a verdade é que eu gostei de sabê-lo assim, quase igual a qualquer um de nós. Amei-o ainda mais por isso. Entretanto, ao perceber que se desnudava diante de mim, ele caiu em profunda prostração. Deus, como eu gostaria de ter naquele instante o poder de confortá-lo, de inverter nossa relação de dependência e tomá-lo nos braços, acariciar seus grossos cabelos e ajudá-lo a liberar suas lágrimas, provavelmente antigas e amargas.” Quase igual a qualquer um de nós... A fraqueza do irmão mais velho, aos olhos do narrador, é de outra ordem – fraqueza dos fortes – e se o torna semelhante, não o iguala aos demais. E tanto maior é o sofrimento quanto maior a admiração. No momento em que num arroubo de autonomia o narrador recusa o monótono caminho reto tomado pelo irmão e opta por um desvio, pela separação, há como que a consumação do rito de passagem que – supõe-se – fará dele, narrador, pai de si mesmo (numa “resolução” da caminhada que me faz recordar o desfecho da novela Pequod, de Vitor Ramil – uma outra incursão da recente literatura brasileira no universo dos pais e filhos desamparados – em que o narrador, frente ao desaparecimento do pai, descobre o seu tempo). Sobre (nas duas acepções da palavra: no e a respeito de ) trilhos e desvios, À margem da linha une paisagens externas e internas, como metáforas e como coisas em si mesmas, para pintar o retrato da condição humana. Não é pouco para um relato de 110 páginas. |
JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES. Professor, doutor em literatura brasileira pela Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). |